Parece filme de terror, mas talvez nem a ficção mais sangrenta e pavorosa conseguisse chegar aos pés do assombroso caso que aconteceu no bairro de Santo André, em Belo Horizonte, Minas Gerais, na madrugada do último sábado (30). Uma empresária de 22 anos foi largada desacordada na porta de sua casa por um motorista de aplicativo. Outro homem, Weberson Carvalho da Silva, de 47 anos, passava pelo local e se sentiu no direito de manusear seu corpo, colocá-la em cima dos ombros e levá-la para um campo de futebol para cometer um estupro.
É difícil elencar o que é mais assustador nessa história. Mas, levando em conta a cronologia do que foi divulgado sobre o crime até o momento, é mais fácil assumir o seguinte: cinco homens tiveram a chance de impedir que esse incidente acontecesse. Todos eles decidiram não fazer nada.
Na madrugada do dia 30, a empresária estava no Mineirão para o show "Tardezinha", de Thiaguinho, e bebeu demais. Um amigo achou prudente pedir um carro de aplicativo para que a mulher voltasse para casa. E era, a princípio. Até o momento em que pensou – ou sequer pensou – que ela teria condições de chegar sozinha em casa. Afinal, ela estaria em um carro, ele acompanharia a viagem, o que poderia acontecer de ruim?
O amigo não a acompanhou, mas achou que seria de bom tom enviar o link da corrida para o irmão da empresária, que estava em casa. Pelo histórico divulgado na imprensa, esse momento teria acontecido pouco antes das 3h da manhã. Segundo a família, no mesmo dia, o irmão estava medicado devido a uma crise de asma. O antialérgico o fez pegar no sono antes de a viagem acabar.
Foi às 3h da manhã que o carro do motorista estacionou na porta da casa onde ela mora. Esperou por 10 minutos no carro, provavelmente para ver se ela acordaria, o que não aconteceu. Qual seria o mais prudente a se fazer em uma situação como essa? Talvez encaminhá-la para um hospital ou posto de saúde, quem sabe para a delegacia. De todas as possibilidades do que poderia fazer, a que lhe pareceu mais cabida foi carregá-la até a calçada, a posicionando apoiada em um poste no meio-fio.
O motorista, aliás, não fez isso sozinho. Um homem que passava solicitamente se ofereceu para ajudá-lo. Ele é visto nas imagens dividindo o corpo da mulher com o motorista para sentá-la na calçada, onde ela mal conseguia parar de forma ereta. Sua participação foi mais breve do que poderia ter sido. Ao contrário de se oferecer para acompanhá-la, o homem foi embora.
A ideia do motorista, aparentemente, era de deixá-la ali até que alguém em sua casa atendesse o interfone e pudesse deixá-la subir. Mas às 3h17, após ter supostamente tentado contato, resolveu ir embora. A vítima continuou ali.
Cinco minutos exatos. Esse foi o tempo que bastou até que Weberson aparecesse na rua onde a jovem estava – agora caída no chão, já que o corpo se desequilibrou. Viu nela a oportunidade de consumar a tragédia anunciada: ele apoia seu corpo nos ombros, anda por mais de 15 minutos pelo bairro, e o passeio macabro termina em um campo de futebol.
Na manhã seguinte, a vítima descobriria que foi estuprada após fazer um exame no Hospital Odilon Behrens, no bairro São Cristóvão. Não se sabe quantas vezes foi estuprada, nem como, nem de que forma isso aconteceu. Mas outro detalhe não deve passar batido: Weberson só foi captado pelas câmeras de segurança indo embora do campo de futebol horas depois, às 7h08.
A mulher foi encontrada meia hora depois – mais precisamente às 7h38, segundo a Prefeitura de Belo Horizonte – por socorristas do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Ela estava suja, com a calcinha abaixada e coberta por um pano. Não se lembrava de nada – o que, para familiares, faz levantar a suspeita de que ela tenha sido drogada, o que está sob investigação pela Delegacia Especializada de Combate à Violência Sexual em BH, segundo a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG).
As imagens de segurança identificaram Weberson, que foi preso em flagrante por estupro de vulnerável.
A vítima poderia ter voltado do Mineirão acompanhada por alguém que pudesse levá-la até sua casa, colocá-la confortavelmente em sua cama de forma que, no dia seguinte, provavelmente apenas sentiria uma ressaca forte. Mas voltou com mais do que isso: com uma marca da qual sequer vai conseguir se lembrar como conseguiu, mas que não deixará de ser menos dolorosa por isso.
Para as mulheres, um episódio como esse nunca é fácil de ouvir. Dói como se fosse em nós, porque, de certa forma, é. E não nos acostumamos com isso: mesmo que sejamos expostas a notícias assim diariamente em um Brasil que vive uma verdadeira epidemia de violências de gênero. Em um país que viu todos os crimes contra mulheres aumentarem no último ano e que, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, bateu um recorde histórico na incidência de estupros. Foram 75 mil mulheres estupradas, a maioria com até 13 anos, no ano passado.
Não nos acostumamos em um Brasil que vive uma crise humanitária, de saúde pública e social, em que, a qualquer momento, uma de nós pode ser a próxima.
Mas e para os homens? Como um acontecimento como esse os atravessa? E por que ainda insistem em ver situações como essas acontecerem e simplesmente agir como se nada daquilo fosse problema deles? Até quando vão fechar os olhos para o fato de que a cultura de estupro e a violência contra as mulheres é, sim, mais responsabilidade deles do que nossa?
Afinal, a maioria esmagadora dos crimes sexuais é cometida por homens – que, por sua vez, são na maior parte dos casos conhecidos das vítimas, o que torna a necessidade dessa resposta ainda mais urgente.
“Mas”, você, homem, pode se perguntar, “não fui eu quem a largou na rua ou a estuprou. O que eu tenho a ver com isso?”. A resposta é: tudo.
Em entrevista a Marie Claire em novembro de 2020, a psicóloga pesquisadora sobre combate à violência de gênero, Mayara Ferreira, também fundadora do coletivo de rede de atendimento à mulher Divam, definiu o seguinte: “Estupro não é ligado ao desejo sexual, é uma questão de poder e dominação. 'Ser homem' é ligado a conseguir um bom desempenho sexual e a mulher é criada na ideia de ser estimulada, de não ter exatamente ciência do que quer."
O quanto dessa perspectiva está presente no seu cotidiano e o quanto você, homem, compactua com ela, mesmo sem perceber?
Ao passar pano para o seu amigo que levanta a voz para a namorada e pega forte no braço dela para repreendê-la, você faz parte do problema. Se numa balada você beija uma mulher à força depois de ouvir um "não" ou passa a mão no corpo dela porque "ela está muito louca", você faz parte do problema. Se um amigo compartilha um vídeo íntimo que gravou com uma mulher com quem transou, você assiste e não diz nada, você faz parte do problema. Se uma mulher vai pede ajuda para sair de uma situação em que se sente insegura e você nega, você também faz parte do problema.
Ao passo em que os homens trabalham para a manutenção do pacto machista que os faz se protegerem entre si, a estrutura patriarcal que não só permite como normaliza a invasão de nossos corpos vai se manter intacta. Até que isso não comece a ruir, não vamos nos sentir à salvo nem mesmo dentro de nossas próprias casas ou junta de pessoas que pensamos que podemos confiar.
Enquanto os homens optarem por fecharem os olhos; enquanto o assunto não for pauta na mesa de bar, no trabalho e em casa; enquanto não entenderem que são parte de uma estrutura que incentiva que mulheres sejam violadas, casos como esses vão continuar acontecendo. De novo, de novo e de novo. O que mais falta para que esse momento finalmente chegue?