Direitos Reprodutivos

"Não teria passado por metade do que passei. Me sentiria mais segura, até se precisasse ir ao médico." É o que Elaine*, 25 anos, responde ao ser perguntada sobre como seria fazer um aborto se o misoprostol (ou Cytotec), remédio que pode induzi-lo, fosse disponibilizado nas farmácias. Esse foi o método ao qual ela própria recorreu para conseguir interromper uma gravidez indesejada. Sem apoio do sistema de saúde e minada pelos preços exorbitantes das clínicas clandestinas, recorreu ao tráfico para ter acesso às pílulas abortivas

Comprou seis comprimidos por R$ 1.500 tirados das economias por meio de um contato que recebeu de uma amiga. “Dor de barriga” era o código que indicava à vendedora o que Elaine precisava. Todo o processo, cheio de códigos, incertezas e o medo constante de ser enganada, causava apreensão. “Achei que não daria certo e que seria presa. Me senti desamparada”, lembra.

A mesma pessoa que fez a venda enviou a Elaine um passo a passo de como administrar o medicamento e, pelo WhatsApp, auxiliou o procedimento à distância. Ela também contou com a ajuda de um casal de amigos, que ofereceu a casa para que ela e o marido fizessem tudo sem a família desconfiar.

Elaine inseriu dois comprimidos na vagina com a ajuda de um aplicador de pomadas. Os outros quatro foram usados via sublingual. Levou apenas algumas horas até sentir uma cólica forte – a primeira depois de dois meses sem passar pelo período menstrual. “Foi doloroso, mas até que rápido. A sensação quando descobri que não estava mais grávida? Alívio. Não sei descrever mais que isso”, conta.

O medo de Elaine durante todo o processo não foi à toa. O Brasil ocupa o sétimo lugar no ranking de países mais restritivos à realização do aborto. É o que diz o estudo Global Views on Abortion, feito pelo Instituto Ipsos em 2022. Por aqui, a interrupção da gravidez é permitida apenas em casos de estupro, feto anencéfalo ou risco à vida da pessoa que gesta. Nessas ocasiões, é comum que o procedimento seja realizado com o Cytotec.

Apesar de ser essencial para a OMS (Organização Mundial da Saúde) por induzir o aborto de maneira segura e eficaz, sua venda é proibida em farmácias brasileiras pela Portaria 344 da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), em vigência há 24 anos. Antes disponível para compra e venda em todo país, agora o medicamento só é liberado para entidades hospitalares registradas na Agência.

Além de ser administrado nos casos de aborto legal, o Cytotec é usado no sistema de saúde para tratar hemorragia pós-parto. Também induz partos que não acontecem naturalmente dentro do prazo máximo ou em casos de fetos mortos antes da 30ª semana.

As propriedades abortivas do medicamento foram descobertas por brasileiras, história que contaremos mais adiante. Contraditoriamente, elas se tornaram as mais penalizadas por seu uso. A comercialização e posse do remédio configura crime contra a saúde pública pelo Artigo 273 do Código Penal. A pena pode variar entre 10 e 15 anos de reclusão – período mínimo muito maior do que para crimes de estupro e homicídio (ambos de seis anos), por exemplo.

O levantamento mais recente do Ministério da Saúde, divulgado em 2018, aponta que uma mulher morre a cada dois dias em decorrência de um aborto inseguro – número provavelmente subnotificado devido à falta de dados. A OMS indica que, todos os anos, 47 mil mulheres morrem no mundo ao tentar realizar o procedimento.

Se disponibilizado de maneira ampla, o Cytotec poderia não apenas reduzir as fatalidades, mas promover uma alternativa segura e barata de fazer o procedimento; bem como, a passos lentos, desestigmatizar a realização do aborto em si.

Marie Claire conversou com pesquisadoras, advogadas, médicos e ativistas para entender as causas e consequências da proibição do medicamento no Brasil, e de que maneira sua liberação pode ser crucial para reduzir o número de mortes por aborto inseguro.

O que é o Cytotec?

O Cytotec ou misoprostol é um fármaco sintético correspondente à prostaglandina E1, originalmente usado para o tratamento de úlceras gastrointestinais ou como vasodilatador. Na Anvisa, é registrado desde 2005 pelo nome Prostokos.

Seu uso para a indução da interrupção da gestação foi descoberto por brasileiras em 1986, quando perceberam que o Cytotec estimula a musculatura uterina. “Na bula havia um desenho que mostrava que o medicamento era abortivo. Assim, as mulheres pararam suas tentativas de encontrar formas, chás e medicamentos para abortar de maneira segura com o remédio” contextualiza Debora Diniz, antropóloga e uma das principais pesquisadoras sobre aborto no Brasil.

Esse estímulo do medicamento resulta em contrações na dilatação do colo do útero, que podem induzir um parto ou interromper uma gestação. Assim, o remédio ganhou popularidade não por sua premissa original, mas pela capacidade de “resolver” o atraso menstrual.

Ao longo da década de 1990, pesquisas foram realizadas para compreender o alcance do medicamento para fins abortivos. No período, estima-se que 50,4% a 84,6% das brasileiras fizeram uso dele. A maioria delas eram nordestinas e sudestinas. É o que aponta o estudo ‘20 anos de pesquisas sobre aborto no Brasil’, coordenado por Diniz e Marilena Corrêa e publicado em 2009.

Na época, o misoprostol foi intensamente defendido por profissionais da saúde por não oferecer riscos às vidas das mulheres, já que diminui os índices de hemorragia, infecção e esterilidade. “É um medicamento que, sabendo utilizar a dose correta, reduz o risco de morte de mulheres por aborto inseguro”, diz Diniz.

Como funciona o uso seguro do Cytotec para abortar?

Poucas contraindicação, uso autogestionado e diminuição de riscos são pontos que tornam o uso do Cytotec seguro para abortar — Foto: James Keyser/Getty Images
Poucas contraindicação, uso autogestionado e diminuição de riscos são pontos que tornam o uso do Cytotec seguro para abortar — Foto: James Keyser/Getty Images

Jefferson Drezett, ginecologista e obstetra que coordenou por mais de 25 anos o serviço de aborto legal do Hospital Pérola Byington em São Paulo, referência no procedimento, explica que há uma série de fatores que fazem do Cytotec um medicamento seguro.

Trata-se de um remédio com poucas contra indicações, ligadas a doenças cardíacas, hepáticas e de coagulação. "Nesses casos específicos, o uso pode continuar sendo seguro, mas precisa ser feito em ambiente hospitalar", alerta. Também há poucos efeitos adversos, dentre os quais sangramento similar ao do período menstrual e cólicas. É necessário buscar atendimento médico em casos de sangramento intenso, cólicas muito fortes ou se o aborto não for concluído.

O uso seguro também está condicionado ao tempo de gestação. Apesar de poder ser administrado em qualquer período gestacional, a dosagem, a via pela qual é utilizado e o local do procedimento podem variar.

Drezett defende que o aborto 100% seguro depende não apenas do amplo acesso ao medicamento, mas também da participação do sistema de saúde para orientar a população. "A percepção de muitas pessoas de ser um procedimento com riscos está baseada na falta desse conjunto de informações e procedimentos que as mulheres precisam receber do serviço de saúde. Muitas acabam usando doses ou por vias inadequadas, sem nenhuma estrutura ou orientação."

Uma tese de mestrado realizada pelo médico Maurício Viggiano em parceria com a Unicamp (Uiversidade de Campinas) aponta que nos anos 1980, quando o medicamento era disponibilizado, as taxas de complicações decorrentes de abortos caíram. "Mesmo que utilizado sem todo esse aparato ideal, as mulheres conseguiam abortar de forma mais segura com o misoprostol do que com outros métodos precários”, diz Drezett.

A proibição do Cytotec no Brasil

Com as vendas em alta, o Cytotec entrou na mira de diversas instituições de farmacovigilância que não viram com bons olhos o fato de o medicamento ser usado pelos efeitos colaterais, e não por sua finalidade original. O descontentamento foi acompanhado por parte da sociedade que era contrária ao aborto, incluindo civis, lideranças religiosas (principalmente católicas) e profissionais da área da saúde. O movimento contrário via o aborto pela ótica moral, como é de praxe ao encarar o assunto até hoje.

Essas mobilizações resultaram em diversos impasses para dificultar a venda e a prescrição do medicamento. Em 1991, a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária determinou que o Cytotec só seria vendido mediante apresentação de receita médica. No mesmo ano, porém, decisões judiciais proibiram a venda em alguns estados. Um relatório apresentado pelo MS em 2018 durante uma Audiência Pública sobre aborto no STF (Supremo Tribunal Federal) mostra que, em 1992, um ano após a obrigatoriedade da receita, as vendas do Cytotec caíram 80% no país.

Também começaram a despontar pesquisas que relacionavam o uso do misoprostol à má-formação fetal. A pesquisadora Helena Lutéscia, da Universidade Federal do Ceará, foi uma das expoentes nesse movimento. Por mais que as bases científicas desses artigos fossem contestáveis, os estudos chegaram a ser replicados em publicações como The Lancet e o The New York Times.

Lutéscia também fundou o GPUIM (Grupo de Prevenção ao Uso Indevido de Medicamentos), que tinha como pauta primária o consumo “racional” do misoprostol. O grupo, ao lado da SVS (Secretaria de Vigilância em Saúde) e da Sobravime (Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos), teve papel marcante ao pressionar pela interrupção da venda do medicamento.

Realizações de conferências no mundo, o revide de movimentos feministas e o surgimento de projetos de lei visando os direitos reprodutivos colocaram o aborto no centro do debate sóciopolítico. No entanto, em maio de 1998, foi instaurada a Portaria 344, que classificou o Cytotec como “uma substância sujeita a controle especial” e que só seria disponibilizada aos estabelecimentos hospitalares.

Juliana Reis, cineasta criadora do Milhas Pela Vida das Mulheres, que desloca pessoas que gestam para realizar o aborto legal no Brasil, destaca que a norma da portaria também proíbe a possibilidade de um médico administrar o Cytotec no próprio consultório ou em atendimento ambulatorial.

A disponibilização do medicamento pelo sistema de saúde é feita de forma extremamente burocrática. Além de um procedimento ainda mais rigoroso, é necessário incluir na receita o endereço e nome completo da paciente, o leito de internação e até o número de comprimidos que foram administrados. "Não há precedente semelhante para qualquer outro tipo de medicação. Isso reflete a posição do Brasil em relação ao medicamento”, diz Drezett.

Para Diniz, essa restrição é imposta sob o pretexto moral de controle reprodutivo, e não sob a necessidade da saúde.

A advogada Juliana Bertholdi, doutoranda em Justiça, Democracia e Direitos Humanos, analisa que a proibição aprofundou a marginalização das mulheres que optam pelo aborto. Ela define como falacioso o tratamento sobre o aborto a partir de recortes religiosos e morais, mas destaca que a tática foi bem-sucedida para manter o uso do Cytotec como tabu.

"O que sabemos, com dados, é que o acesso estruturado ao aborto legal não apenas diminui o número absoluto de mortes de mulheres, mas também o número absoluto de abortos realizados. Uruguai e Portugal possuem números muito contundentes neste aspecto. Neste contexto, os medicamentos são aliados importantíssimos", pontua.

As consequências da falta de distribuição do Cytotec no Brasil

Desde 2005, a OMS coloca o Cytotec no rol de medicamentos essenciais e o classifica como o mais indicado para a realização do aborto até a 12ª semana – é ainda mais eficiente se combinado com a mifepristona, um remédio francês que não circula no Brasil e bloqueia os níveis de progesterona, facilitando a ação abortiva.

Devido ao estigma relacionado ao procedimento, no entanto, o órgão afirmou que o remédio deve ser usado em países onde ele seja legalizado e culturalmente aceito – o que não corresponde à realidade brasileira.

Atualmente, 61 países têm o aborto legalizado em seus territórios, sendo que em 56 deles a interrupção é feita entre a 10ª e 24ª semana levando em consideração, primariamente, a decisão da pessoa que gesta.

Vinte e cinco países proíbem o aborto em qualquer caso, como a Cisjordânia e as Filipinas. O restante das nações, como o Brasil, só o permite em situações específicas. No ranking da Global Views on Abortion, depois do Brasil, a descriminalização do aborto só é menos favorável nos seguintes países: China, África do Sul, Colômbia (mesmo conseguindo descriminalizar o aborto em fevereiro de 2022), Índia (que concedeu acesso igualitário ao aborto a todas as mulheres em outubro do ano passado), Malásia e Peru.

Nos países em que o aborto é legalizado, o medicamento é distribuído pelo serviço de saúde e pode ser comprado na farmácia. Há ainda uma sólida rede de amparo disponível, incluindo atendimento via telemedicina – que se intensificou durante e após a pandemia. "Nesses casos, a mulher está assessorada pela presença de um médico desde o momento que toma a decisão e escolhe o método medicamentoso", afirma Reis.

A cineasta observa ainda que em muitos países é possível comprar o remédio pelo correio. É o caso dos Estados Unidos, em que o recebimento domiciliar foi aprovado permanentemente pela FDA (Agência Federal do Departamento de Saúde) em dezembro do ano passado, sete meses antes da decisão Roe v. Wade ser derrubada pela Suprema Corte (o litígio judicial de 1973 permitia e regulamentava o aborto em todo território nacional).

Além disso, no último dia 3, a FDA permitiu a venda do mifepristona nas farmácias em todo território nacional, que pode amparar mulheres que queiram abortar mesmo após a revogação da decisão. No entanto, o medicamento só será vendido em estados onde o procedimento continuar permitido.

No Brasil, a circulação do remédio é feita na clandestinidade, o que só intensifica a situação de vulnerabilidade das pessoas que buscam abortar. Muitas acabam recorrendo à clandestinidade, como o caso de Elaine. Isso as expõe a outros riscos como fraude, insegurança e até morte.

Segundo Drezett, o preço de quatro ou seis comprimidos de Cytotec pode variar entre R$ 900 e R$ 1.200. "A maior parte das brasileiras não tem dinheiro para comprar o remédio. Elas são as mais sujeitas ao aborto inseguro.”

Bertholdi acrescenta que a falta do misoprostol nas farmácias mata, sobretudo, as mulheres pretas e pobres. "A falta de acesso ao medicamento leva as que não conseguem pagar por um aborto seguro a optarem, no desespero, por opções muito mais perigosas”, diz a advogada.

Liberação do cytotec para brasileiras é necessária e urgente

Para Reis, é imprescindível que a Anvisa siga os passos da OMS para reconhecer a eficácia e segurança do medicamento e, assim, criar regulamentações para que ele seja disponibilizado – inclusive para mulheres que querem realizar o aborto em decorrência de um estupro, o que é previsto por lei. “Já passou da hora de a gente fazer funcionar a lei e passar a permitir que as mulheres sejam acolhidas”, ressalta.

Bertholdi acredita que o uso de Cytotec só será de livre comércio a partir da descriminalização e regulamentação do aborto. Esses passos seriam importantes para criar uma nova narrativa para o procedimento no país, pautada na saúde e na ciência.

“O cytotec precisa voltar para as farmácias porque essa é a melhor prática para a saúde. Essa é uma forma de realização do aborto autogestionada que tem menor impacto para saúde das mulheres, para saúde pública e para os cofres públicos”, acrescenta Diniz.

*O nome foi omitido para proteger a identidade da personagem

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