Retratos

Por Mariana Gonzalez, em colaboração para Marie Claire

Há pouco mais de 70 anos, a Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, recebeu mais de 10 mil pessoas para celebrar um casamento histórico – não de celebridades, membros da política ou de alguma família real, mas de um funcionário público branco com uma jovem indígena. O motivo do frisson? Aquele era o primeiro casamento entre “civilizados” e “selvagens” – palavras usadas pelos jornais da época– celebrado no país, após uma longa disputa legal e moral movimentada pela imprensa.

A noiva, Diacuí, foi retirada aos 19 anos da aldeia Kalapalo, no Alto do Xingu, Mato Grosso, para se casar com Ayres Câmara Cunha no Rio de Janeiro, no civil e na Igreja Católica, depois de receber corte de cabelo e maquiagem em um salão de luxo e ser vestida com roupas, sapatos e colares da moda. Tudo isso sem falar português e seu noivo também sem falar uma palavra sequer em kalapalo.

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À época, a história foi contada na imprensa como um verdadeiro romance: a revista O Cruzeiro chegou a dizer que dos olhos de Diacuí “escorriam uma ternura mansa, levando ao coração do homem branco a certeza de que era correspondido no seu amor”.

A verdade, no entanto, era de que tudo se tratava de um casamento forçado, marcado por estupros, afirma o cineasta Takumã Kuikuro, que vive na aldeia Ipatse, no Parque Indígena do Xingu, e ouve a história de Diacuí desde criança, contada pelo avô, contemporâneo dela.

Agora, a história de Diacuí e outros registros feitos por fotógrafos e cinegrafistas brancos ao longo dos séculos 19 e 20 são revisitados de forma mais crítica na exposição “Xingu: Contatos”, no Instituto Moreira Salles de São Paulo. A ideia, explica Marina Frúgoli, uma das curadoras, é olhar novamente para essas imagens, mas de forma mais crítica, questionando os estereótipos que ajudaram a criar.

Estupro e casamento forçado com plateia

Diacuí tinha 13 anos quando viu Ayres Câmara Cunha pela primeira vez. Já ele, tinha 30 e estava no Xingu como funcionário do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), órgão então subordinado ao Ministério da Agricultura — Foto: IMS Divulgação
Diacuí tinha 13 anos quando viu Ayres Câmara Cunha pela primeira vez. Já ele, tinha 30 e estava no Xingu como funcionário do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), órgão então subordinado ao Ministério da Agricultura — Foto: IMS Divulgação

Diacuí tinha 13 anos quando viu Ayres Câmara Cunha pela primeira vez. Já ele, tinha 30 e estava no Xingu como funcionário do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), órgão então subordinado ao Ministério da Agricultura.

Em seu livro A História da Índia Diacuí (Clube do Livro, 1976), ele conta que a indígena passava por um ritual de passagem para a vida adulta e não poderia ser vista ou tocada por ninguém durante aquele período, mas que, encantado por ela, teria tido permissão do cacique para interromper o isolamento da garota e conhecê-la.

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Toda a narrativa é extremamente romantizada: “Seus cabelos negros e compridos desciam-lhe até os ombros, numa graça infinita, encobrindo o talhe delicado e primoroso de sua casta nudez”, escreveu o próprio Ayres, ao narrar o primeito encontro com Diacuí. No mesmo livro, ele se refere a ela como “selvagenzinha da Idade da Pedra”.

Os dois voltaram a se encontrar algumas vezes nos anos seguintes, entre as viagens do funcionário público para outras regiões, até que em 1952 ele pediu a mão de Diacuí ao cacique Kamátse – o casamento entre brancos e indígenas, no entanto, era expressamente proibido pelo Serviço de Proteção ao Índio, que chegou a abrir um inquérito para investigar o caso.

Enquanto a questão legal era debatida entre políticos, juristas e etnólogos, como Darcy Ribeiro, que era totalmente contra a união, Assis Chateaubriand, dono do Diário de Associados e da revista O Cruzeiro, dois dos veículos de maior circulação no Rio de Janeiro, viu na história uma oportunidade de vender ainda mais revistas e passou a mobilizar a opinião pública contando, em extensas fotorreportagens, cada capítulo do suposto romance.

Mas hoje, a versão que se conta entre os indígenas passa muito longe disso: Takumã Kuikuro, que assina a curadoria da exposição ao lado de Marina Frúgoli e Guilherme Freitas, diz que, na realidade, Ayres foi ao Xingu em busca de uma indígena para fazer de noiva, teve o pedido recusado por duas ou três famílias até que o pai de Diacuí autorizou a união em troca de alguns recursos, mas que ela mesma não gostava do noivo, tinha medo, se escondia dele durante as visitas.

“Para mim isso foi estupro e casamento forçado. Ela não gostava dele, tinha medo e se escondia na mata durante as visitas”, critica Kuikuro.

Com a pressão da imprensa, o casamento foi autorizado pelo próprio ministro da Agricultura, João Cléofas, pasta que chefiava o Serviço de Proteção ao Índio.

Em terras cariocas, recebeu sapatos de salto e colar de pérolas, foi levada a um salão de de luxo e maquiada de forma que seus traços indígenas foram completamente apagados

Uma comitiva de repórteres e fotógrafos foi com Ayres Cunha até o Xingu para buscar Diacuí, em avião fretado pelo próprio Chateaubriand. A jovem deixou a aldeia Kalapalo acompanhada do cacique e de dois irmãos e, quando pousaram no Rio, uma multidão os aguardava – primeiro desceram o cacique e os irmãos de Diacuí, seminus e carregando araras, e por fim a noiva, vestida, mas também carregando uma ave colorida.

Em terras cariocas, recebeu sapatos de salto e colar de pérolas, foi levada a um salão de de luxo e maquiada de forma que seus traços indígenas foram completamente apagados. O Cruzeiro, claro, acompanhou e fotografou todo o processo, e chegou a dizer que os traços da jovem indígena ganharam “um refinamento que até então desconhecera” e que, depois da transformação, ela poderia ser confundida com “qualquer grã-fina de Copacabana”.

A agitação em torno da suposta história de amor era tamanha que Diacuí foi apresentada a famosos, visitou políticos importantes, inclusive o vice-presidente Café Filho, e teve sua história publicada na revista norte-americana Time, com o título de “Pocahontas in Rio”.

“Ela foi levada daqui como se fosse um objeto. Deve ter sido uma coisa assustadora para ela”, critica Takumã.

Em 29 de dezembro de 1952, data marcada para o casamento, mais de 10 mil pessoas lotaram a Igreja da Candelária, e a noiva foi conduzida entre a multidão por ninguém menos que o empresário Assis Chateaubriand – o homem que financiou sua viagem e que, dois anos antes, trouxe a televisão para o Brasil. Entrou “assustada feito um passarinho na multidão”, como narrou o jornal O Estado de São Paulo, e teve partes de sua anágua arrancadas por pessoas que acompanhavam a cerimônia, tamanha era a vontade de tocar na jovem indígena enquanto ela seguia da porta da igreja ao altar.

Passado o “sim” diante do padre, Ayres e Diacuí voltaram ao Xingu e se instalaram numa casa de sapê fora da aldeia Kalapalo, mas próxima à região. A imprensa os seguiu, se referindo à moradia como “palácio”. Mas, em contraste com o tom típico de conto de fadas, o final da história passa longe de um “felizes para sempre”: Diacuí logo engravidou, mas foi deixada sozinha em casa a dias do parto, prematuro, e morreu em decorrência de uma hemorragia.

Quando Ayres retornou de viagem, soube que a esposa estava morta, mas sua filha havia sobrevivido – Diacuí Câmara Cunha, que recebeu o nome da mãe e o apelido de Diacuizinha, também foi levada da aldeia Kalapalo e criada pela família paterna no interior do Rio Grande do Sul.

Quando Ayres retornou de viagem, soube que a esposa estava morta, mas sua filha havia sobrevivido – Diacuí Câmara Cunha, que recebeu o nome da mãe e o apelido de Diacuizinha, também foi levada da aldeia Kalapalo e criada pela família paterna no interior do Rio Grande do Sul — Foto: IMS Divulgação
Quando Ayres retornou de viagem, soube que a esposa estava morta, mas sua filha havia sobrevivido – Diacuí Câmara Cunha, que recebeu o nome da mãe e o apelido de Diacuizinha, também foi levada da aldeia Kalapalo e criada pela família paterna no interior do Rio Grande do Sul — Foto: IMS Divulgação

A menina, que hoje tem 70 anos, cresceu sem relação com a cultura indígena. Em reportagem publicada no jornal “O Estado de S.Paulo”, em agosto de 2000, diz que “adora a cidade e detesta a selva”, e continua: “Não gosto de mosquito, não gosto de bicho, não puxei meus parentes”.

Takumã diz que, embora seja uma história que machuque seu povo, é importante contá-la justamente para demonstrar a falta de respeito e a violência do homem branco com a cultura indígena: “As novas gerações precisam desse registro, porque não pode mais acontecer”.

História foi “bandeira” para civilizar indígenas

A curadora do Instituto Moreira Salles Marina Frúgoli percebe que a história do casamento de Ayres e Diacuí foi narrada no Sudeste como uma espécie de bandeira pela civilização forçada dos indígenas, movimento apoiado pelo governo brasileiro.

“Havia um verdadeiro projeto de aculturação para as nações indígenas. O índio era considerado um empecilho ao avanço do progresso e sua imagem era incompatível com o modelo de nação desenvolvida”, reitera Helouise Costa, mestre em artes pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), em seu artigo “A fotorreportagem como projeto etnocida: o caso da índia Diacuí na revista O Cruzeiro”.

Não por acaso, em uma das entrevistas concedidas para O Cruzeiro, Ayres diz que pretendia ensinar os kalapalos a falar português e a fazer agricultura. “Estou certo de que, em pouco tempo, civilizarei toda a tribo”, afirmou.

Tanto Marina Frúgoli em entrevista a Marie Claire quanto Helouise Costa em seu artigo apontam, ainda, como Diacuí foi extremamente sexualizada ao longo de sua trajetória, tanto pelo noivo quanto pelos fotógrafos que a retratam.

Em uma de suas primeiras fotos impressas em O Cruzeiro, a jovem indígena tem seu corpo totalmente exibido em nu frontal, coberto apenas por um cordão abaixo da cintura, que não chega a cobrir sua vulva. Helouise descreve a imagem em seu artigo: “[Ayres] posa atrás dela, segurando-lhe os braços, de modo a deixá-la totalmente à mercê do olhar do fotógrafo e, em última instância, do leitor. Essa imagem pressupõe uma cumplicidade entre o sertanista e o público masculino da revista, com quem ele parece compartilhar a fantasia colonialista da posse sexual da mulher indígena pelo homem branco”.

E completa: “Diacuí é apresentada como um verdadeiro troféu nas mãos do homem-caçador”.

Marina conta que, para além das fotos de Diacuí, a produção da exposição “Xingu: Contatos” encontrou dificuldade ao selecionar fotos de mulheres indígenas no acervo do Instituto Moreira Salles que não tivessem essa representação sexualizada da nudez, já que a maioria dos fotógrafos que retrataram povos indígenas desde o século 19 eram homens brancos.

Em uma de suas primeiras fotos impressas em O Cruzeiro, a jovem indígena tem seu corpo totalmente exibido em nu frontal, coberto apenas por um cordão abaixo da cintura, que não chega a cobrir sua vulva

“Você pode imaginar o tipo de fotografia que faziam. Tem muito mais fotos de homens do que de mulheres, mas, quando elas aparecem, essa sexualização é recorrente. Algumas parecem fotos de revista de nudez”. A solução, portanto, foi substituir essas imagens por fotos mais recentes, de lideranças femininas do movimento de mulheres do Xingu.

E, embora sete décadas separem Diacuí dessas lideranças retratadas na exposição, a curadora do IMS diz que muitos elementos da história da indígena kalapalo ainda estão presentes em 2023: a apropriação do olhar da cultura não indígena sobre a cultura indígena, a objetificação do corpo das mulheres e o desrespeito à cultura indígena.

“O tempo passou, mas a sociedade não mudou tanto assim. A história de Diacuí hoje parece absurda, mas não é mais leve, não está apaziguada. O que a gente vive hoje é muito parecido no que diz respeito à violência e à violação de direitos contra os povos indígenas.”

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