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Cultura do estupro (Foto: Silvana Martins Costa)

Cultura do estupro (Foto: Silvana Martins Costa)

Tente imaginar o seguinte cenário: um homem estupra uma garota, mas o crime é anulado após ele se casar com a vítima. Parece estranho? No Código Penal brasileiro, essa era a realidade até 2005 - e isso poderia acontecer com qualquer mulher, até as que estão lendo a reportagem. Independentemente da idade dessa garota, era permitido o casamento entre estuprador e vítima, mesmo que ela fosse uma criança. O casamento de menores de 16 anos só foi proibido no país em 2019. Essas mudanças vieram tarde, mas chegaram, e isso se devem à luta das mulheres contra a cultura do estupro.

O termo “cultura do estupro” surgiu entre 1960 e 1970, época de grandes mobilizações feministas nos EUA, Europa e até no Brasil, mesmo durante o regime da ditadura militar. Em 1975 foi lançado o livro Against Our Will (Contra a nossa vontade), da autora Susan Brownmiller, que revolucionou a visão sobre violência sexual.

A psicóloga pesquisadora sobre combate à violência de gênero e fundadora do coletivo de rede de atendimento à mulher Divam, Mayara Ferreira, cita a obra e explica como a ideia do crime de estupro girava em torno de pintar os agressores como “doentes” e as vítimas como culpadas. “Estupro não é ligado ao desejo sexual, é uma questão de poder e dominação. 'Ser homem' é ligado a conseguir um bom desempenho sexual e a mulher é criada na ideia de ser estimulada, de não ter exatamente ciência do que quer”, diz.

Antes disso, as mulheres precisavam provar que tentaram resistir ao estuprador e, dependendo do que estavam vestindo, poderiam ser consideradas culpadas pelo ocorrido. A vida sexual também entrava na conta, podendo agravar ou aliviar a situação para o lado da vítima.

Dos anos 60 para cá, vimos muitas mudanças na sociedade, mas só nos últimos 15 anos as mulheres estão colhendo os frutos plantados pelas feministas da época - e a duras penas. A ideia de “cultura” engloba um conjuntos de normas e hábitos que são reproduzidos pela sociedade como um todo. Quebrar esse ciclo é mais difícil do que parece.

“Apesar de termos uma série de determinações de legislações, a cultura jurídica está também permeada pela cultura do estupro. As mulheres ainda sofrem violência institucional, muitas vezes os crimes não são investigados como deveriam. Existe uma impunidade nesse sentido”, explica a advogada Letícia Dias Ferreira, que é associada e coordenadora da Tamo Juntas, assessoria multidisciplinar gratuita para mulheres em situação de violência.

Recentemente, foram noticiados diversos casos de assédio e estupro, como o que aconteceu com a jovem Mariana Ferrer, que foi questionada inúmeras vezes sobre o que estava vestindo, por que estava em uma balada, como se comportou, se havia ou não bebido demais… assim como era feito nos anos 60. “Naturalizamos a violência. ‘Ah, uma mulher que estava bêbada’. Isso, legalmente, não está mais colocado, mas a gente ainda reproduz. Nossa luta é de mudar essa mentalidade”, diz Letícia.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado este ano, a cada 8 minutos acontece um estupro no Brasil. “Estupro não é exceção”, afirma Mayara. Ela explica que a cultura do estupro está presente no cotidiano, bem antes de falarmos sobre a violência física em si.

Vivemos em uma sociedade com normas, valores e práticas que naturalizam a violência contra a mulher. “Poder não está vinculado à fama. Socialmente, é colocado que os homens possuem uma posição mais alta na hierarquia. Mulheres, desde criança, são subjugadas na intelectualidade, nas questões vinculadas ao corpo, no que podem ou não usar. E vamos lembrar que a maior parte dos casos acontece dentro de casa, com pessoas de confiança”, continua a psicóloga.

Ela cita os machismos diários, como a famosa “cantada” na rua, que coloca o corpo da mulher como objeto para o homem. “Nós somos construídas socialmente entendendo que esse assobio é um elogio. Mas é uma violência, na qual o homem pode falar sobre seu corpo, sobre você, sem seu consentimento”, explica.

Mayara também lembra que qualquer tipo de coerção sexual é violência. O “beijo roubado”, a passada de mão sem consentimento e segurar a mulher pelo braço são alguns exemplos. “Muitos não conseguem ver que fazem algo violento no cotidiano”, explica.

O crime de estupro está previsto no artigo 213 do Código Penal Brasileiro. A lei brasileira de 2009 considera estupro qualquer ato libidinoso contra a vontade da vítima ou contra alguém que não pode oferecer resistência. Se foi contra a vontade da pessoa ou ela está desacordada é crime, não importa a circunstância. Até então, o ato só era caracterizado quando havia conjunção carnal com violência ou grave ameaça.

“Essas mudanças no Código Penal vêm para dizer que a mulher não é um objeto sexual, é um sujeito de direito, que estupro não se resume à penetração”, explica a advogada. Ainda assim, as vítimas são contestadas e minuciosamente examinadas para que seja possível a prova de que o crime ocorreu. Quando duvidamos da denúncia da vítima, estamos reproduzindo e perpetuando a cultura do estupro.

“Quando você é roubada ninguém pede para você provar que sua carteira foi roubada. Você faz um B.O e pronto, mesmo que não tenha sido roubada e só perdeu em casa. Se você for vítima de violência sexual, precisa ir ao IML, fazer uma série de exames invasivos e é contestada o tempo inteiro sobre sua dor e sua experiência”, acrescenta a psicóloga.

Para Letícia, o nosso sistema judiciário reflete o pensamento da sociedade, por isso as mulheres ainda sofrem diversos entraves para provar a violência que sofreram. “Temos um estuprador que idealizamos e uma vítima que idealizamos. O judiciário é fruto dessa sociedade. Uma vítima ideal precisa ser uma mulher que estava andando sozinha à noite, que resistiu e foi morta por isso? Não, ela pode ser uma mulher que mantenha relações habituais com o agressor”, explica e continua:

“A criminalização do aborto é, também, um símbolo de como vivemos a cultura do estupro. Que é uma relação de poder, de violência. Quando você tem essa relação de 'coisificação', você não permite que a mulher tenha autonomia sobre o próprio corpo."

O que diz a lei

A reforma do Código Penal de 2005 retira do texto o conceito de “mulher honesta”, definição do crime de rapto: “Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso”. A pena era de reclusão, de dois a quatro anos.

Também em 2005, a Lei 11.160 revogou os incisos do Código Penal que previam o casamento do estuprador com sua vítima como causa extintiva da punibilidade.

No ano de 2006, foi sancionada a Lei Maria da Penha, legislação que protege as mulheres contra a violência doméstica e familiar. Estão previstos cinco tipos de violência: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.

Além da conjunção carnal, desde 2009, atos libidinosos e atentados violentos ao pudor também passaram a configurar crime de estupro.

Em 2013 a Lei do Minuto Seguinte foi sancionada para tornar obrigatório o atendimento de pessoas em situação de violência sexual: “Os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial, integral e multidisciplinar, visando ao controle e ao tratamento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual, e encaminhamento, se for o caso, aos serviços de assistência social.”

Em reforma do Código Penal de 2018, foi incluso o crime de importunação sexual: "Praticada contra uma pessoa e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro". Um exemplo são os casos de assédio no transporte coletivo.

No primeiro ano completo de vigência da lei, 2019, foram registrados 8.068 casos de importunação sexual no Brasil.

A mesma reforma acrescentou uma nova causa de aumento de pena, punindo com mais rigor o estupro "coletivo" e o estupro "corretivo". O primeiro envolve dois ou mais agressores. O segundo, “para controlar o comportamento social ou sexual da vítima”.

Em 2019 foi proibido o casamento com menores de 16 anos. No texto anterior do Código Civil constava: "Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art. 1.517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez".

No novo texto: "Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código".

Apesar das recentes mudanças, o crime de estupro ainda é um dos mais subnotificados no Brasil. Muitas das vítimas sentem vergonha, medo do julgamento social, sentimentos de culpa e falta de confiança nas autoridades, como nas delegacias e hospitais. Além dos casos nos quais a vítima é menor de idade ou convive com o agressor, podendo ser um familiar e até o próprio companheiro.

"O silêncio é o maior aliado da cultura do estupro. O agressor conta com o silenciamento da vítima e com o descrédito dela", completa Letícia.