• Natacha Cortêz, de Buenos Aires
Atualizado em
Socorristas (Foto: Ilana Lichtenstein)

O que leva uma mulher a decidir abortar? O que leva uma mulher a ajudar, sem receber nada em troca, uma desconhecida a abortar? A argentina Liliana Piñeyro, 45 anos, talvez tenha essas respostas. Era 1996 quando, aos 22, ela decidiu colocar fim a uma gestação de oito semanas, “indesejada e fruto de uma violação” do próprio companheiro – um homem com quem tinha dois filhos, de 2 e 4 anos. Na época, tomou 12 comprimidos de misoprostol (medicação para úlcera no estômago, mas que é abortiva. No Brasil, é comercializada como Cytotec) conseguidos com um grupo de feministas. Ela nunca havia visto aquelas mulheres antes, mas sentia que podia confiar nelas de olhos fechados. “Passei a ser estuprada por esse homem no dia em que lhe informei que queria terminar o casamento. Meu medo era continuar tendo filhos quando minha maior vontade era levar uma vida longe dele. Abortar foi a minha redenção.”

É dessa história que Liliana se lembra cada vez que atende ao telefone em seu mais novo trabalho: o de ativista no coletivo Revueltas Socorristas en Red de Buenos Aires, que ajuda mulheres na capital argentina e em municípios vizinhos a abortar de forma segura e sem que sejam criminalizadas por isso. E aí, ela responde à segunda pergunta que começa este texto: “Sei o quanto uma mulher precisa de apoio quando decide interromper uma gravidez. Sentir na pele essa dor me levou a querer socorrer meus pares”.

Liliana Piñeyro (Foto: Ilana Lichtenstein)

Liliana Piñeyro (Foto: Ilana Lichtenstein)

Cecilia Musacchio (Foto: Ilana Lichtenstein)

Cecilia Musacchio (Foto: Ilana Lichtenstein)


Legal × ilegal
A lei argentina se parece com a brasileira e permite aborto em casos de estupro ou em que a mãe corre risco de vida – com a diferença de que por aqui o procedimento ainda é autorizado em gestações de feto anencéfalo. Para outras circunstâncias, o Código Penal do país vizinho estabelece de um a quatro anos de detenção para uma mulher que provoca seu próprio aborto ou consente que outro o faça. Sem o aval da gestante, a pena para a pessoa que realizou a interrupção pode chegar a dez anos. Números do Ministério da Justiça e Direitos Humanos da Nação mostram que, na Argentina, entre 2007 e 2016, 63 pessoas foram condenadas por crimes relacionados a aborto. Desse grupo, quatro mulheres foram processadas por “aborto próprio ou consentido”. Não há, porém, registros de detidas e mantidas presas no período.

Julia Burton  (Foto: Ilana Lichtenstein)

Julia Burton (Foto: Ilana Lichtenstein)

Fernanda Medina (Foto: Ilana Lichtenstein)

Fernanda Medina (Foto: Ilana Lichtenstein)

Cerca de 500 mil abortos ilegais são praticados todo ano no país, aponta um estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. Nesse montante, há registros das que morrem tentando abortar. Somente em 2016, foram 43 mulheres – o que faz do aborto a principal causa de morte materna no país. “Esses números confirmam a importância do nosso trabalho. Lutamos para que cada vez mais mulheres possam abortar sem que haja complicações ou punições”, defende Julia, que em junho de 2018, quando o Congresso argentino votava o projeto de lei que pedia o aborto livre até a 14ª semana de gestação, entregou a parlamentares uma primeira compilação de dados dos atendimentos do Revueltas.

Mariana Juárez  (Foto: Ilana Lichtenstein)

Mariana Juárez (Foto: Ilana Lichtenstein)

Wadalupe Pastorini  (Foto: Ilana Lichtenstein)

Wadalupe Pastorini (Foto: Ilana Lichtenstein)

Vale dizer: o trabalho do grupo de Buenos Aires é replicado por outros coletivos de socorristas em mais cidades do país e até no Chile, México e Uruguai. Com a diferença de que o atendimento se adapta à legislação de cada lugar. O grupo do Uruguai, por exemplo, onde o aborto é liberado até a 12ª semana de gestação, atua em regiões inóspitas, em que as mulheres estão distantes de hospitais.

Algramo, Buenos Aires 
É meio-dia de uma quinta-feira do último fevereiro. Estamos em Algramo, bairro residencial de classe média alta em Buenos Aires, para encontrar seis integrantes do Revueltas. O local é onde funciona a sede do coletivo que de abril de 2018 a janeiro deste ano ajudou ao menos 1.200 mulheres. Só na semana em que estávamos na cidade, 27 conseguiram interromper a gestação com o apoio do grupo. “Cada caso nos impacta como se fosse o primeiro”, diz Mariana Juárez, que aos 27 trabalha como telefonista em uma companhia aérea e desde 2016 atua como socorrista nas horas vagas, atendendo às ligações.

As informações passadas pelas socorristas, sobre o pré-aborto, o aborto propriamente dito e o pós-aborto, são conteúdo público e estão disponibilizadas na internet. “Tiramos de manuais da Organização Mundial de Saúde e das Federações de Obstetrícia e Ginecologia. É conhecimento certificado por órgãos oficiais. O que fazemos é colocar essa informação à disposição, e acesso à informação é um direito humano”, diz Fernanda Medina, 36, estudante de artes visuais e socorrista há um ano. Mas por instruir em uma prática proibida, elas não estariam cometendo um crime?  Não correm risco de serem processadas pelo Estado? Não. Isso porque as ativistas não participam pessoalmente do abortamento. Seu papel se restringe a informar a respeito dele. “E fornecer informação não é crime”, diz Wadalupe Pastorini, 20, socorrista em treinamento. “Orientamos as mulheres, dizemos a elas o que sabemos, apoiamos suas decisões com conhecimento e afeto, mas nunca nos envolvemos no procedimento em si. A inspiração vem da experiência das feministas italianas, que na década de 70 já faziam o que fazemos agora.”

Por estar em treinamento, Wadalupe assiste de perto à movimentação de suas companheiras. “É um trabalho que exige preparo emocional. As histórias que chegam até nós não raramente têm traços de dor.” Quando pedimos que relate um caso, se lembra de “uma paraguaia de 20 anos, empregada doméstica e grávida do patrão, com quem ainda morava junto”. “Foram quatro dias empoderando essa garota a conseguir condições para tomar as pílulas. Digo condições porque o processo pode durar mais de 12 horas, e é doloroso, tanto física quanto emocionalmente.” A jovem fugiu do emprego, foi para a casa de uma amiga e pôde realizar o procedimento. “Agora estamos tentando protegê-la
do antigo patrão e contamos com a ajuda do movimento de mulheres.”

Socorristas (Foto: Ilana Lichtenstein)

Para a compra do misoprostol, que exige receita médica, há alguns caminhos. Um deles é contar com a ajuda da Rede de Profissionais da Saúde pelo Direito de Decidir, que fazem interrupções legais e prescrevem receitas. No mercado ilegal, quatro comprimidos de misoprostol custam cerca de 5 mil pesos (aproximadamente R$ 500 no câmbio de abril de 2019). No entanto, para abortar é preciso 12. Com receita médica, eles custam cerca de 5 mil pesos. “Se acontece de uma mulher não ter o dinheiro, tiramos  do próprio bolso. Vamos acolher todas que nos buscam. Se alguma chega com gravidez avançada, tentamos ampará-la até o fim e, se assim desejar, ajudamos com o encaminhamento do bebê para adoção”, diz Liliana.

As tarefas no coletivo são divididas entre 30 integrantes. Há as que apenas fazem vigília ao lado do telefone – as telefonistas passam por um treinamento para que sejam ouvidos atentos e não expressem julgamento durante a conversa. Há as que catalogam as informações de cada mulher que procura o serviço: idade, renda mensal, se tem filhos, região onde vive, se trabalha, se já teve partos naturais ou cirúrgicos, se já abortou, se tem religião etc. Esses são conhecimentos que permitem construir os vários perfis da mulher que aborta na Argentina.

A socióloga Julia Burton, 32, é uma das catalogadoras. Seu papel é cruzar os dados e fazer deles informação qualificada, que viram ferramenta na desmistificação e educação em relação ao tema. “Conseguimos saber  que a maioria das atendidas vêm dos setores mais vulneráveis da sociedade. Colocamos por terra ideias arraigadas a respeito da mulher que aborta. Por exemplo, a de que ela não é religiosa. Em 2017, 58,3% das que acolhemos disseram crer em alguma religião”, exemplifica. Além do mais, os dados mostram a eficácia do aborto induzido pelo misoprostol. “Em mais de 95% dos casos, o procedimento é concluído no corpo sem implicações”, continua. No entanto, “se durante o processo ou 24 horas depois dele houver febre, desmaios ou sangramento abundante, pedimos que se dirijam a um pronto-socorro imediatamente. Então, serão orientadas no que dizer e no que não dizer”, diz Liliana.

Telefone e WhatsApp
O atendimento das Socorristas é feito em quatro etapas. Tudo começa com uma chamada telefônica. O número é público, está nas redes sociais do coletivo e é distribuído pelas ruas através de lambe-lambes com a seguinte frase: “Aborto: mais informações e menos riscos neste telefone”. A linha funciona das 10h às 16h; já o WhatsApp não tem pausa. As que telefonam são longamente entrevistadas na primeira conversa. “Para que possamos conhecê-las, deixá-las seguras e criarmos vínculo. Só assim comparecerão ao segundo atendimento”, diz Mariana.

O passo seguinte é uma reunião entre as integrantes do Revueltas e algumas mulheres que manifestaram o desejo de abortar. “A finalidade é que a gente as conheça pessoalmente e que elas nos conheçam, mas que ainda possam entrar em contato com quem quer o mesmo que elas. Ao verem outras na mesma situação, se sentem acompanhadas em suas decisões. Qualquer mulher pode precisar de um aborto, em qualquer momento da vida”, afirma Cecilia Musacchio, 21, estudante de trabalho social e socorrista há dez meses.

A reunião da qual Cecilia fala precisa acontecer sempre em lugares públicos, “uma praça ou um parque, por exemplo”. Essa, ela explica, é uma decisão política. “A ideia é tirar o aborto do obscurantismo, do clandestino, da culpa e da vergonha que as mulheres correm o risco de sentir.” Também por esse motivo, quando saem às ruas, as socorristas vestem perucas pink e lenços verdes amarrados ao corpo. “Queremos ser identificadas! Faz parte do ativismo em que acreditamos”, conta Cecilia. Ela garante que ninguém do grupo se sente ameaçada por realizar o trabalho. “Pelo menos na capital, onde atuamos, a mentalidade das pessoas é menos conservadora. A pressão dos grupos religiosos ou de extrema direita não chega até nós.”   

Socorristas (Foto: Ilana Lichtenstein)

É também nessa reunião que falam do misoprostol. Como e quando tomar, seus efeitos colaterais, o tempo que se leva para o aborto ser concluído no corpo. Há duas formas de se tomar o remédio, via oral ou intravaginal. O coletivo ensina que se coloque os comprimidos debaixo da língua. “É uma forma de a mulher se proteger. Um simples exame de sangue não detecta o misoprostol e, portanto, não prova que ela tentou induzir um aborto. Agora, pela vagina podem ficar restos do remédio”, esclarece Cecilia.

Ao fim do encontro grupal, as ativistas compartilham seus números pessoais com as mulheres e acompanham – sempre pelo telefone – cada uma individualmente em todo o processo. A última etapa é a ida a um posto de saúde; fase obrigatória do atendimento. “Pedimos que, uma semana após a interrupção, ela vá a um hospital e peça por uma ultrassonografia. O exame vai mostrar se o corpo está limpo e sem infecções. A fala delas deve ser ‘tive um aborto espontâneo e preciso da ultrassonografia’”, conta Mariana, que tem uma frase padrão para quando atende a linha do coletivo: “Hola, compañera, las Socorristas están aquí por ti. ¿Como puedo ayudar?”.