Ciência

Por Marilia Marasciulo

Quando pensamos em grandes descobertas científicas, é comum vir à mente a figura do gênio solitário que fica trancado no laboratório trabalhando incansavelmente em busca do momento “Eureka!”. A exclamação, que teria sido proclamada pelo matemático grego Arquimedes ao entrar em uma banheira e descobrir como calcular o volume de um objeto, representa também outras narrativas icônicas da ciência, como Newton à sombra da macieira ou o descabelado Einstein que, sozinho, reformulou toda a física. Mas não corresponde à realidade, de acordo com a astrofísica Larissa Santos, autora do recém-lançado De onde surgem as grandes ideias? (Editora Labrador).

“A ideia do livro foi desmistificar um pouco essa ideia do gênio solitário. A ciência atualmente é colaborativa, é muito mais do que um grande rompante individual”, diz a cientista, que hoje é professora do Centro de Gravitação e Cosmologia da Universidade de Yangzhou, na China. Autora de livro recém-lançado sobre o surgimento de grandes ideias quer desmistificar a imagem de gênios solitários e detalha o que considera essencial para o empreendimento científico.

Segundo a autora, o livro é como um manual informal voltado para ajudar pessoas — não só cientistas, mas profissionais de qualquer carreira — a despertarem a criatividade e, com curiosidade e colaboração, desenvolverem as suas próprias grandes ideias. É quase como um registro das boas práticas que ajudaram a brasileira a construir sua própria trajetória na ciência, da graduação em física na Universidade de Brasília até o posto na universidade chinesa.

“Todos esses itens do livro sempre fizeram parte da minha vida, como o despertar da curiosidade, tentar ler os livros originais das pessoas, ir atrás da história da ciência e fazer conexões”, explica a autora, que também é divulgadora científica no canal Bariogênese, no YouTube. A seguir, ela fala sobre a importância da colaboração na ciência e explica como a relação dela com o público a influenciou a escrever a obra. Também aborda questões como o exemplo chinês de investimento em educação e ciência e a influência da inteligência artificial na criatividade humana.

Larissa Santos é cosmóloga, professora do Centro de Gravitação e Cosmologia da Universidade de Yangzhou, na China, e divulgadora científica no canal Bariogênese. Autora de O Universo Escuro (Editora Kiron, 2016), acaba de lançar De onde surgem as grandes ideias? (Editora Labrador, 2024). — Foto: Arquivo pessoal
Larissa Santos é cosmóloga, professora do Centro de Gravitação e Cosmologia da Universidade de Yangzhou, na China, e divulgadora científica no canal Bariogênese. Autora de O Universo Escuro (Editora Kiron, 2016), acaba de lançar De onde surgem as grandes ideias? (Editora Labrador, 2024). — Foto: Arquivo pessoal

Você acaba de lançar um livro sobre a origem de grandes ideias. Então, comecemos pelocomeço: de onde veio a ideia de explorar as origens de grandes ideias?

Veio das perguntas que eu geralmente respondo nas minhas redes sociais, nas quais faço divulgação científica. Percebo que as pessoas têm uma má compreensão de como o empreendimento científico acontece. Elas acham que cientistas são grandes gênios inalcançáveis que, em um momento de inspiração divina, mudam a história da ciência. Mas não é bem assim. Uso a ciência como exemplo porque sou cientista, mas acho que em todas as áreas do conhecimento, em todas as profissões e carreiras, as ideias surgem a partir de uma construção com ideias do passado, com a comunicação com os pares. O objetivo do livro foi explicar um pouquinho sobre a construção desse conhecimento, que é muito mais do que esses momentos de “Eureka!”.

O livro tem um formato quase de manual, listando os passos essenciais para o surgimento de uma ideia. Como você resumiria o processo de criação de uma grande ideia científica?

Para mim, o ponto número um é a curiosidade. Nós temos que fazer perguntas, porque às vezes a gente passa pela vida, ou pelos lugares, meio sem prestar atenção. Precisamos começar a prestar atenção nas coisas e nas pessoas ao nosso redor. A física, por exemplo, nada mais é do que uma grande curiosidade a respeito dos fenômenos naturais. A gente tem que nutrir essa curiosidade — que é o primeiro ponto que eu discuto no livro — e mais vários outros aspectos, como as relações pessoais e o ambiente que frequentamos. Acho que existe todo um contexto para que nós possamos ser mais criativos. Várias coisas contam. Estudar muito um tema também é importante, e as pessoas se esquecem disso. Estudar é uma das coisas mais importantes para termos boas ideias, a gente tem que conhecer o que já foi feito.

E como identificar que um pensamento ou palpite pode ser, de fato, uma grande ideia?

O conhecimento é o principal, você tem que estudar muito aquele tema. Sempre dou o exemplo do próprio Einstein. Praticamente todos os conceitos da física moderna têm o dedo dele, mas porque ele era um grande conhecedor da física do seu tempo. A partir disso, ele conseguiu entender e modificar aquelas teorias. Quando você tem conhecimento a respeito de certo assunto, consegue identificar se aquela ideia faz sentido ou não. O prefácio do físico teórico brasileiro Marcelo Gleiser e suas discussões em torno da curiosidade e do conhecimento sugerem uma base filosófica para a inovação.

Como equilibrar os aspectos filosóficos com os aspectos práticos de geração e implementação de novas ideias?

Os dois aspectos andam de mãos dadas. Em uma parte do meu livro, falo do ócio criativo. Nós precisamos de tempo para pensar, amadurecer uma ideia, observar. No prefácio, o Gleiser fala que muitas boas ideias acabam na lata do lixo — acho que é uma frase do [Richard] Feynman [físico teórico norte-americano].

As pessoas acham que cientistas são grandes gênios inalcançáveis que, em um momento de inspiração divina, mudam a história da ciência. Mas não é bem assim
— Santos fala sobre de onde veio a inspiração para o seu novo livro

A gente precisa botar em prática nossas ideias. No caso da ciência, por exemplo, temos um grande modelo de cosmologia. Matematicamente, ele pode ser maravilhoso, coerente, coeso; mas, se esse modelo não corresponder à realidade, ele não servirá para a física. Essas coisas andam em conjunto. Nós precisamos de tempo para pensar sobre uma ideia e, no caso da ciência, confrontar com os dados, com o que a gente observa. Só assim podemos saber se algo realmente é uma grande ideia.

Você menciona que a história do empreendimento científico muitas vezes é contada de forma a sugerir que as grandes descobertas vêm de mentes solitárias. Por que a colaboração é tão importante para a geração de ideias inovadoras?

Hoje a ciência é muito colaborativa. É muito importante conversarmos com outras pessoas, termos relações interpessoais, de trabalho mesmo, para poder ter novas ideias, porque precisamos escutar os outros. As ideias fluem dessa maneira. E precisamos de diversidade — eu sempre bato muito nessa tecla. Todo mundo sabe que diversidade é muito importante para inovação, porque envolve pontos de vista diferentes. E, infelizmente, a ciência hoje não é tão diversa como deveria.

Pode dar alguns exemplos históricos que desafiam a narrativa do gênio solitário?

Newton, por exemplo, interagia muito com as pessoas do tempo dele. Ele trocava cartas com muitos colegas de profissão. Einstein participava de conferências e eventos, apresentava suas equações. Inclusive, tem a história do matemático Hilbert, que chegou às equações finais da teoria da relatividade antes do Einstein porque ele expunha suas ideias, conversava com outras pessoas. A teoria quântica foi extremamente debatida em vários momentos da história por todos esses “gênios solitários”.

[A] diversidade é muito importante para inovação, porque envolve pontos de vista diferentes. E, infelizmente, a ciência hoje não é tão diversa como deveria
— Larissa Santos

Bohr, Einstein — todos eles tinham uma convivência. Desde sempre foi assim. Tinha muita leitura de outros autores. Mas é claro que, antigamente, as informações não eram tão difundidas como hoje. Esse caminhar do conhecimento era um pouco mais complicado, mas estavam todos em contato. Kepler precisou das observações [do astrônomo dinamarquês] Tycho Brahe para chegar às suas equações. Não foi uma inspiração que surgiu do nada; ele se debruçou em cima de observações de uma outra pessoa por muitos anos para conseguir chegar às suas equações.

Como você vê o equilíbrio entre a criatividade individual e os esforços colaborativos na geração de ideias inovadoras?

Uma ideia relevante ou interessante talvez comece a partir de uma pessoa; mas, para essa ideia se desenvolver e não parar na lata do lixo, é preciso ter outras pessoas. Por exemplo, vamos falar de grandes experimentos científicos. Normalmente, eles partem de uma pessoa ou de um grupo pequeno. Então, pesquisadores montam o projeto, pensam e idealizam o experimento. A partir disso, muitas pessoas aderem. Caso contrário, o experimento não é possível. É um trabalho colaborativo. Precisa de financiamento, de um número enorme de engenheiros, cientistas.

Mas você sente que a gente tem na sociedade essa mentalidade colaborativa e menos individualista?

Estamos vivendo uma fase muito individualista, sim. Mas isso também muda muito de cultura para cultura. A cultura oriental é muito coletiva, e a ocidental é muito individualista. Como eu moro na China, sinto que, no Oriente, as pessoas dão muito mais valor para essa coletividade, para a ideia de que vamos crescer juntos. Acho que, aos poucos, nós temos aprendido a trabalhar mais em colaboração na ciência, porque isso é necessário para o nosso desenvolvimento. Hoje a gente vê menos artigos de um autor só, antes era mais comum. Ainda há uma briga de egos, de definir de quem é a ideia, de quem vai ser creditado primeiro. Isso existe, e acho que sempre vai existir. Mas acho que cada vez mais nós temos que entender que “juntos somos mais fortes”.

E como cultivar e estimular essa mentalidade que enfatiza a coletividade?

É uma construção. A gente tem que começar a plantar mais essa semente, porque a nossa mentalidade atual também foi plantada. Antes não era assim. A nossa sociedade foi se modificando com o tempo e se tornou muito mais individualista. Acho que foi depois da Revolução Francesa que começou a mudança de pensamento do Ocidente. Não precisa ser nem um extremo nem outro. A gente talvez tenha que encontrar um equilíbrio entre o individualismo e a coletividade. Está faltando um pouco isso no Ocidente, onde as pessoas realmente pensam muito mais em si mesmas do que no coletivo. A gente vê isso em tudo, em todos âmbitos da sociedade, na política, na carreira, na parte ambiental. [É o pensamento de que] “Não é o meu dever fazer isso, é de outras pessoas”, quando todo mundo pode fazer algo pelo coletivo. Mas isso é uma mudança que tem que ser feita aos poucos, começando na escola, com a valorização da educação.

Você destaca o papel do foco da China na educação, ciência e tecnologia no seu desenvolvimento econômico. Que lições você acha que outros países, especificamente o Brasil, podem aprender com a abordagem da China para promover a inovação?

A China investe nesse tripé; ela valoriza muito o papel do professor e o do cientista na sociedade, o que falta um pouco no Brasil. Não é só investimento financeiro, mas a valorização do profissional em todos os sentidos. A China faz isso entendendo que são investimentos cujos frutos virão mais a longo prazo, enquanto no Brasil vivemos em uma sociedade muito imediatista.

De que formas a interação com as pessoas nas redes sociais influenciou a sua própria compreensão do processo criativo e a abordagem em relação à divulgação científica?

Como cientistas, a gente acaba ficando muito fechado dentro da comunidade científica e um pouco alienado do que está acontecendo fora. Quando cheguei nas redes sociais, eu era pouco assim. Parece clichê, mas aprendo muito com meus seguidores. Venho tentando aprimorar a forma de transmitir o conhecimento. Por exemplo, no meu canal do YouTube, os títulos dos vídeos eram praticamente iguais aos de artigos científicos. E aí me falaram que a linguagem estava muito complexa. Também respondo dúvidas que eu nem imaginava que eram dúvidas.

Nós acabamos tão fechados na nossa comunidade, em que as pessoas sabem os jargões e entendem como conversamos, que perdemos um pouco a noção. E para comunicar a ciência, temos que tentar entender quais são as dúvidas, as dores das pessoas. Essa troca tem sido muito relevante pra mim. Eu nunca vou parar com a divulgação científica, porque tenho aprendido muito, tenho conhecido muita gente legal que eu não conheceria se não fosse a internet.

Como você enxerga o impacto da inteligência artificial na inovação e criatividade humana?

Acho que vai haver um trabalho colaborativo também com a IA. Temos que usar todas as ferramentas à disposição para nos aprimorar. Antigamente, todo mundo só escrevia à mão. Daí chegou a máquina de escrever, e as pessoas não queriam usá-la por medo de esquecer como se escrevia. Mas a gente continua escrevendo, só que no computador. Então podemos aliar as coisas e aprimorar.

Acho que vai haver um trabalho colaborativo também com a IA. Temos que usar todas as ferramentas à disposição para nos aprimorar”
— Santos acredita que a IA pode trazer benefícios à sociedade

Acredito muito em usar a IA para nosso benefício. Eu sei que ainda tem muita gente, principalmente na parte criativa, literatura e artes, que é um pouco avessa à interação com a inteligência artificial. Mas acho que isso é o futuro, e temos que aprender a lidar com o futuro da melhor forma. Quando saímos dos operários manuais para as máquinas, houve essa mesma discussão. Mas surgirão novos empregos, coisas novas que a gente nem imagina. Novas carreiras vão ser criadas.

No seu trabalho como astrofísica, você se depara com desafios complexos e questões que exigemcriatividade e inovação. Como você aplica os princípios discutidos em seu livro para enfrentar esses desafios na pesquisa?

Todos os itens que eu coloquei em uma checklist no final do livro são coisas que aplico na minha vida, na minha carreira. É como se fosse um manualzinho, mas baseado nas minhas experiências pessoais. Tudo o que eu fiz durante todos esses anos na física que eu achei que ajudou. Então, o próprio livro é quase um diário das minhas boas práticas para se ter boas ideias, para estar sempre na fronteira da ciência. Todos esses itens sempre fizeram parte da minha vida, como o despertar da curiosidade, tentar ler os livros originais das pessoas, ir atrás da história da ciência, fazer conexões.

Pode dar um exemplo prático?

Tem o exemplo do lugar em que trabalho hoje, que é a Universidade de Yangzhou. Quando eu estava na Universidade de Ciência e Tecnologia da China, que é uma das melhores universidades do mundo em física, eu trabalhava como pesquisadora associada com um contrato de seis anos. Só que, nessa época, eu participava de muita conferência, muito workshop; sempre dei muita palestra. E foi fazendo isso que recebi o convite para trabalhar na universidade em que estou hoje.

É um exemplo prático de como eu ter ativamente procurado essas relações com os meus pares me proporcionou oportunidades que não teriam ocorrido de outra forma — por exemplo, se eu estivesse lá trancada na minha sala e publicando monte de artigo. Tem muitos artigos sendo publicados todos os dias, então você tem que ser notado de alguma forma. E isso funciona para todas as carreiras, todos os ambientes de trabalho.

E o que fazer quando tudo dá errado? Como lidar com a frustração, como fracasso?

No começo, acho que é sempre um pouco frustrante. Mas uma coisa que sempre falo para os alunos e para as pessoas que trabalham comigo, que sempre me perguntam sobre “como chegar lá”: frustração sempre tem, dificuldade sempre tem. São muitos “nãos” para conseguir um “sim”. Isso tudo é normal, é preciso persistência. Eu não tenho outra palavra para descrever. Persistência é o mais importante, porque todo mundo se frustra. Todo mundo, em algum momento da vida, já teve alguma coisa que deu errado. Então a gente tem que persistir e fazer do limão uma limonada. Ou pelo menos tentar.

O que você espera que as pessoas tirem de lição ao terminar o livro?

Espero que o livro possa ajudar no desenvolvimento da carreira delas. Porque escrevi pensando em alunos de graduação e pós-graduação, que às vezes ficam um pouco perdidos sobre o que fazer da carreira. Queria que esse livro pudesse ajudar a dar um norte para as pessoas. Não é um guia formal, porque isso não existe. Não existe um guia para o sucesso. Se isso estiver escrito em algum lugar, corra que é cilada.

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