Sua Estante

Por Vanessa Centamori

Repórter da GALILEU e autora da coluna "Sua Estante".

Um dia depois do término de um namoro avassalador na juventude, o escritor húngaro Gabriel Waldman, de 86 anos, levou um ramalhete de flores para sua amada, no qual dizia: "para minha primeira, última e eterna namorada”. A mensagem, no entanto, não foi o bastante. Aquele amor, desde o começo, era impossível: ele era um judeu húngaro. Ela, austríaca filha do comandante do campo de extermínio de Treblinka, na Polônia. Os dois se conheceram no Brasil, ainda adolescentes, após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

A história do casal ficou escondida por mais de 60 anos em um canto doloroso da consciência de Waldman, que é sobrevivente do holocausto. Ele decidiu contar detalhes do romance e seu relato de vida — ainda que, sob invólucros ficcionais —, no livro Ingrid, a filha do comandante: sobrevivente do Holocausto revela detalhes de um dos capítulos mais nebulosos e intrigantes de sua vida, lançado em 2 de maio pela Buzz Editora.

A obra é baseada em fatos reais, mas embalada em diálogos vindos da imaginação e das memórias subjetivas do autor. O livro trata sua relação com a antiga namorada de modo misterioso, como se tivesse ocorrido em uma única fase. Entretanto, na vida real, Waldman teve dois relacionamentos com a filha do comandante nazista: um na adolescência, quando ambos tinham cerca de 15 anos de idade, e outro na vida adulta, aos 27 anos.

Na obra, o escritor expressa um profundo desejo de se reconectar com a velha amada, que ganhou o nome ficcional de “Ingrid” na narrativa. Em entrevista, o autor conta à GALILEU como a história se desenrolou na vida real: será que ele reencontrou seu antigo amor após mais de seis décadas?

Gabriel Waldman no Brasil, adolescente — Foto: Divulgação/Buzz Editora
Gabriel Waldman no Brasil, adolescente — Foto: Divulgação/Buzz Editora

Da paixonite ao coração partido

Segundo Waldman, o primeiro relacionamento com Ingrid foi um tradicional puppy love (um termo em inglês que se traduz como “amor de cachorrinho”, ou amor de adolescência). Ele não fazia ideia de quem era o pai dela, mas ela sabia que o namorado era judeu. “E o fato de que isso não a aterrorizou e continuou a namorar comigo mostrava que ela não estava nem aí com o fato de eu ser judeu”, afirma.

Assim como Gabriel, a austríaca Ingrid chegou no Brasil ainda na adolescência, como refugiada. Como ambos falavam alemão (o húngaro aprendeu a língua durante uma passagem pela Áustria), os dois se identificaram em sala de aula um com o outro e se apaixonaram. Com o término dos estudos, o rapaz e a filha do comandante nazista continuaram trocando telefonemas. Até que a relação esfriou e eles perderam contato.

Anos depois, eles se reencontraram trabalhando na fábrica da Volkswagen, onde Ingrid era secretária. Na época, ela já tinha casado e divorciado, enquanto Gabriel continuava solteiro. O pai da jovem, Franz Paul Stangl, também trabalhou na empresa (entre 1959 e 1967), na unidade de São Bernardo do Campo, e foi responsável por montar um setor de monitoramento e vigilância para espionar funcionários durante a ditadura militar brasileira.

Gabriel, com cerca de quatro anos, em Budapeste, na Hungria — Foto: Divulgação/Buzz Editora
Gabriel, com cerca de quatro anos, em Budapeste, na Hungria — Foto: Divulgação/Buzz Editora

Nesse meio tempo, Waldman teve contato próximo com Stangl e foi até na residência do assassino do Terceiro Reich, sem saber que ele era um criminoso. “Frequentei muito a casa deles, lanchava com eles, às vezes jantava”, recorda. “Enfim, eu vivi uma vida social na casa deles.”

Apesar do aparente bom convívio com a família da namorada, um dia Ingrid decidiu romper o relacionamento sem explicações claras. “Ela terminou o namoro de uma forma totalmente incompreensível”, relembra o autor húngaro. “Eu também namorei outras meninas aí casei. Aí, um dia levanto de manhã, abro o Estadão que eu recebi em casa e no jornal constava que ele [o pai dela] foi preso. Foi um golpe violento na minha vida”.

Naquele momento, Waldman descobriu a verdadeira identidade do pai de sua amada: o comandante Stangl foi responsável pela morte de 900 mil judeus. Ele chegou ao Brasil com a família na década de 1950. Viveu 16 anos na capital paulista — a maior parte dos quais atuou como supervisor da linha de montagem da Volkswagen usando seu próprio nome—, até ser descoberto, em 1967. Foi extraditado para a Alemanha em 1970, onde morreu na prisão apenas um ano mais tarde de ataque cardíaco.

Sob o teto suíço

Antes do destino cruzar sua vida com a de Ingrid no Brasil, Gabriel Waldman sobreviveu ao genocídio de cerca de 6 milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Nascido em 1938, na Hungria, perdeu o pai e grande parte dos familiares em campos de concentração na Polônia. Com o pai morto, a mãe foi uma heroína em sua vida, fazendo escolhas decisivas que salvaram a vida do filho e, consequentemente, a vida dela também.

O pai de Gabriel, à esquerda, segura-o pelo braço. Ao fundo, sua avó materna e seu tio materno — Foto: Divulgação/Buzz Editora
O pai de Gabriel, à esquerda, segura-o pelo braço. Ao fundo, sua avó materna e seu tio materno — Foto: Divulgação/Buzz Editora

A mãe tinha um tio médico que os permitiu se refugiarem no prédio da embaixada da Suíça — país neutro na guerra, assim como Espanha e Vaticano. De acordo com Waldman, o pequeno prédio de dois ou três andares cabia, razoavelmente, de 50 a 60 pessoas, mas chegou a abrigar cerca de 600 indivíduos perseguidos pelos nazistas. O espaço era tão apertado que havia turnos para dormir: enquanto alguns fugitivos cochilavam, outros só conseguiam ficar de pé, de vez em quando acocorados. Nem sentar era possível.

Waldman tinha apenas seis anos de idade. Sua mãe conseguiu corajosamente explicar a ele — ainda que apenas um garotinho — a regra terrível de turnos para dormir. “Nessa época, as crianças se transformavam em adultos prematuros. Ela conseguiu dar um jeito”, afirma ele, que considera as condições de fome e frio na embaixada subumanas — mas, claro, ainda melhores que as de um campo de concentração.

Corpos no Danúbio

Enquanto isso, o Exército Soviético já estava cercando a capital húngara. “A Batalha de Budapeste, quando os russos chegaram à Budapeste, o auge da guerra para nós, foi dezembro de 1944 até janeiro e fevereiro de 1945. Nesse período, você não pode nem imaginar a terrível penúria que nós passamos”, diz o sobrevivente. “Eu comia, por exemplo, quando tinha comida, o que era raro, e comia muito pouco.”

Anos antes, em 1942, a família de Waldman já passava por muita fome. Eles tiveram que despedir uma empregada, pois judeus foram proibidos de terem empregados. Mas a ex-funcionária morava perto da casa deles e dividia seu cartão de racionamento com os ex-patrões para que tivessem alimentos. Um dia, ela quebrou ambos os braços em um bombardeio e por duas ou três semanas não pôde compartilhar o pouco que tinha para alimentá-los. “Nesse momento eu descobri o que era fome de verdade. Minha mãe pensou que eu ia morrer", relata o húngaro.

Gabriel, com cerca de um ano, à beira do rio Danúbio — Foto: Divulgação/Buzz Editora
Gabriel, com cerca de um ano, à beira do rio Danúbio — Foto: Divulgação/Buzz Editora

Por ser judia, a família de Gabriel não tinha direito ao racionamento de comida. “Veja, resumindo: o judeu só tinha um único direito: o direito de morrer. Mais nada”, afirma o escritor. “A cidadania foi revogada. Não podia trabalhar em lugar nenhum. Não podia ter relacionamento. Tinha que morar em guetos ou ser levado para campo de concentração”.

Por uma decisão instintiva, a mãe de Gabriel conseguiu levar o filho a tempo para o prédio da embaixada da Espanha na Hungria poucos dias antes de um massacre acontecer com os fugitivos do prédio suíço. Várias pessoas que o garoto conheceu na dependência suíça — incluindo crianças com quem fez amizade — foram levadas para serem mortas no rio Danúbio durante um dia congelante de dezenas de graus negativos.

“A procissão rumava direto para o Danúbio, onde até mesmo os salgueiros perfilando ao longo do rio com suas ramagens tristonhas vergadas acariciando as águas sabiam o que aconteceria em seguida: divididos em grupos de dez, eles seriam amarrados como ramalhetes de flores, com arame farpado. Um deles seria fuzilado, e o grupo, arremessado no rio. O cadáver puxaria todos para o fundo”, descreve o autor em passagem de seu livro, segundo relatos que ouviu.

A escrita contra a solidão

O fim da Segunda Guerra não significou a paz. Como a água de Budapeste vinha do rio Danúbio, ela não era mais bebível, afinal estava contaminada por cadáveres e os filtros foram destruídos por bombas. Além disso, o pai de Waldman estava morto. Conforme o tempo passava, a esperança de que ele voltaria para a casa diminuía. “Meu pai morreu devagar, morreu através dos dias, semanas e meses que se passavam”, diz o escritor, que eventualmente recebeu a notícia sobre a morte por meio de um conhecido que esteve em um campo de concentração.

Casamento dos pais de Gabriel — Foto: Divulgação/Buzz Editora
Casamento dos pais de Gabriel — Foto: Divulgação/Buzz Editora

Com a invasão soviética, implantou-se o comunismo na Hungria “na sua vertente mais cruel, que era o stalinismo”. Uma de suas poucas memórias do período comunista no país é sobre a escola. Como estudante, ele não era dos melhores, mas sempre tirava nota 10 em história da Hungria. Até que, certo dia, o aluno voltou para a casa com um boletim nota 5 na matéria, assustando sua mãe.

Durante uma reunião de pais e mestres, a resposta de seu professor foi chocante: “O professor apenas levantou, fechou a porta, voltou a sentar e disse o seguinte: ‘nós recebemos ordens do partido comunista de que filho de burguês não pode ter nota acima de cinco".

O regime de Stálin começou a perseguir as crianças — e lá se foram as chances de Waldman fazer faculdade. Isso foi mais um sinal para a mãe dele achar contrabandistas de seres humanos e fugir da Hungria. Em 1949, Waldman e sua guardiã foram para a Áustria.

No novo país, a situação também era difícil e eles moraram em um hotel de qualidade questionável. “Eu não tinha família: foi exterminada e os poucos dos familiares que sobraram ficaram na Hungria”, diz o escritor. “Minha mãe teve que trabalhar desde o primeiro dia, nós éramos indigentes praticamente. Não tinha escola, eu não falava a língua, e eu não conhecia a cidade, que era Viena, no caso.”

Jantar de casamento dos pais de Gabriel (ao fundo). Na fileira de baixo, a família de sua mãe; na de cima, a família de seu pai, da qual ninguém sobreviveu ao Holocausto — Foto: Divulgação/Buzz Editora
Jantar de casamento dos pais de Gabriel (ao fundo). Na fileira de baixo, a família de sua mãe; na de cima, a família de seu pai, da qual ninguém sobreviveu ao Holocausto — Foto: Divulgação/Buzz Editora

Sem saber falar alemão, o húngaro de 11 anos de idade se sentia isolado. A única coisa que fazia era escutar a a água quente na tubulação vizinha. Como sempre fora ávido leitor, a solidão deu-lhe a ideia de escrever seu primeiro romance. Ele guarda até hoje os escritos desse primeiro livro, redigidos em máquina de escrever, e considera: “Foi o que eu consegui fazer para não enlouquecer”.

Nova vida no Brasil

Sua mãe procurou países fora da Europa que aceitassem emigrantes e, em 1952, aos 14 anos, Waldman chegou ao Brasil.

O jovem, que aprendeu a falar alemão com os austríacos, teve que recomeçar a vida mais uma vez sem conhecer o português brasileiro. A mãe se casou novamente por volta de 1954 e o adolescente descobriu, pela primeira vez, o que era viver em normalidade, longe da guerra.

Cerca de dois anos depois que Ingrid terminou seu segundo namoro com ele, o autor não desistiu do amor: se casou novamente, desta vez com uma italiana chamada Simona.

Já idoso, pouco antes da pandemia de Covid-19, se encontrou com seu amigo Celso Lafer, que é ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil, membro da Academia Brasileira de Letras e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP).

Lafer tinha em sua mesa um livro que cita o pai de Ingrid e Waldman lhe contou toda a sua história com a garota, lembrando que chegou a apresentá-la no passado ao ex-ministro. Impressionado, o amigo o incentivou a escrever sobre o assunto, mas Waldman não pensou muito sobre a ideia. Só no dia seguinte recebeu um e-mail com uma frase de Isak Dinesen (pseudônimo da dinamarquesa Karen Blixen): “Toda grande dor pode ser suportada se você escrever sobre ela”.

A frase não só introduz o livro de Waldman, como também o resume de certa maneira. Ao escrevê-lo, o escritor começou a lembrar de várias coisas que lhe ocorreram, notando, inclusive, a resiliência de sua mãe, que o salvou de ir para um campo de extermínio. Ele observou ainda como seu antigo amor, Ingrid, pode ter sido outra heroína importante em sua história.

“Pode ser que ela salvou minha vida. Pode ser, não sei como foi, mas é bem possível que ela ao me abandonar, ao me largar, tenha salvo a minha vida”, explica o húngaro. Para ele, indivíduos que protegiam o pai dela no Brasil podem ter dado à garota duas opções caso ela continuasse o namoro com o judeu: abandonar o próprio pai dela ao seu destino ou aceitar que o namorado seria morto.

E a “Ingrid”?

O escritor queria muito reencontrar Ingrid na velhice, mas por muito tempo nem sequer sabia se ela ainda estava viva. No livro Ingrid, a filha do comandante, Waldman até relata um devaneio seu, no qual imagina a mulher como a enfermeira do hospital onde ele esteve internado após sofrer um AVC.

O desfecho desse “filme” da vida real foi bem diferente. Em 2023, logo após ser entrevistado pelo podcast Inteligência Ltda, o húngaro atendeu uma ligação de um parente de Ingrid. Ele recebeu esse indivíduo em sua casa para uma conversa amigável. “Falamos civilizadamente por um bom tempo e eu disse que queria muito reencontrar a Ingrid”, confidencia o escritor, com exclusividade à GALILEU.

O parente disse que iria conversar com a austríaca sobre o assunto. Ele não deu certeza de que ela gostaria de falar com Waldman, já que a família dela ficou profundamente traumatizada com a história toda da guerra.

Infelizmente, Ingrid optou por não encontrar seu antigo namorado. Ele aceitou a escolha dela em respeito à sua privacidade. Inclusive, por isso escolheu usar o nome ficcional para ela no livro.

Na obra e na vida real, o escritor fala com muito apreço desse amor que o marcou profundamente. Se pudesse falar com sua antiga namorada, diria que ela é uma “pessoa absolutamente independente em termos de configuração da alma, da psicologia, da mente" do pai dela, o comandante nazista. E reforça: “Você não tem nada a ver com aquilo. Eu te respeito profundamente como ser humano e como amiga que você era”.

Além de viver um amor impossível no Brasil, Waldman se formou como Administrador de empresas pela Fundação Getulio Vargas (FGV). Participou de uma sessão especial no Senado em 2023 que homenageou as vítimas do holocausto (assista ao seu discurso aqui). É casado há 57 anos com sua esposa italiana, com quem teve dois filhos e três netos. “Quando eu olho para eles, eu penso: eu venci Hitler! Eu venci a batalha!”, diz.

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