Política

Por Marília Marasciulo

O mundo está em guerra. Além da guerra na Ucrânia, que completa dois anos no próximo dia 24 de fevereiro, há pelo menos outros 110 conflitos armados acontecendo no mundo, segundo o monitor da Academia de Direito Internacional Humanitário e Direitos Humanos de Genebra. Alguns são internos; outros, têm impacto global e ganham a atenção da mídia.

É o caso da situação em Gaza, que desde o início de outubro passado vem sendo bombardeada e bloqueada por Israel como retaliação a ataques do Hamas, grupo fundamentalista islâmico que controla a região.

E também das tensões crescentes no Mar do Sul da China — hidrovia vital para o comércio internacional que vem sendo alvo de disputa entre países da região, como Filipinas, Malásia, Vietnã e Brunei, além de interferência dos Estados Unidos (que defendem que as águas são cruciais para seus interesses nacionais).

Perto do Brasil, há a disputa entre Venezuela e Guiana pela região do Essequibo, que remonta a 1814 e esquentou no fim de 2023. “Isso para o Brasil é um cenário bastante indesejável, uma vez que traz potências extrarregionais para se imiscuir numa região até então pacificada, que é a porta da nossa Amazônia”, observa o especialista em geopolítica Ronaldo Carmona, professor da Escola Superior de Guerra (ESG).

Na avaliação de Carmona, que é também senior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), o mundo tem hoje diferentes fatores e pontos de tensão que podem levar ao agravamento dos conflitos em curso ou mesmo ao surgimento de novas guerras.

Entre eles, a corrida por minerais necessários para a transição energética e o desenvolvimento da inteligência artificial generativa. “Nós estamos vendo conflitos generalizados por toda a parte. Mas, atualmente, o grande confronto se dá entre Estados Unidos e China em torno do domínio das tecnologias, que é um fator absolutamente crítico para definir quem será o bloco hegemônico no sistema internacional”, opina.

Para piorar, na visão do especialistas, há um enfraquecimento das Organizações das Nações Unidas (ONU) e do sistema multilateral de diplomacia, que visa a cooperação de um grupo de países em torno de uma agenda de interesse comum. “Cada vez mais a gente vê que todas as grandes potências concordam com as regras multilaterais até o limite em que seu interesse nacional direto seja atingido”, destaca.

As consequências disso são incertas: da radicalização de populações ao restabelecimento de uma ordem unipolar — ou o oposto, com a multipolarização do poder global. A GALILEU, Carmona fala sobre os fatores que provocam conflitos, as mudanças da natureza das guerras e a distante possibilidade de paz mundial.

Embora os conflitos que mais apareçam na mídia atualmente sejamos na Ucrânia e em Gaza, há guerras acontecendo em outros lugares também, inclusive na América Latina. Como você avalia estemomento que vivemos?

O cenário geopolítico global é bastante grave neste início de 2024. Nós temos a continuidade da tensão no Mar do Sul da China, as eleições em Taiwan e essa novidade no norte da América do Sul, na região do Essequibo. Além disso, há impasses sobre a questão da transição energética. Vemos a renovação de uma corrida à África e, em alguma medida, também à América do Sul, por causa dos minerais críticos para a transição energética.

Por muito tempo, o mundo tinha uma dependência crônica do petróleo. Hoje, corre-se o risco de uma corrida pelo domínio desses materiais que viabilizam os instrumentos necessários para a transição, então pode haver grandes conflitos por causa disso.

Outro problema que desponta é o desenvolvimento da inteligência artificial, em especial a generativa, que tem um grande impacto inclusive sobre a possibilidade de uso para a manipulação das sociedades.

Neste ano, haverá eleições em dezenas de países do mundo, avalia-se que 4 bilhões de pessoas irão às urnas. E aí é preciso ter uma atenção para o ambiente interno dos Estados Unidos, onde a possibilidade de retorno de Donald Trump é bastante real, diria que inclusive é o mais provável; e para a Europa, onde temos uma sucessão de crises, por exemplo, na Alemanha, na França e na Inglaterra. Então, temos ambientes internos muito conturbados, que acabam afetando também os conflitos já em curso.

Ronaldo Carmona — Foto: Arquivo pessoal
Ronaldo Carmona — Foto: Arquivo pessoal

Que fatores contribuíram para esse cenário?

A gente tem que começar com uma visão sobre o conjunto da obra e o momento sistêmico que a gente vive no mundo. Com o final da Guerra Fria [1945-1991], a vitória dos Estados Unidos e do bloco ocidental teve como contrapartida a ascensão da China. Passo a passo, a China adquiriu a condição de um rival sistêmico dos Estados Unidos, a ponto de hoje observarmos uma guerra tecnológica entre Estados Unidos e China exatamente pelo domínio das tecnologias que estão viabilizando a quarta revolução industrial.

Porque quem dominar essas tecnologias irá ganhar uma posição de dominância do ponto de vista do poder e da geopolítica mundiais. Então, o pano de fundo é esse declínio relativo do bloco ocidental, liderado pelos Estados Unidos e simbolizado pelo G7 [grupo formado por Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá], e a ascensão de um conjunto de países liderados pela China. É um ambiente de multipolaridade, onde o poder mundial é mais diluído e, portanto, dá margem para maiores conflitos entre os diversos polos de poder.

Sabemos que cada conflito tem suas particularidades e motivações específicas, mas quais costumam ser as principais causas de confrontos de escala global?

No geral, todos os grandes países têm uma sensibilidade muito forte no que diz respeito a sua soberania e integridade territorial. A guerra na Ucrânia, por exemplo, é um paralelo muito grande com a Crise dos Mísseis, de 1962, quando a União Soviética colocou mísseis em Cuba e os Estados Unidos consideraram aquilo uma ameaça existencial. A causa principal da deflagração da guerra na Ucrânia teve a ver com a percepção russa de que a adesão ucraniana à Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] representaria um risco existencial à Rússia.

E isso não é novidade. Aliás, as últimas três invasões à Rússia, seja na Segunda Guerra Mundial [1939-1945] por Hitler, seja antes por Napoleão [no século 19], foram perpetradas por essa franja territorial que fica ali na região da Ucrânia. Mesma coisa a China com Taiwan, que historicamente é parte integrante da China. Poderia falar do Brasil também, onde a Amazônia é a parte mais sensível do território, por isso esse conflito que apareceu no norte [entre Venezuela e Guiana] gerou uma enorme preocupação.

“O desenvolvimento da inteligência artificial, em especial a generativa, tem grande impacto sobre a possibilidade de uso para manipulação das sociedades”
— Calmona analisa fatores que contribuem para conflitos atuais no mundo

Um dos maiores temores globais é uma terceira guerra mundial. No início da guerra na Ucrânia, houve muita especulação sobre essa possibilidade, o que não se concretizou. Na sua visão, que ameaças poderiam desencadear um conflito dessa proporção?

Em certa medida, já observamos um conflito mundial em larga escala que, em alguns lugares, deriva em guerras cinéticas, enfrentamentos mesmo. Hoje, por exemplo, o que a gente vê na Ucrânia é um enfrentamento entre a Otan e a Rússia. E é mais amplamente a Rússia com o apoio de vários outros polos de poder do chamado Sul Global.

No Oriente Médio, temos o risco de uma escalada exponencial do conflito entre Hamas e Israel, levando a um cenário de conflito generalizado. Você vê declarações mais recentes do exército de Israel dizendo que eles estariam ajustando a postura para se concentrar agora na eliminação do Hezbollah no sul do Líbano, o que é extremamente perigoso.

Então, na prática, já estamos vendo conflitos generalizados por toda a parte. Alguns na forma de conflitos indiretos, guerras por procuração entre as grandes potências, mas que certamente pode haver erros de cálculo e derivar num conflito aberto. Atualmente, o grande confronto se dá entre Estados Unidos e China em torno do domínio das tecnologias, que é um fator absolutamente crítico para definir quem será o bloco hegemônico no sistema internacional no próximo período.

Como a natureza das guerras evoluiu ao longo do tempo, considerando os avanços tecnológicos e as mudanças geopolíticas?

Nos últimos anos — e quiçá décadas —, podemos observar tanto continuidades quanto mudanças na forma da guerra. Certamente, as tecnologias impactaram bastante a forma da guerra, mas o elemento humano continua sendo determinante do ponto de vista de conflito. Você não pode dizer que a tecnologia substituiu a importância das pessoas no conflito.

Agora, o que você tem de novidade é uma hibridização cada vez maior da guerra: a utilização de mecanismos não cinéticos ou formas indiretas que por vezes acabam tendo como consequência o mesmo efeito. Por exemplo, mecanismos de informação, mecanismos cibernéticos, psicossociais.

E ainda a influência das redes sociais, que agora vai se agravar com essa questão da inteligência artificial, como forma de quebra da coesão nacional do país adversário, de desestabilização do país adversário. É algo cada vez mais em pauta. Nós vemos isso por toda parte, essas operações psicológicas que remontam aos primórdios da guerra, mas hoje o uso da internet e das redes sociais facilita as condições para que os instrumentos indiretos sejam algo eficiente do ponto de vista dos confrontos contemporâneos.

“Na prática, já vemos conflitos generalizados. Alguns indiretos, guerras por procuração entre as grandes potências, mas que certamente pode haver erros de cálculo e derivar num conflito aberto”
— Calmona reflete sobre possíveis fatores que levariam a uma “terceira guerra mundial”

Quais as consequências a longo prazo de tantas guerras?

Quanto mais a guerra dura, mais as populações se radicalizam. No caso de Gaza, essa radicalização corre o risco de se espalhar. Você já vê milícias bloqueando um checkpoint, um dos pontos de passagem mais importantes do mundo. Há risco de inclusive arrastar o Irã para o conflito e gerar uma questão que poderia ser altamente dramática, que seria o fechamento do Estreito de Ormuz [no Golfo Pérsico]. Isso poderia, por sua vez, jogar o preço do petróleo para a estratosfera.

Então, esse problema no Oriente Médio pode escalar, pode se tornar ainda mais grave do que já é. Como se já não fosse grave os 23 mil palestinos que morreram nos bombardeios e os 1.200 israelenses mortos nas ações iniciais do Hamas. Na situação em Gaza, temos visto uma grande queda de braço por um cessar-fogo entre a ONU e os Estados Unidos e Israel.

Quão eficaz é a diplomacia internacional na prevenção ou resolução de conflitos?

Esse é outro aspecto importante da situação internacional: a crescente irrelevância das Nações Unidas e do sistema multilateral. Cada vez menos a ONU tem condições de fazer valer sua vontade. Exatamente porque cada vez mais a gente vê que todas as grandes potências concordam com as regras multilaterais até o limite em que seu interesse nacional direto seja atingido.

Há uma contradição entre o interesse nacional e o multilateralismo. Eu poderia dar aqui muitos exemplos disso, desde os ataques dos Estados Unidos que levaram à deposição de Saddam Hussein até a absoluta incapacidade do Conselho de Segurança [órgão da ONU formado por 15 países membros] de intervir em aspectos críticos da situação internacional: primeiro no problema da guerra na Ucrânia, agora no Oriente Médio. O mundo de hoje não tem dado espaços para a diplomacia.

O Brasil costuma ter um papel de destaque na diplomacia internacional. Na sua visão, Como estamos nos saindo diante dos conflitos atuais?

Esse cenário que se observa no mundo exige um reposicionamento do Brasil. Nós vivemos uma realidade nova no cenário internacional e a gente precisa, portanto, reposicionar nossa grande estratégia para criar condições mais favoráveis ao nosso próprio desenvolvimento e ascensão como país. Para isso, o Brasil precisa observar as tensões, sobretudo as que envolvam nosso território e nosso entorno regional. Daí porque essa situação de agravamento da situação de segurança na América do Sul é bastante grave do ponto de vista brasileiro.

E o Brasil também precisa perceber que tem de adotar uma postura ativa no que diz respeito aos seus próprios interesses, não nos cabe ser parte de um dos blocos em disputa no mundo. Nós temos muitos fatores de força: somos uma potência energética, uma potência agroalimentar, um país com grande capacidade em termos aquíferos e de minerais críticos.

Por isso quero dizer que o Brasil precisa ter uma grande estratégia, porque num cenário de multipolarização do mundo, somos grandes demais para caber no projeto de outros. Temos uma população gigantesca, um território enorme. Precisamos de uma estratégia que atenda nossos próprios interesses nacionais.

“O Brasil precisa perceber que tem de adotar uma postura ativa a respeito de seus interesses, não nos cabe ser parte de um dos blocos em disputa no mundo”
— Ronaldo critica postura brasileira perante conflitos atuais

Considerando o estado atual dos conflitos globais, na sua visão, quais podem ser as consequências a longo prazo para as gerações futuras?

Essas disputas de poder que se travam hoje no mundo poderão tomar diferentes caminhos. Poderemos ver uma renovação de um cenário unipolar, com a hegemonia de uma potência ou de um bloco de potências.

Atualmente, por exemplo, tanto os Estados Unidos quanto a Europa no âmbito da Otan não aceitam esse declínio ou essa mudança no balanço de forças mundiais sem reagir, pelo contrário. Hoje, os Estados Unidos têm um ambicioso programa de reindustrialização apoiado em inovação, ciência e tecnologia, que justamente busca resgatar sua posição no cenário internacional. Mesma coisa a Europa.

Por outro lado, você também tem esse bloco de países, que a gente pode sintetizar como BRICS “ampliado” [Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos], pois agora passou a ter dez países, que também busca uma condição de polarização.

O cenário que vejo pode ter vários desfechos em torno desse problema do balanço de poder mundial, do restabelecimento de uma ordem unipolar ou até um cenário que é de maior interesse para o Brasil, que é um cenário de multipolarização.

Por outro lado, também enxergo que o problema dessa guerra tecnológica que se trava hoje no mundo em torno do domínio dessas tecnologias críticas que viabilizam a revolução nas forças produtivas também terá um impacto determinante sobre a estrutura de poder mundial. Não por acaso, você tem essa corrida gigantesca em torno da inteligência artificial, da robotização, do domínio de dados.

O desfecho dessa disputa é absolutamente incerto. E é exatamente por não ter uma definição que acho que ao Brasil cabe manobrar e ver as condições mais favoráveis ao seu próprio projeto nacional de desenvolvimento.

Diante de tudo isso, quão realista você diria que é sonharmos com a paz mundial?

A aspiração da paz mundial é uma aspiração universal de todos os seres humanos. Mas isso, infelizmente, se choca com essa natureza estrutural do sistema internacional, que é o fato de que os Estados nacionais observam os seus interesses em primeiro lugar.

Agora, a aspiração humana pela paz mundial é uma bandeira atualíssima que acho que deve seguir mobilizando os povos. Deve seguir sendo uma aspiração de todo mundo, porque é uma aspiração nobre e que tem a ver com a necessidade de resolução dos problemas estruturais mais profundos que o mundo vive para dar possibilidade à paz mundial. Sobretudo o problema da desigualdade entre os países.

É necessário equilibrar as condições de desenvolvimento para que todos tenham acesso às grandes conquistas humanas, inclusive as conquistas científicas, que não podem ser apropriadas por um punhado de países. Então, a paz mundial passa por uma maior equidade do desenvolvimento em escala mundial entre todos os países.

Mas o cenário atualmente em curso é de conflitos intensos, então o Brasil deve se preparar nos próximos anos, e mesmo nas próximas décadas, para um cenário de confrontação, porque, infelizmente, essa é a realidade que a gente observa nas grandes tendências internacionais de hoje.

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