Violência de Gênero
Por , redação Marie Claire — São Paulo (SP)


'Vou te enterrar e fechar a tampa do seu caixão': os relatos de duas mulheres que dizem ter sofrido violência doméstica pelas mãos de cônjuges policiais — Foto: João Brito
'Vou te enterrar e fechar a tampa do seu caixão': os relatos de duas mulheres que dizem ter sofrido violência doméstica pelas mãos de cônjuges policiais — Foto: João Brito

O que acontece quando o algoz com quem se divide a casa é alguém que, em tese, deveria ser responsável por proteger o bem-estar da população? A professora Shirley*, 43 anos, diz que conhece bem esse dilema. Por cinco anos, ela afirma ter vivido um relacionamento abusivo repleto de ameaças de morte e violências física, psicológica e processual. O autor dessa violência doméstica, diz, é seu ex-marido, Rodolfo*, que atua na Polícia Civil do Rio de Janeiro.

Por mais que tenha se sentido receosa de engatar um namoro com Rodolfo – a impressão que ela tinha era de que policiais tendiam a ser sempre corruptos –, decidiu dar uma chance.

As primeiras violências nunca eram direcionadas a ela. Shirley via Rodolfo como um marido esquentado, daqueles que perde a cabeça fácil, bate boca com garçons e está longe de ser um bom exemplo no trânsito – pelo contrário, costumava dirigir de forma perigosa, culpando o costume de pilotar viaturas.

Foi enquanto estava grávida do primeiro filho com Rodolfo – ela já tinha outro de um antigo relacionamento – que Shirley quis dar um basta na relação, depois de vê-lo chamar a mãe de “retardada” por ter lhe comprado uma cadeira. "Disse que se ele fez aquilo com a mãe, faria comigo. Cheguei a terminar, mas ele deu a desculpa de que a mãe o irritava. Morávamos todos juntos e ela era mesmo uma pessoa invasiva. Dei uma nova chance.”

A professora se tornou alvo direto quando se mudaram para uma casa só deles. De acordo com ela, era comum vê-lo jogar seus pertences no chão, xingá-la ou fazer gaslighting, como pegar o filho na mão e sair andando no shopping, deixando-a para trás, sem explicações.

O nível passou para a violência física e ameaças de morte – algumas presenciadas por uma terapeuta de casal que os atendeu. “Quando eu chegar em casa, vou te encher de porrada”, “vou te matar” e “vou te enterrar e fechar a tampa do seu caixão” são algumas das frases que Shirley diz ter escutado do ex. O ápice, no entanto, foi quando ele usou uma arma de fogo para ameaçá-la.

“Ele gostava de dizer que faria parecer um acidente e que conhecia os peritos da Delegacia de Homicídios para me intimidar. Ele tinha certeza de que seria protegido. Me colocava abaixo do cocô do cavalo do bandido, mas queria manter o casamento para poder fazer esse jogo perverso de poder e controle.”

No DF, 70 agentes foram acusados de violência doméstica

Os dados para entender a expressão da violência de policiais e ex-policiais contra suas parceiras são escassos. Mas, para se ter ideia, entre janeiro e julho de 2019 – antes da pandemia começar e os índices de violência de gênero crescerem ainda mais –, o Distrito Federal apreendeu 41 armas de agentes suspeitos de violência doméstica dentro do território. E mais: no mesmo período, 70 agentes foram acusados pelo crime, incluindo policiais, bombeiros e agentes penitenciários.

Seria ingênuo afirmar que a profissão de um homem é um dos definidores sobre se ele é ou não um agressor de mulheres. Os índices alarmantes de violência contra mulheres e feminicídios que assistimos ano após ano é um lembrete de que violência doméstica não vê classe social, religião, etnia, raça, orientação sexual, idade e nível de escolaridade. O motivo por trás dela é o ódio a mulheres e a lógica de poder, imposta pelos papeis de subserviência das mulheres e dominação dos homens

“O ponto crítico aqui não é a profissão, mas utilizar a condição de policial como forma de atemorizar a mulher”, explica Fabíola Sucasas, promotora de justiça do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) e coordenadora do Núcleo de Gênero. “A opressão se intensifica a partir de vulnerabilidades da vítima e dos instrumentos de coerção do agressor.”

‘Pode ficar tranquilo. Vou te ajudar’

Por serem vistos como os responsáveis pela manutenção da ordem e pelo serviço de proteção, policiais são socialmente encarados sob a ótica do heroísmo, da integridade e símbolo máximo do poder. Seriam a personalização do que é a lei – ou assim muitos pensam ser.

Em relacionamentos abusivos envolvendo agressores que são agentes de segurança pública, esses mecanismos podem ser usados como forma de intensificar as violências, seja com maior alcance a proteção interna, seja pela possibilidade de minar ainda mais a vítima do pedido de ajuda. “Uma vez, assumi o caso de um delegado federal que estava sob medida protetiva. A postura dele diante do juiz em uma das audiências foi reforçar esse lugar de ‘autoridade’, de querer se impor sobre a vítima”, lembra Sucasas.

“Vejo que existem duas vertentes nessa relação: o uso do poder de influência e da força como potencializador da coerção, além de mais recursos de intimidação, contra o sentimento de maior vulnerabilidade da vítima de acesso a recursos de proteção e direitos.”

Além do acesso aos mecanismos de proteção dentro do sistema e de conhecimento sobre as leis, a promotora diz que o porte de arma de fogo é uma preocupação das vítimas. Não é infundada: lançado neste ano, o Raio-X do Feminicídio, do próprio MP-SP, considera que, por mais que armas brancas sejam mais utilizadas em feminicídios, há mais chances de o crime ser consumado se o agressor tiver arma de fogo.

Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) corroboram isso. "Assim, ainda que nos casos de feminicídios, a arma branca seja a mais frequente, responsável pela metade das mortes, a arma de fogo foi o instrumento utilizado em 26,3% dos casos [em 2022]", aponta o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Outra grande preocupação está relacionada aos canais de denúncia – e a efetividade de aplicação da lei quando quem está sendo denunciado é um policial. “Isso gera insegurança de que as vítimas terão atendimento adequado. Existe muito medo de que os agressores se utilizem da sua posição e do seu poder para prejudicá-las”, ressalta Sucasas.

Shirley diz que foi exatamente isso o que aconteceu com ela. Primeiro, teve de desmentir uma denúncia anônima, que acredita ter sido feita por um vizinho que ouvia as violência, contra sua vontade. Rodolfo foi quem recebeu a intimação. Ele passou uma semana preparando o que ela deveria dizer em seu depoimento para negar as situações descritas. “Deve ser coisa de amante”, ouviu da policial mulher que a atendeu, depois de Shirley ter feito o que o ex-marido mandou.

No dia em que decidiu romper de vez o casamento, Shirley foi agredida com socos e puxões de cabelo na casa dos sogros. “Chamei a Polícia Militar dentro da casa dele, apanhando. Ele me tirou de lá aos chutes e me escondi na escada do prédio. A polícia demorou, e tive que ligar de novo implorando para que viessem”, lembra.

"Eles [os PMs] sequer subiram ao apartamento por se tratar de um policial. 'Melhor não subir. Ele tem arma, não vai dar', disseram. Tive que descer, toda marcada e com a roupa desgastada. Me desencorajaram a registrar, diziam que eu era nova, bonita, que deveria resolver na Vara da Família", lembra. Depois de muito insistir, ela conta que foi levada a uma delegacia em um bairro que não conhecia, à noite.

"O PM já foi na frente adiantando a história para o Policial Civil, dizendo que era colega. A primeira coisa que o civil me perguntou foi o nome do meu ex. Depois, pediu para eu mostrar uma foto dele no celular. Queria saber se era amigo próximo."

Shirley só conseguiu prestar queixa ao retornar com uma advogada, dessa vez numa Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), onde conseguiu uma medida protetiva e o recolhimento da arma de Rodolfo.

“Por ele ser policial, dificultou tudo, inclusive a denúncia. Ele teve de responder à Corregedoria e foi transferido para outro setor. O problema é esse: a polícia realoca, mas não elimina essas pessoas”, diz.

Segundo Shirley, existem rastros da proteção interna que Rodolfo recebeu.

Ela conta que duas provas importantes anexadas no processo, que comprovavam as violências – fotos de hematomas e uma gravação em que Rodolfo a ameaça, feita escondida em uma sessão de terapia de casal –, simplesmente sumiram. A outra prova que teve para si mesma foi ler uma mensagem que Rodolfo recebeu de uma delegada à frente de uma DDM no celular dele: “Pode ficar tranquilo. Vou te ajudar.”

“Existe um sistema todo para proteger uma pessoa da corporação só por ser um colega.”

'Até hoje sinto que o que vivi foi minimizado', diz Marta*, que viveu ciclo de ameaças e violência processual imposto por ex policial — Foto: João Brito
'Até hoje sinto que o que vivi foi minimizado', diz Marta*, que viveu ciclo de ameaças e violência processual imposto por ex policial — Foto: João Brito

‘No trabalho ele era soldado. Em casa, queria ser coronel’

O começo do namoro de Marta*, 39 anos, advogada, com Jorge*, que é soldado da Polícia Militar de Salvador, começou em 2020. “Ele se mostrou interessado e simplesmente me agarrou. Em dois momentos, me afastei e neguei. No terceiro, cedi", conta. Após deixar a esposa para se relacionar com Marta, Jorge automaticamente se mudou para a casa dela.

Não teve fase de namoro, mas teve a de lua de mel. Ela ouvia de Jorge que queria que fizessem tudo juntos e, inclusive, deveriam ter um filho. Mas não demorou até as bandeiras vermelhas aparecerem: murros na parede, ameaças, celulares jogados no chão e até mesmo a conduta de dirigir em alta velocidade quando estava irado – como Rodolfo fez com Shirley.

“Ele tinha muitos rompantes de grosseria e estupidez”, afirma Marta. Ser um policial tornava essa dinâmica pior? Sem hesitar, ela confirma. “No trabalho ele é soldado, não pode contestar as ordens que recebe. Em casa, queria ser o coronel. Diversas vezes tratava meu primeiro filho como um marginal – o que me fez ter medo de deixar as crianças sozinhas com ele. A imposição e insistência dele era muito grande, o que me mantinha refém.”

Conforme o comportamento agressivo se intensificava, mais medo ela sentia. A ponto de ter ficado aliviada quando ele descobriu que não poderia ter filhos: por andar muito à cavalo no trabalho, desenvolveu varicocele (condição que afeta a circulação sanguínea e diminui a qualidade do sêmen).

Na pandemia, no entanto, descobriu que ele iniciou um tratamento para fertilidade sem avisá-la. "Vi duas caixinhas de remédio e que era hormônio, mas ele me disse que era por causa da musculação. Entendi que estava ali cumprindo tabela de uma obrigação machista, de procriação." Foi em um curso online sobre a Lei Maria da Penha que descobriu que essa conduta configura violência sexual.

"Foi o único filho que eu pensei em tirar. Não queria um filho daquele homem. Quando me descobri grávida no começo de 2020, eu chorava e pedia para Deus tirar da minha barriga naturalmente."

Jorge deixou Marta quando o bebê tinha 45 dias de vida. “Foi um alívio”, ela diz. Mas ele continuava com livre acesso a casa, mesmo contra a vontade dela. Foi o que a fez pedir uma medida protetiva.

Ela conta que o comportamento agressivo foi presenciado por familiares. Mesmo assim, muitos se afastaram ou se negaram a testemunhar a seu favor. O questionamento era: Como ela poderia prestar queixa contra um policial militar? “Na frente dos outros ele sustentava a pose de homem bom.”

Foi esse argumento que Jorge usou ao processar Marta por calúnia e difamação. "Ele escreveu na defesa que a medida protetiva ofendia a honra dele, que era um bom cidadão e profissional", diz. Ele ainda moveu mais dois processos contra ela: uma dissolução de união estável e um pedido de guarda compartilhada do filho – uma batalha judicial que ainda está em curso.

Hoje, a medida protetiva de Marta não está válida. Ela pediu que o processo fosse anulado após ser aconselhada pelo líder de sua comunidade religiosa a fazer isso. Ela ouviu que “a medida protetiva estava prejudicando a carreira” de Jorge na Polícia. “Até hoje sinto que o que vivi foi minimizado e julgado pelas outras pessoas. Acho que Jorge tinha muita certeza da impunidade dele.”

Essa mesma certeza de impunidade, conta Shirley, é o que faz Rodolfo continuar a ameaçando depois do divórcio. Mas agora há uma camada extra: ele teria tornado o filho um alvo das violências, inclusive físicas. Shirley conta que ele teria começado depois de ter acesso ao depoimento dado a uma psicóloga, que acompanha o processo judicial de guarda do filho.

No documento, o menino relata as violências às quais era submetido ao ir para a casa do pai. Rodolfo alegou alienação parental e que Shirley teria implantado “memórias falsas” no filho deles para afastá-los – hipótese que, segundo ela, a perícia descartou.

Atualmente, Rodolfo só pode fazer visitas supervisionadas por uma pessoa de confiança de Shirley, em um shopping. Devido às novas violências contra o filho, a professora precisa estar presente no mesmo espaço, à distância, caso a criança precise de suporte emocional.

“Em uma dessas ocasiões, Rodolfo apareceu me filmando. Pedi para ele parar ou eu chamaria a polícia. Ele bateu no peito e disse, alto: ‘Eu sou a polícia’. Já tinha gente olhando, sem fazer nada. Ele disse isso para intimidar ainda mais”, diz Shirley.

“Eu não conto tudo isso para desestimular ninguém a denunciar. Só quero expor esse lado que existe dentro da corporação. Mesmo com todos esses problemas, ele não consegue mais me parar. Não darei nenhum passo atrás.”

Como denunciar um agente de segurança pública que comete violência doméstica

Apresentado em 2019 pelo então deputado federal Denis Bezerra (PSB-CE), o Projeto de Lei nº 3.138 determina a inclusão do recolhimento de arma de fogo de agentes indiciados por violência doméstica no Estatuto do Desarmamento. O projeto está parado desde 2021 na Comissão de Constituição e Justiça de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados.

Mas a promotora Fabíola Sucasas diz que, no mesmo ano, uma alteração da Lei Maria da Penha passou a determinar que o policial investigue, no momento da denúncia, se o agressor tem posse ou registro de arma de fogo. "A lei também prevê que cabe ao juiz determinar a apreensão imediata de arma de fogo, e o Código de Processo Penal já previa a possibilidade de busca e apreensão da arma quando há informação do seu uso para a violência e/ou irregularidades", explica.

A advogada Melina Fachin, especializada em direitos humanos e democracia, diz que vítimas ou terceiros podem fazer a denúncia em DDFs e pela Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180. “O 180 oferece um canal seguro e anônimo para as vítimas de violência de gênero, garantindo a condução íntegra e especializada das denúncias”, explica.

No entanto, ela recomenda que se busque o Ministério Público, já que esse é um órgão de controle externo da atuação das polícias. “Além disso, na ação penal, o MP deve resguardar atendimento adequado e especializado à vítima”, pontua Sucasas.

Sobre proteção às mulheres, a promotora afirma que existe um recorte de hierarquia que precisa ser observado no momento de conceder medida protetiva, como a necessidade da vítima ser incluída em um programa de fiscalização de medidas (como o programa Guardiã Maria da Penha, por exemplo) ou de incluí-la em um programa de acolhimento sigiloso. “Tudo dependerá da gravidade do fato e das circunstâncias de risco.”

“É preciso encorajar as mulheres a buscarem ajuda. Existe um risco muito maior de se manter em um relacionamento abusivo”, pontua a promotora.

*Os nomes foram alterados para preservar as identidades das vítimas.

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