Política

Por Manuela Azenha, redação Marie Claire — São Paulo

Nos 60 anos do golpe civil-militar que derrubou o presidente João Goulart e instaurou 21 anos de ditadura no Brasil, a ex-ministra Eleonora Menicucci, presa e torturada nos anos de chumbo, se diz esperançosa. Mesmo após as notícias de que o governo Lula havia cancelado os atos planejados para a data, desistido do Museu de Memórias e Direitos Humanos e ainda não recriado a Comissão de Mortos e Desaparecidos, extinta no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.

“O Brasil nunca puniu nenhum torturador da ditadura, mas isso não é um problema deste governo de agora e sim de muito antes. Se a sociedade civil se organizar e pressionar, avançaremos. Se eu não tiver esperança, quase aos 80 anos, tenho que colocar pijama e ir dormir”, afirma a socióloga, professora titular aposentada da Unifesp, professora sênior da UFABC e presidenta do conselho da Fundação Perseu Abramo.

Na juventude, Menicucci foi filiada ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), depois aderiu à dissidência mais radical no POC (Partido Operário Comunista) e entrou para a clandestinidade. Aos 22 anos, foi presa em São Paulo com a ex-presidenta Dilma Rousseff, de quem décadas mais tarde seria ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres (2012 -2015). “Dilma na cadeia era estudiosíssima, e uma pessoa extremamente solidária, tanto com o que recebia da mãe dela, quanto com atos generosos de ajudar as outras presas”, descreve.

A socióloga foi torturada sistematicamente por 72 dias, e guarda sequelas até hoje do período: passou por uma cirurgia cardíaca, tem problemas ósseos, é surda de um ouvido e perdeu um dente em decorrência das agressões sofridas com soco inglês. Mas o mais pesado da tortura que sofreu, diz Menicucci, eram as ameaças à filha, Maria. “Me falavam o tempo inteiro que iam matar minha filha, e eles sabiam onde ela estava”, relata. Quando a ex-ministra foi presa, a filha, então com 1 ano e 10 meses, passou a viver com a avó materna, em Belo Horizonte. “O reencontro com ela, três anos depois, foi muito difícil e lento.”

Abaixo, Menicucci relembra a atuação na resistência ao regime militar, o período em que ficou presa e avalia a política de justiça de transição do governo Lula.

MARIE CLAIRE A senhora se incomoda em falar sobre o período em que esteve presa e sofreu torturas?
ELEONORA MENICUCCI
Não me é incômodo falar sobre isso. É necessário contar. Nós que sobrevivemos temos a obrigação política, moral e ética com todos os companheiros e companheiras que foram assassinados, que não estão mais aqui por morte na tortura ou desaparecimento.

MC Como começou sua atividade na resistência à ditadura?
EM
Sou mineira, de Lavras, e desde menina tenho perspectiva de rebeldia na vida. Rebeldia política, social. No sentido de não me conformar com as diversas desigualdades. Convivi com uma família politizada de centro-esquerda. Como secundarista, já participava do movimento estudantil. Morava no interior de Minas, depois fui para Belo Horizonte estudar sociologia na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Entrei na faculdade em 1964, dois meses antes do golpe. Já havia uma movimentação muito grande e imediatamente me filiei ao PCB. Fiquei até o terceiro ano de faculdade, quando houve uma racha e fiz parte da dissidência, que preconizava uma radicalidade na luta da resistência. Nessa época era também vice-presidente da União Estadual de Estudantes de MG, já estava muito envolvida. Isso era 1966.

Em 67 continuamos na luta, na resistência. Em 68 veio o AI-5, o que exigiu da entrarmos para a clandestinidade. As prisões tinham começado, os fechamentos de Congresso, de universidades. Eu estava nessa resistência, eu era do POC (Partido Operário Comunista), onde fiz toda a minha militância. Larguei a faculdade para ficar na clandestinidade.

MC No que consistia essa atividade “mais radical” de resistência? Luta armada?
EM
Era uma luta junto aos operários, tínhamos que mudar para Contagem, cidade industrial, e se integrar no movimento operário, para aos poucos ir se organizando com eles. Durante a fase mais difícil da ditadura, quando o cerco estava muito pesado, a maioria das organizações, inclusive o POC aderiu à luta armada. Eu, pessoalmente, não fiz nenhuma ação armada. No final de 69, tive que sair de Belo Horizonte, grávida da minha primeira filha, e vim para São Paulo, clandestina.

MC E como foi a prisão da senhora?
EM
Aos 22 anos, fui presa. No momento estava com minha filha, então com 1 ano e 10 meses. Ela ficou com minha mãe, em Belo Horizonte. Fiquei três anos presa, 72 dias sendo torturada no DOI-Codi. Depois fomos transferidas para o Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e de lá para o Presídio Tiradentes. Depois fomos para o Presídio do Hipódromo, no Brás, e para o presídio de mulheres do Carandiru. Como eu tinha processo de Minas Gerais, fui ainda para Juiz de Fora, onde fui torturada também.

MC Como foi a experiência no cárcere?
EM
O período da tortura é muito dificil, inominável. Tem o objetivo de te humilhar, te deixar completamente sem identidade. Fui torturada pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, aquele que Jair Bolsonaro, quando foi votar a favor do golpe contra a Dilma, disse que “era o pavor da Dilma Rousseff”.

Quando Bolsonaro falou isso, quis cuspir nele, como fez Jean Wyllys, mas eu estava na galeria, não dava.

Estive com a Dilma durante todo o governo, fui uma das ministras mais longevas, não me afastei dela. A mulher mais ética e digna que já conheci. Ela sofreu duas grandes torturas: a física, da ditadura, e a tortura do golpe. Sem nenhum crime de responsabilidade. Golpe misógino, econômico, multinacional. A política não é lugar para as mulheres.

No período da tortura, você tem que ficar constantemente, diuturnamente, de olhos abertos, mente atenta, para ir construindo histórias falsas e não entregar nomes. Você tem que falar alguma coisa na tortura, mas não quer entregar companheiros. Muitos caíram por isso e não há recriminação porque a tortura é inominável. Você conta cinco segundos e vê se aguenta mais pancadaria.

Para uma mulher, mãe, ser torturada por um torturador que sabe onde está a sua filha e fica 24 horas dizendo que matariam minha filha… No ato da prisão fomos separadas. Eu estava num lugar com minha cunhada, que ficou com minha filha e fez com que ela chegasse até minha mãe. Depois fiquei muito tempo sem vê-la porque ela morava em Minas, com minha mãe, e eu estava em São Paulo.

MC Como era o convívio com as outras presas?
EM
Excelente. Vivíamos uma rotina de tortura e, quando alguma chegava na cela depois disso, tinha o apoio de todas. No Tiradentes, ficávamos de 4 a 5 presas numa cela, a gente cozinhava, fazíamos trabalhos manuais, jogos que a família levava. Tinha uma televisão que cada dia ficava numa cela. Foi um período muito importante na minha vida, é uma convivência que você não esquece, que não tem nunca mais. Afetuosa, de solidariedade. Podia ter divergências políticas, discutíamos, mas a solidariedade era enorme, em todos os sentidos. Com as que eram mães, com as que ficavam mal depois da tortura. Tínhamos horário de leitura, de discussão, comemoramos natais, Carnaval, passagem de ano.

O presídio do Hipódromo foi dos piores que passei. Era presídio comum e você via, do quarto andar, os presos comuns chegando acabados, massacrados de tortura também. Foi terrível. Fizemos vários movimentos lá dentro para sermos transferidas e aí fomos para o Carandiru.

Quando fui solta, fui para BH, retomei minha vida, voltei a estudar, continuei na luta, priorizando os direitos das mulheres e a denúncia contra a ditadura civil-militar.

Luiz Eduardo da Rocha Merlino, o Nicolau, foi assassinado na minha frente, no pau de arara, enquanto eu estava na cadeira de dragão. Sou a única testemunha da morte dele. Saí da prisão com uma determinação imperiosa ética de denunciar esse bárbaro assassinato.

MC O que passou pela cabeça da senhora quando pisou para fora do presídio e se deu conta de que tinha sobrevivido a tudo isso?
EM
Quando pisei para fora, pensei: tenho que reaprender a viver nesse mundo fora da cadeia. Isso significa manter os princípios, a dignidade, a ética. Continuar do lado certo da história. A denúncia da existência do golpe, das violências cometidas, das torturas, é um ato político que custa. Porque tem todo um sistema de classes sociais, nacional e internacional, que quer apagar, é uma sociedade muito injusta ainda. E isso não apaga, não silencia.

MC O reencontro com sua filha foi difícil?
EM
Foi difícil, ela estava com minha mãe, que era mãe dela. Ela tinha uma confiança, segurança muito forte. É muito difícil, foi muito lento o resgate com ela. Mas muito honesto, amoroso.

Meu pai morreu quando eu era muito nova. Minha mãe trabalhava como auditora fiscal na Receita Federal. Ela ficou viúva com 38 anos e criou sozinha cinco filhos. Ela era um espelho para mim.

MC Como foi a convivência com a presidenta Dilma na prisão?
EM
Foi maravilhosa, desde a cadeia. Não tenho autoridade e nem gosto de falar da pessoa quando ela não está presente, mas a Dilma na cadeia era estudiosíssima, organizava estudos, discussões, e uma pessoa extremamente solidária, tanto com o que recebia da mãe dela, quanto com atos generosos de ajudar as pessoas.

Nossa relação é muito leal, fiel, política, de amizade e de verdadeira fidelidade. Ficamos um ano juntas. Quando nos reencontramos lá fora, foi como um reencontro de duas amigas, amizade mais fortalecida pelo que sobrevivemos.

MC A senhora tem sequelas das torturas que sofreu?
EM
Sim, coloquei três pontes de safena, fiz uma operação cardíaca. Tenho problemas ósseos, sou surda de um ouvido, uso aparelho auditivo como consequência de soco inglês. Quebrei um dente também por causa de socos que levei. É toda uma geração sequelada, mas muito forte, resistente.

O que mais irrita a extrema-direita é sermos felizes. Sabermos o que queremos e não termos mudado de lado. Sermos pessoas normais, que trabalham, estudam, que têm família, que saem na rua. Como não conseguiram nos matar todos, os sobreviventes incomodam. Isso que estou falando com você incomoda porque querem apagar.

MC Falando em apagamento, o que a senhora pensa sobre as notícias que saíram dizendo que o governo cancelou os atos dos 60 anos do golpe, desistiu do Museu de Memórias e Direitos Humanos e ainda não recriou a Comissão de Mortos e Desaparecidos, extinta no governo Bolsonaro?
EM
Não vi documento nenhum do governo Lula proibindo atos contra a ditadura, nem decreto, portarias. Não tem. Uma coisa é a orientação para que as pessoas que estão no governo não façam atos, mas não foi dito que não poderiam participar. O ministro Sílvio Almeida estará em vários. Quem tem que promover os atos também é a sociedade civil, e estamos promovendo. É uma data que não pode ser passada em branco. Se não falamos sobre o passado, podemos ser cúmplices de que isso volte a acontecer. Falar no passado, não esquecer, é para que ele não se repita nunca mais.

MC Quais as expectativas da senhora sobre políticas de justiça de transição no governo Lula?
EM
Acho que a justiça de transição vai avançar no governo Lula, na medida que tem relatório da Comissão da Verdade que ainda não foi posto em prática. Diferentemente da Argentina, Chile e Uruguai, o Brasil não puniu em nenhum momento os torturadores. Passou no Congresso e no STF a Lei da Anistia. Eu fui torturada e anistiada e o torturador também foi anistiado na concepção desta lei atrasada. Eu fui contra. Lei injusta, mas não é algo do governo Lula.

A justiça de transição depende da força dos movimentos sociais, da sociedade civil. Não temos e não tivemos um movimento pela memória, verdade e justiça tão forte quanto nos países vizinhos. Lá teve povo na rua, aqui não. Aqui é um país de mais de 250 milhões de habitantes, dividido. Não tínhamos apoio da sociedade inteira nos anos de chumbo.

Defendo uma justiça de transição, a prisão dos torturadores, a criminalização deles, a Comissão Nacional da Verdade, a Comissão dos Mortos e Desaparecidos. Quando pensamos em tortura, prisões, o Brasil é um país da casa grande e senzala. Quantosa negros e negras receberam reparação pela escravidão? Nenhum. Houve a “abolição”, mas a escravidão continua dentro das nossas próprias casas. Tem a questão dos indígenas. Dos trabalhadores rurais. Nós que éramos basicamente de classe média também não fomos reparados. Eu fui “anistiada” e recebi uma indenização que nem se compara às perdas que eu tive, perdas físicas.

Mas acredito muito que, se a sociedade civil se organizar e pressionar, avançaremos.

MC A senhora tem esperança de que isso aconteça?
EM
Eu tenho, se não estava morta.

Vou fazer 80 anos. Se não tiver esperança, ponho pijama e vou dormir.

Nos 60 anos do golpe, quero fazer um tributo a todas as mulheres e homens que deram a vida pela liberdade, democracia. Se continuamos a luta hoje é porque a democracia ainda é muito frágil, precisa ser mais fortalecida.

Mais recente Próxima Irmã de Marielle Franco revela fotos inéditas em forte desabafo: 'Hoje foi um daqueles dias que eu só soube sentir'
Mais do Marie Claire

A atriz está curtindo o dia de calor em Rio das Pedras e publicou um álbum de fotos

Fernanda Souza aparece de biquíni em cenário paradisíaco: 'Recarregando as baterias com a família'

A influenciadora e ex-BBB está curtindo o calor da Bahia

Mari Gonzalez posa de biquíni em passeio de barco em Salvador

A apresentadora compartilhou um clique abraçado com o namorado em praia paradisíaca

Ana Hickmann posa com Edu Guedes em destino internacional queridinho dos artistas

Uma campanha mostrando as jogadoras olímpicas de rúgbi da Grã-Bretanha, Jasmine Joyce, Celia Quansah e Ellie Boatman, de lingerie está dividindo a internet e levando questionamentos sobre a sexualização de atletas

Por que atletas femininas ainda são sexualizadas?

A atriz apareceu curtindo o calor e recebeu diversos elogios

Carolina Dieckmann começa dia tomando sol na janela com lingerie amarela: 'Domingo bem lindão'

A apresentadora compartilhou um clique ao lado de Helô Pinheiro e fez uma declaração nas redes sociais

Ticiane Pinheiro celebra o aniversário de 81 anos da mãe: 'Parecendo uma garotinha de Ipanema'

Conheça celebridades que têm filhos que fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+ utilizam sua visibilidade para promover o respeito; veja lista

Carla Perez, Bela Gil e mais: famosos apoiam publicamente seus filhos LGBTQIAPN+

Estudo com mais de 5 mil participantes demonstrou que injeção lenacapavir aplicada duas vezes por ano protege contra a infecção do vírus

Novo remédio oferece 100% de proteção contra o HIV para mulheres

O dia 7 de julho marca a nossa paixão pelo doce, que inspira produtos no universo da beleza, como sombras, batons e até mesmo perfumes

Dia Mundial do Chocolate: produtos de beleza inspirados no doce mais querido do mundo