Política

Por Manuela Azenha


Em mais de 20 anos de existência, pela primeira vez a Comissão de Anistia, órgão responsável por julgar pedidos de reparação a vítimas de violência do estado durante a ditadura, será presidida por uma mulher: a jurista Eneá Stutz e Almeida. Conselheira do órgão por nove anos, entre 2009 e 2018, e professora de Direito da Universidade de Brasília, a pesquisadora promete reverter diversas modificações realizadas na gestão da ex-ministra Damares Alves, além de revisar todos os milhares de processos indeferidos.

“Tive acesso a processos que foram negados de forma flagrantemente ilegal”, afirma Eneá. “O maior desafio será dar conta de recuperar quatro anos de retrocesso para depois avançar”, continua.

A jurista Eneá Stutz e Almeida é a primeira mulher a assumir a presidência da Comissão da Anistia — Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal
A jurista Eneá Stutz e Almeida é a primeira mulher a assumir a presidência da Comissão da Anistia — Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal

Pesquisadora do tema da justiça de transição – conjunto de mecanismos para uma sociedade atingir a reconciliação e pacificação após um regime de exceção –, Eneá argumenta que a história brasileira é “razoavelmente deprimente” nesse aspecto. A Comissão Nacional da Verdade, finalizada em 2014, apontou 377 responsáveis por violações de direitos durante a ditadura, mas até hoje nenhum único torturador foi responsabilizado criminalmente e apenas um reconhecido como tal pela Justiça: o coronel Brilhante Ustra.

Para a pesquisadora, é justamente a falta de “enfrentamento com traumas do passado” que culminou em atos violentos como a tentativa de golpe do dia 8 de janeiro. “Se empurrar para debaixo do tapete, é pior porque volta como recalque”, defende.

Sobre o fato inédito de ter uma mulher à frente da Comissão, Eneá encara como uma “homenagem a todas que lutaram pela democracia” e “nunca receberam tanto holofote”. Abaixo, fala a Marie Claire sobre as prioridades da Comissão e os principais desafios que deve encarar nos próximos anos.

MARIE CLAIRE Qual a importância de finalmente termos uma mulher na presidência da Comissão da Anistia, em 20 anos de existência do órgão? Acha que figuras femininas foram renegadas pela historiografia desse período da ditadura?
ENEA STUTZ
É muito importante termos uma mulher na presidência porque valoriza o protagonismo das mulheres em todo o período de luta pela democracia. Ao longo da ditadura, tivemos requinte de crueldade com corpos femininos em prisões e torturas. Além das torturas feitas indistintamente, no caso das mulheres havia ainda a tentativa de apropriação dos corpos por meio de estupros, sem falar nas torturas feitas com mulheres grávidas ou que estavam amamentando.

Vejo minha nomeação como uma espécie de homenagem às mulheres que lutaram pela democracia, que são minhas heroínas
— Eneá Stutz

Há centenas de relatos de mulheres que foram estupradas sistematicamente. E também da violência de dar uma medicação para secar o leite, para que a mulher não consiga amamentar e privá-la da construção de vínculo com o seu bebê. Isso aconteceu tantas vezes, mas nunca foi jogado muito holofote sobre essa realidade. Então vejo minha nomeação como uma espécie de homenagem às mulheres que lutaram pela democracia, que são minhas heroínas.

Temos algumas poucas produções sobre mulheres na ditadura, mas essa disputa é masculinizada. Não que o campo seja integralmente ocupado por homens, mas é muito masculinizado. A própria representação que temos em todos os poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, é majoritariamente masculina. E mesmo quando a gente diz, como no governo Lula, que está tentando fazer um certo equilíbrio, ainda assim vemos uma representação feminina menor. Então essa luta por representatividade continua.

A própria luta por anistia no Brasil começa em 1975, capitaneada por uma mulher. Naquele ano a ONU tinha decidido que seria o ano internacional da mulher e, a pretexto de usar essa data, as mulheres saíram às ruas, em tempos de proibição de manifestação política, pedindo anistia ampla geral e irrestrita. Justamente porque as mulheres não só foram presas e torturadas, mas porque tinham perdido filhos, irmãos, companheiros, e lutavam por eles. Os homens não fizeram esse tipo de movimento, nem no Brasil e nem em outros lugares.

Na Argentina, por exemplo, foram as mães e avós da Praça de Maio que protagonizaram essa luta. Não só a luta direta, e arriscando a própria vida, como a luta para encontrar os paradeiros dos entes queridos e continuam até hoje. São muitas as mães, irmãs, filhas que querem saber os paradeiros. As duas representantes de familiares na Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos eram mulheres: Diva Santana e Vera Paiva.

Espero atribuir o protagonismo que as mulheres merecem nas tarefas da Comissão.

MC Você assume a presidência em um momento de maior tensão entre o governo e as Forças Armadas. Quais serão os maiores desafios à frente da Comissão?
ES
Não acredito que exista tensão com relação a essa tarefa, de cumprimento da Constituição, relativamente às tarefas da Comissão da Anistia. Pode ter uma ou outra voz dissonante, mas que não fala em nome das Forças Armadas. Nós vamos seguir a lei para obter ordem e cumprimento constitucional. O maior desafio é dar conta de recuperar os quatro anos de retrocessos para depois conseguir avançar na pauta.

MC Você foi membro da Comissão de 2009 a 2018, ano em que Bolsonaro foi eleito. Qual foi o motivo da sua saída?
ES
Pedi para sair por questões pessoais e profissionais, mas mesmo se não tivesse pedido, com toda certeza no início de 2019 teríamos sido dispensadas. Porque a partir de 2019, o governo Bolsonaro transformou a Comissão de Anistia em uma comissão de governo para servir de palanque para suas ideias.

MC A gestão de Jair Bolsonaro, mais especificamente de Damares Alves, modificou diversos aspectos da Comissão da Anistia. Quais dessas mudanças serão revertidas?
ES
Algumas absolutamente fundamentais. Temos três prioridades. A prioridade zero é a reestruturação da Comissão, e não só pessoal - foram nomeados novos conselheiros e ainda serão acrescentados outros integrantes. Os conselheiros apreciam os processos, julgam, mas para isso acontecer tem todo um trabalho de bastidor que quem faz é o staff da Comissão. Essa estrutura foi toda desmontada nos últimos 4 anos. A tarefa é remontar a equipe. Mas não só. Damares modificou o regimento interno e publicou no Diário Oficial um novo regimento totalmente ilegal, inconstitucional. Vamos mudar isso também.

A prioridade seguinte é ter acesso aos processos, quantos foram julgados, quantos foram indeferidos. Os números não estão batendo. Só vou saber com precisão quando tiver acesso. Também preciso ver quantos processos não foram julgados, e começar a julgar. Houve milhares de indeferimentos. Se tiverem cumprido a lei, ok. Se não, serão revistos. Tive acesso a vários processos flagrantemente ilegais. Vamos apreciar novamente. Mas ainda não tenho números.

MC O que torna o regimento aprovado por Damares ilegal?
ES
São várias questões. Os recursos de decisões ficaram na mão da Damares, ou seja, ela usurpou a competência da Comissão de Anistia. Quem tem que julgar é a comissão. Quem decide se vai publicar a portaria é o titular da pasta, mas se ele discordar do entendimento da Comissão, tem que devolver, questionar e colocar em pauta de novo. O que não pode é: “não gostei do seu voto, faço um despacho de qualquer jeito e nego”.

A outra ilegalidade diz respeito às normas e procedimentos, por exemplo, de apresentação de provas. A gente já tem uma experiência acumulada de uma série de procedimentos de provas que podem ser apresentadas. Isso foi completamente ignorado pela gestão anterior. As pessoas vão ter acesso a esse tipo de informação. Esse tipo de orientação é direito de todo mundo e será recolocada no regimento interno.

MC Sob o mando de Damares, a entrega de notificações da Comissão às vítimas deixou de ser pelos Correios e passou a ser feita pelo comando da Aeronáutica. Isso será mudado?
ES
Isso é uma crueldade, uma revitimização, quase uma tortura novamente. Voltará a ser feita pelos Correios.

MC Na gestão do ex-presidente da Comissão Paulo Abrão, nos governos Lula e Dilma, havia as Caravanas da Anistia, julgamentos itinerantes pelo país, e atendimento psíquico gratuito a vítimas e familiares. Vocês pretendem voltar com esses projetos?
ES
Sim, mas dependemos de orçamento. Para 2023, acho que não conseguimos. Não tem rubrica para isso. A partir do ano que vem, conseguir recuperar esses projetos, Clínicas do Testemunho, Marcos da Memória e editais para publicação. E vamos recuperar no primeiro dia de sessão pública - que voltarão a ser públicas, o pedido de desculpas, que foi interrompido antes ainda do governo Bolsonaro.

Temos que reformar todas as instituições que não são tão democráticas quanto gostaríamos. Não só as Forças Armadas, mas também as polícias
— Eneá Stutz

MC Qual a sua avaliação sobre como tem sido feita a justiça de transição no Brasil?
ES
Nossa história é razoavelmente deprimente no Brasil. Demoramos muito a começar a fazer alguma coisa. A Constituição é de 1988, mas a primeira iniciativa, se não considerarmos a Lei da Anistia, de 1979, é só em 1995, com a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos. E assim mesmo, naquele momento, tímida.

A Comissão de Anistia foi criada em 2001 para 2002, também de forma tímida. E esse tema não era muito debatido na sociedade. A própria expressão “ditadura”, o debate sobre o período só começa para valer, inclusive na imprensa, a partir de 2010, com o julgamento da ADPF 153, no Supremo [ação em que a OAB pediu o reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei da Anistia]. Na verdade, um pouco antes, com o lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos, no fim do segundo mandato de Lula, por causa da recomendação de criação da Comissão Nacional da Verdade e da necessidade de mudança de nomes de logradouros com nome de ditadura.

Nesse primeiro momento, até 2017, temos vários avanços, em especial no campo da reparação, mas também no da memória e verdade. No campo das reformas das instituições, foi quase nada, e no campo da responsabilização, absolutamente nada, zero. A partir de 2017 o que a gente experimenta no Brasil é o retrocesso. Tanto que cunhei uma expressão que é justiça de transição reversa. Esse momento agora é de começar praticamente do zero.

Retrocedemos tanto que redundou nos atos violentos, um primeiro ensaio no dia 12 de dezembro, e depois o de 8 de janeiro de 2023. Atribuo essas consequências justamente à falta de realização de justiça de transição no Brasil.

Para evitar que esse tipo de coisa aconteça de novo e finalmente enfrentar esses traumas do passado, todo esse legado autoritário, atrocidades que foram cometidas, precisamos dar seguimento a essas comissões de estado e cumprir as recomendações da Comissão Nacional da Verdade, que acabou em 2014. Só assim para atingir o ponto de reconciliação nacional e pacificar o povo brasileiro. Varrer para debaixo do tapete só piora porque criamos o esquecimento recalque, que sempre volta com violência. 8 de janeiro foi uma amostra disso. Cumprir a Constituição é tudo o que queremos.

MC Concretamente, o que isso significa? Rever a Lei da Anistia? Reformar as Forças Armadas?
ES
Temos que reformar todas as instituições que não são tão democráticas quanto gostaríamos. Não só as Forças Armadas, mas também as polícias. E podemos ampliar esse leque: Poder Judiciário, universidades, qualquer instituição que possa ser mais democrática. Também avançar na responsabilização. Já tivemos nos campos civil e administrativo, mas nenhuma no campo criminal. Particularmente defendo que não é necessário revisar a Lei de 79 para permitir a responsabilização de violadores. A única coisa que precisamos é cumprir a Constituição. E o Supremo decidiu dessa maneira, ao meu ver. A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil a proceder a essa responsabilização penal dos torturadores.

Temos que individualizar as condutas e responsabilizar criminalmente essas pessoas. Isso é cumprir a lei e a determinação da Corte Interamericana. Juridicamente, não existe nenhum obstáculo para fazer isso.

MC Até agora o coronel Brilhante Ustra foi o único torturador considerado como tal na Justiça, mas não chegou a ser responsabilizado. A Comissão Nacional da Verdade apontou 377 responsáveis por violações. Por que até agora ninguém foi responsabilizado criminalmente?
ES
Exatamente por essa dificuldade que temos no Brasil de enfrentar conflitos. O Ministério Público Federal tem feito algumas dezenas, não sei se chega na casa de centenas, de investigações. No caso de denúncias, são dezenas que foram apresentadas ao Judiciário, com provas, de pessoas que obviamente estão vivas e foram torturadores. Aí o poder Judiciário diz que não é para continuar porque os crimes prescreveram, porque a Lei da Anistia proíbe ou porque não é para mexer nesse negócio.

É um equívoco do Judiciário, por um lado, e total desinteresse da população, por outro. Não existe um clamor da sociedade por conhecer essa verdade, responsabilizar os torturadores. Se for provado, precisam ser punidos, como exemplo de que isso não pode acontecer no Brasil. O que falta para isso acontecer? Nada. Já tivemos momentos de protagonismo do Legislativo, com as leis que criaram as comissões de estado, e do Executivo, ao dar condições de funcionamento para essas comissões. Agora chegou a hora do Judiciário, dando sequência a esses processos.

MC Falando na falta de clamor popular, segundo a pesquisa Atlas feita após a tentativa de golpe em 8 de janeiro, 36,1% dos brasileiros são a favor e 9,1%, indecisos. A que você atribui essa postura?
ES
À total falta de informação ou a campanhas de desinformação. Um dos juízes que fez as audiências de custódias em Brasília relatou que as pessoas presas ali reclamam de falta de wifi, da qualidade da comida, elas não perceberam que estão presas. Elas pediram intervenção e foi o que aconteceu. Acho que quem diz que é a favor da intervenção militar não sabe o que está falando. Se disserem que querem ditadura, não sabem o que estão pedindo, porque quando acontece qualquer tipo de repressão, acham um absurdo.

Nunca fui ameaçada diretamente, mas se disser que não senti medo, estaria mentindo
— Eneá Stutz

MC Há décadas você atua no campo da justiça de transição, um tema difícil de ser tratado no Brasil. Você já sofreu alguma ameaça ao longo da sua trajetória? Sentiu medo antes de aceitar o cargo de presidente da Comissão?
ES
Nunca fui ameaçada diretamente, mas se disser que não senti medo, estaria mentindo. Mesmo antes de 2009, lidar com esse tema é sempre um risco no Brasil. E nos últimos anos, mais risco ainda. Todo mundo que lida com qualquer aspecto da luta por direitos humanos está sempre correndo risco. Tenho medo, sim. Mas não há alternativa de vida que eu consiga sustentar eticamente que não seja lutar por democracia. Encarei como uma grande honra estar na presidência. Seria muita covardia da minha parte correr da luta nessa hora. O que puder contribuir para a reconstrução da nossa democracia, não tenho direito de recusar. Com ou sem medo, a gente tem que seguir em frente. A vida é assim.

Mais recente Próxima A renúncia de Jacinda Ardern: saber a hora de partir exige autoconhecimento e coragem
Mais do Marie Claire

Em conversa com Marie Claire, surfista conta como está trabalhando duro para construir sua própria carreira; ela também exalta a relação com Gabriel Medina e revela seus cuidados de beleza. Ela e o protetor solar formam uma dupla imbatível

Sophia Medina sobre comparações com o irmão, Gabriel: 'Quero escrever minha própria história'

Para a influenciadora digital Isabella Savaget, 22, o transtorno alimentar era uma forma também de se encaixar em um padrão social, uma vez que pessoas sem deficiência também podem ter a condição

'Com a anorexia nervosa, eu arrumei um jeito de ter controle de alguma parte de mim', diz jovem com paralisia cerebral'

Descubra como os perfumes para cabelo podem transformar a rotina de autocuidado. Reunimos 6 opções a partir de R$ 20 para deixar os fios perfumados e radiantes

Perfume para cabelo: 6 opções para deixar os fios mais cheirosos

Conheça 12 hidratantes faciais disponíveis no mercado de skincare, com fórmulas que oferecem desde hidratação profunda e combate a linhas finas até proteção contra danos ambientais, garantindo uma pele saudável e radiante.

Hidratantes Faciais: 12 opções para aprimorar a sua rotina de skincare e manter a sua pele radiante

De chapéu country a bota texana, lista reúne roupas e acessórios para quem deseja imprimir estilo durante os eventos. Preços variam de R$ 28 a R$ 258 em lojas online

Look country feminino: 7 opções para ter estilo e conforto nos rodeios

Nesta produção documental da Max, público assiste aos momentos pré e pós retomada do estilista no posto de criativo da marca Herchcovitch;Alexandre

Para assistir: documentário revisita carreira de Alexandre Herchcovitch e o retorno do estilista à própria marca

A maranhense Karoline Bezerra Maia, de 34 anos, é considerada a primeira quilombola a tomar posse como promotora de Justiça. A Marie Claire, ela conta sua história com o quilombo de Jutaí, onde seu pai nasceu e cresceu, além da sua trajetória no mundo da advocacia que a levou a desejar um cargo público

'Após passar por desafios financeiros e psicológicos ao prestar concursos, me tornei a primeira promotora quilombola do Brasil'

A dupla de acessórios trend do momento tem um "apoio" de peso, como das famosas Rihanna e Hailey Bieber, e tem tudo para ser a sua favorita nesta temporada; aprenda como produzir um look usando as peças

Disfarce ou estilo? Usar lenço com boné virou trend; aqui estão 6 combinações para te inspirar

Atriz falou sobre o que a motiva a manter o foco em rotina de exercícios físicos, entregou o que a fez a voltar às novelas após 6 anos afastada da TV e comentou semelhanças entre o Festival de Parintins e o Carnaval carioca em entrevista exclusiva a Marie Claire

Viviane Araújo avalia uso de Ozempic para perda de peso: 'Cada um busca sua forma física como acha melhor'