Política

Por Manuela Azenha

Na história da ditadura civil-militar que governou o Brasil por mais de 20 anos, há um capítulo especialmente invisibilizado: as violências cometidas pelo Estado contra os povos indígenas ao longo desse período. É o que defende a advogada Maíra Pankararu, primeira indígena a compor a Comissão da Anistia – órgão responsável por reparar pessoas perseguidas pela ditadura.

Segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), entregue em 2014, foram mais de 8 mil indígenas mortos e desaparecidos. Número certamente sub calculado, já que a equipe pesquisou apenas 10 dos 305 povos indígenas existentes no Brasil. “Sabe-se pouquíssimo sobre o que ocorreu com os indígenas na ditadura. Para pesquisar isso, precisamos praticamente começar do zero”, afirma Maíra, especializada em direito social e políticas públicas e prestes a entregar a dissertação do mestrado na Universidade de Brasília (UnB) sobre o tema de indígenas no contexto da justiça de transição – conjunto de mecanismos para uma sociedade atingir a reconciliação e pacificação após um regime de exceção. É também assessora da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG).

“Existe esse buraco na pesquisa sobre justiça de transição. E os poucos que se propuseram a estudar isso não eram pessoas indígenas. Então resolvi me especializar no tema”, conta Maíra.

Abaixo, a pesquisadora fala sobre os desafios em estabelecer reparações aos povos indígenas violentados no período da ditadura e a necessidade urgente de retomar as pesquisas sobre o tema.

MARIE CLAIRE Você considera que os crimes cometidos contra os indígenas durante a ditadura foram invisibilizados? Há muito o que ser descoberto ainda?

MAÍRA PANKARARU Como toda história que envolve indígenas no Brasil, foi invisibilizado. Nossa dor, nosso sangue derramado é invisibilizado. A questão é que em tudo que envolve ditadura militar há uma guerra de narrativas. Começa daí a problemática. A segunda problemática é a negação, dizerem que não foi um golpe, não morreu tanta gente, chamar de ditabranda. A partir disso, dizem também que não morreram indígenas. O relatório da Comissão Nacional da Verdade, entregue em 2014, fala em mais de 8 mil indígenas mortos e desaparecidos. Já é um número espantoso, brutal, mas o capítulo trata de 10 povos. Somos 305 no Brasil.

Não temos noção da brutalidade que foi a ditadura militar com relação aos povos indígenas. Mesmo eu, estudando isso por três anos ininterruptamente, não tenho ideia. Temos muitos documentos a descobrir, muita história a ser revelada que ainda não tivemos acesso. Vamos descobrir muita coisa triste, ruim.

MC A sua pesquisa de mestrado tratou do que especificamente?

MP Pesquisei a relação entre justiça de transição e Marco Temporal, que foi o grande debate dos indígenas, principalmente na pandemia, e ocorreu tanto no Legislativo quanto no Judiciário. O Marco Temporal é a grande questão da demarcação de terras, e diz que devem ser consideradas terras indígenas apenas aquelas que tinham indígenas em 5 de outubro de 1988, ou seja, na promulgação da Constituição Federal. Mas muitos indígenas foram retirados de sua terra e mortos na ditadura.

Então é uma tese bastante problemática. E relaciono isso ao eixo da reparação, trazendo o relatório da Comissão da Verdade, que recomenda como reparação a demarcação de terras. Então a justiça de transição abre uma nova frente de possibilidade para os povos indígenas. Que a gente possa trazer a nossa história relacionada à ditadura militar, pesquisar como a ditadura influenciou a não demarcação e retirada dos povos de suas terras, fazer esse levantamento, judicializar isso e fazer o pedido de demarcação a partir de reparação por perseguição da ditadura militar.

MC De que forma devemos pensar em reparar esses povos indígenas para além da demarcação de terras?

MP Vem se tornando comum nesses casos de reparação que o primeiro ato seja um pedido de desculpas do Executivo. O Paulo Abrão fazia isso quando era presidente da Comissão da Anistia. O presidente da República deveria pedir desculpas aos povos indígenas e a partir disso estabelecer a demarcação de terra e aplicação de políticas públicas de melhoria da nossa vida, como saúde indígena, educação indígena, nutrição. Tudo isso está relacionado à demarcação. No caso dos yanomami, por exemplo, um povo de pouco contato e que se alimenta do que está na mata e nas águas, eles não conseguem mais fazer isso por causa do garimpo e envenenamento das águas. As terras já estão demarcadas, mas não há proteção.

MC A violência contra os povos indígenas na ditadura está relacionada ao Plano de Integração Nacional (PIN), né? Pode nos falar mais sobre isso?

MP O PIN é da década de 70, no espírito do milagre econômico que a ditadura vendia aos brasileiros: crescer o bolo para depois dividir. Nesse plano seriam feitas grandes obras passando por terras indígenas, com investimento do governo e de empresas internacionais. A Funai, criada em 1967 com dever legal de proteger os indígenas, passou a “pacificar” povos indígenas para que saíssem de suas terras. E aí começam os grandes conflitos fundiários com esses povos que tinham pouco ou nenhum contato com os brancos.

O caso de Itaipu, por exemplo, é bárbaro. Geralmente pensamos nas regiões Centro-Oeste e Norte quando falamos desse tema. Mas em Itaipu o governo invadiu as terras dos Avá-Guarani. A Funai declarou que não eram indígenas, mas paraguaios, então não deveriam ser protegidas aquelas terras. E a ditadura invadiu para construir Itaipu. A maioria dos indígenas não sabia que estava sendo construída Itaipu, só souberam quando começou a encher de água. Até hoje lutam pelas terras deles lá.

MC De que forma podemos levantar essas informações? Precisamos de uma nova Comissão da Verdade?

MP O primeiro passo é ouvir os indígenas. Uma das propostas da Comissão da Verdade é que uma Comissão Indígena fosse criada, para aprofundar esses estudos. Mas de 2014 para cá, o momento político não foi propício para isso. Entramos em novo momento político agora, com Ministério dos Povos Indígenas, a Funai ligada a esse ministério, então é propício para criarmos uma Comissão Nacional Indígena da Verdade e escutar os 305 povos indígenas do Brasil em relação ao que aconteceu durante a ditadura militar.

MC O quanto já foi feito dessa pesquisa?

MP Muito pouco, teríamos que começar quase do zero. É um assunto completamente ignorado e invisibilizado.

Indígena em pau de arara durante período da ditadura militar no Brasil — Foto: Reprodução/Jesco Von Puttkamer
Indígena em pau de arara durante período da ditadura militar no Brasil — Foto: Reprodução/Jesco Von Puttkamer

MC Segundo o relatório da CNV, de 1964 a 1985, 8.350 indígenas foram mortos em massacres, roubo de terras, remoções forçadas dos territórios, prisões, torturas e maus-tratos. Por que essas vítimas não constam nas 434 mortes e desaparecimentos políticos do relatório?

MP E ainda tem a lista de camponeses mortos, que são mais uns 1.500, então dá perto de 10 mil pessoas mortas ou desaparecidas. Essa lista de 434 são de pessoas citadinas, com endereço, CPF, RG, nome de pai e mãe. São pessoas que puderam ser localizadas e identificadas. As que ficaram de fora estão à margem da “civilização”, então ficou uma grande massa amorfa de pessoas que morreram. E continua invisibilizada.

É um dos maiores buracos da historiografia da ditadura militar. E quando a gente ramifica para outras áreas, vemos que foram pouquíssimo ou nada estudadas. Por exemplo, não sabemos absolutamente nada sobre crimes cometidos contra crianças indígenas. Da mesma forma que filhos de presos políticos desapareceram, foram sequestrados, pode ter acontecido com indígenas. Não temos essa informação, precisamos ir atrás.

Crimes contra mulheres indígenas, não se sabe quase nada também. No SPI, órgão que antecedeu a Funai, alguns funcionários aliciavam e prostituíam mulheres indígenas, então isso pode ter acontecido na ditadura, mas não posso afirmar com certeza. O que aconteceu com os velhos na ditadura militar, que na cultura indígena são pessoas importantíssimas? Também não sabemos.

MC A Comissão da Anistia trabalhará também no levantamento dessas informações?

MP O trabalho de investigação é da CNV. A Comissão da Anistia julga pedidos para anistiar politicamente pessoas que foram perseguidas. Por isso precisamos de ações conjuntas. Só podemos agir se for criada uma comissão nacional indígena. Por enquanto, o que podemos fazer: alguns casos tramitam no Judiciário por ação civil pública, ajuizados pelo Ministério Público Federal. Então o MPF pode entrar com uma ação na Comissão pedindo anistia coletiva para esses povos que já estão com ação no Judiciário.

MC Algum povo indígena já foi anistiado?

MP Não de forma coletiva, só como indivíduos. E seguiu o protocolo dos não indígenas, com a indenização, que não considero apropriado. Aconteceu com os Aikewára, por exemplo, envolvidos na guerrilha do Araguaia. Alguns conseguiram uma indenização de cem mil reais, e outros não. Imagine o cisma dentro de um povo indígena que isso causa. Como lidar com isso internamente? Cria mais conflito do que resolve. A primeira proposta é ouvir o povo envolvido e saber o que eles entendem como reparação.

MC Em 1969 começou a funcionar no município de Resplendor (MG) o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, um “centro de recuperação” de índios mantido pela ditadura militar. Ali os militares também criaram as Guardas Rurais Indígenas (GRINs), formadas por indígenas para policiar indígenas. O que se sabe sobre esses episódios?

MP O Reformatório Agrícola Krenak foi criado, dizia-se, para prender índios vadios. Mas quem estava preso lá era quem não aceitava a administração da Funai, iam reclamar e acabavam sendo transferidos para lá. O reformatório começou dentro da terra indígena Krenak, então o povo Krenak acabou preso dentro de sua própria terra, e tendo que conviver com indígenas de vários lugares do Brasil inteiro, desconhecidos entre si, sem nem saber por que estavam presos. Não existia crime, processo penal, sentença estabelecida. E sofriam castigos brutais, pessoas eram escravizadas lá.

Depois o reformatório foi transferido para a fazenda guarani. Os Krenak tiveram que sair de suas terras e ir para essa fazenda em Carmésia, em Minas Gerais. Então mais uma vez o drama do marco temporal. Os Krenak não estavam em suas terras em 1988 porque foram forçosamente tirados de lá por causa de uma prisão que não pediram para ser construída. O número não é fechado, mas sabe-se que foram mais de cem presos do Brasil inteiro. Durou cerca de dez anos. Ao mesmo tempo, criou-se essa guarda rural indígena, uma turma que a Polícia Militar de Minas treinou para que indígenas torturassem e fiscalizassem indígenas. Treinou-se uma primeira turma, que chegou a se formar e teve um desfile cívico em comemoração. Nesse desfile, que foi gravado, tinha uma representação do pau de arara, que era uma das formas de se torturar.

Etiquetaram a fita com essa gravação como “arara” e guardaram. Anos depois, encontraram essa fita e acharam que era do povo arara, mas quando viram, eram as imagens da primeira formação da turma. Até então, as pessoas sabiam pelo que os presos políticos relatavam, mas as pessoas nunca tinha visto a imagem. A primeira representação do pau de arara saiu do desfile.

Foram treinados vários indígenas, que voltaram a suas terras com outra mentalidade e mexeu na estrutura de cada povo, o que se reflete até hoje. Tem muito velho que foi dessa época e ainda lembra. Voltaram com outra referência de hierarquia, de castigo.

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