Direitos Reprodutivos

Por Camila Cetrone, redação Marie Claire — São Paulo


Há 32 anos, a ginecologista Sandra Vázquez luta pelo acesso pleno de todas as pessoas aos direitos reprodutivos — Foto: Reprodução/FUSA
Há 32 anos, a ginecologista Sandra Vázquez luta pelo acesso pleno de todas as pessoas aos direitos reprodutivos — Foto: Reprodução/FUSA

Desde que descriminalizou o aborto em todos os casos em dezembro de 2020, a Argentina se tornou um destino de esperança para mulheres de regiões próximas que querem fazer o procedimento, mas estão em territórios com leis restritivas. Desde então, organizações civis passaram a atender não apenas as hermanas argentinas, como abriram as fronteiras para receber mulheres de países vizinhos para conseguirem ter acesso a aparatos de saúde reprodutiva e sexual.

Isso inclui as brasileiras que querem interromper uma gravidez, mas não se encaixam nos cenários de aborto legal – gestação decorrentes de estupro, de risco de vida à pessoa gestante ou de feto anencéfalo. Um dos centros de saúde argentinos ao qual as brasileiras podem recorrer é o Grupo FUSA, organização que oferece, além da interrupção de gravidez, acesso a equipes multidisciplinares e uma vasta gama de serviços – desde métodos contraceptivos à educação sexual integral.

Estender o atendimento a mulheres de outras regiões da América Latina é uma das prioridades da diretora-executiva da iniciativa: a ginecologista especializada no público infanto-juvenil Sandra Vázquez, que há 30 anos atua em prol do acesso à saúde de qualidade, com perspectiva de gênero e atendimento humanizado. Participante de diversos conselhos oficiais de direitos reprodutivos, ela se tornou uma voz respeitada no assunto – além de ter feito parte das manifestações que pediam pela legalização do aborto e acessibilidade a ferramentas que permitem que as pessoas decidam sobre seus próprios corpos.

"No Brasil, o número de habitantes é tão grande que tudo que se faz é muito pouco. Se houver a possibilidade de colaborar, queremos mostrar experiência, números e como estamos avançando na Argentina. Aqui, ninguém mais morre", explica Vázquez a Marie Claire, por vídeo, sobre o porquê de realizar atendimento às brasileiras.

Com sedes nas províncias de Buenos Aires, Santa Fé e Ramos Mejía, chamadas de Casa FUSA, busca oferecer fácil acesso a um serviço seguro, com baixo custo – ou mesmo gratuitamente. Somente no ano de 2022, a FUSA realizou mais de 1.400 interrupções de gravidez – por aspiração manual intrauterina ou de forma farmacológica, com misoprostol e mifepristona, que juntos oferecem 97% de eficácia. Além disso, fez mais de 1.700 acompanhamentos virtuais.

Também trabalhou ativamente na implementação de métodos contraceptivos: foram 1.162 procedimentos para a inserção de DIU, hormonal ou não, implante contraceptivo ou anticoncepcionais orais.

"Em geral, os anti-direitos dizem que, se houver uma lei do aborto voluntário, as mulheres vão engravidar e abortar como se fosse um método contraceptivo. Não é verdade. Depois que uma mulher interrompe uma gravidez, é comum que coloque um método contraceptivo e não volte a engravidar. Ao longo do tempo, caem as incidências de aborto", diz Vázquez. "O que a maré verde queria não era só a interrupção da gravidez, mas a aplicação de educação sexual, métodos contraceptivos acessíveis e respeito às diversidades. Lutamos pelo todo."

Fachada da sede de Casa FUSA em Santa Fé, província da Argentina — Foto: Reprodução/FUSA
Fachada da sede de Casa FUSA em Santa Fé, província da Argentina — Foto: Reprodução/FUSA

MARIE CLAIRE Como você passou a se engajar no movimento pelos direitos reprodutivos na Argentina?

SANDRA VÁZQUEZ Quando me formei médica, em 1985, queria trabalhar em ginecologia e saúde sexual e reprodutiva – naquela época não tinha esse nome, era Procriação Responsável. Trabalhava em um hospital público em Buenos Aires com adolescentes que estavam iniciando a vida sexual, atendia mulheres entre 10 e 20 anos. Comecei a me dar conta da falta de acesso: neste momento não havia leis de saúde reprodutiva ou acesso a métodos contraceptivos, entendia-se que só as adultas e casadas deveriam usar. Fui percebendo a pouca informação que essas meninas tinham, porque não existia educação sexual integral. Foi dessa experiência que começamos a elaborar o que seria a FUSA.

MC Qual era o propósito da organização nesse primeiro momento?

SV Era trabalhar com acesso à saúde de adolescentes e jovens colocando foco na saúde sexual e reprodutiva. Conseguimos trabalhar em áreas distintas para prestar assistência real a mulheres em situação de vulnerabilidade e de qualquer idade. Com o passar do tempo, vimos que não só a população jovem era vulnerável, mas também as imigrantes, principalmente do Paraguai, Bolívia e Venezuela; meninas e mulheres com deficiência, que têm pouco acesso à saúde reprodutiva porque a lei as discrimina; e a população trans, que passa por uma questão econômica e de rejeição nos planos de saúde. Hoje, também buscamos chegar a países como Brasil e Chile, que não têm leis para interrupção voluntária de gravidez. O Brasil tem exceções em que o aborto é legal, mas quando a mulher precisa o acesso é difícil. No Chile é igual.

MC Como o serviço é custeado?

SV Somos uma entidade sem fins lucrativos. Cobramos um mínimo por serviços de saúde, mas a pessoa ganha um desconto de acordo com o que puder pagar. Também temos contratos com planos de saúde e doadores que nos dão a possibilidade de subsidiar os serviços gratuitamente. Agora, por exemplo, estamos lançando uma chamada para vasectomia.

MC E qual é atualmente a procura de homens pela vasectomia dentro da FUSA?

SV É baixo. Em geral, há desconhecimento da vasectomia e existem muitos mitos. Os homens estão acostumados com o fato de que os cuidados e o método contraceptivo são preocupações exclusivas das mulheres. Pensam que é um processo doloroso, que não terão mais ereções ou vão perder a sensibilidade. Há muito o que trabalhar na difusão de treinamentos para tirar esses mitos e falsidades. O que se faz é mostrar a eles que é um procedimento ambulatorial simples.

MC Voltando ao aborto, como funciona o ciclo de atendimento?

SV Temos um espaço de aconselhamento, que pode ser em grupo ou individual, presencial ou através de telemedicina. Nele, tranquilizamos as mulheres quanto aos medos, explicamos que não há riscos e apresentamos os métodos: interrupção farmacológica, com misoprostol e mifepristona, ou aspiração manual intrauterina. Há uma avaliação geral por um médico e a consulta é marcada. Se for tratamento farmacológico, os remédios são todos fornecidos pela FUSA. Também entregamos alguns livretos com o passo a passo de como usá-los e que descrevem os sintomas, o que é normal e o que não é.

Caso decida pela aspiração, as mulheres decidem que música vão ouvir na hora do procedimento e ela é acompanhada por uma pessoa enquanto o médico o faz. Quando há pouca resistência à dor, colocamos uma bolsa de água quente no abdômen. Tudo é realizado conforme o tempo daquela mulher, nada é apressado. Geralmente, quem decide fazer aspiração coloca um DIU, hormonal ou não, para prevenir futuras gestações. Em seguida, elas vão para uma pequena sala onde se sentam, ouvem um pouco de música, tomam uma xícara de café ou chá, comem alguma coisa e, em 10 ou 15 minutos, vão embora.

Livretos e materiais informativos da FUSA — Foto: Reprodução/FUSA
Livretos e materiais informativos da FUSA — Foto: Reprodução/FUSA

MC E qual é o retorno que recebe dessas mulheres?

SV Recebemos muitos feedbacks de mulheres que dizem que passaram por um dos momentos mais difíceis de suas vidas e não estavam sozinhas. Essa é uma tarefa que executamos perfeitamente: entender o aborto como um processo, e não como um momento técnico. Há acolhimento desde o primeiro contato com a orientadora até quem atende o telefone, e é esse acompanhamento que nos fortalece.

MC Como as brasileiras podem acessar o serviço?

SV Estamos trabalhando com o Projeto Vivas, que encaminha as mulheres que querem fazer uma interrupção voluntária para nós. Temos uma pessoa que fala em português e faz as entrevistas para verificar se ela está em condições e se há qualquer problema que impossibilite a realização de uma aspiração. É difícil para uma pessoa que nunca viajou, que nunca se separou da família ou nunca embarcou em um avião para chegar na Argentina. Então, ela está sempre sendo acompanhada por WhatsApp.

MC No caso das brasileiras, há muito medo em falar sobre aborto justamente pela visão restritiva que temos aqui. Há um desconforto ou medo maior por parte delas?

SV Uma das principais coisas que levantamos é que, na Argentina, o aborto é legal, e ninguém pode criminalizá-la porque, para nós, é só mais um serviço. A partir do momento que se cruza a fronteira, ninguém pode fazer nada. Os medos que elas têm estão intimamente ligados ao fato de que o aborto no Brasil significa morte, algo sangrento. Falamos disso nas consultas de aconselhamento para que deixem tudo isso de lado e foquem apenas com preocupações de pegar um avião, por exemplo.

MC Em âmbito legal e político, como você analisa o cenário brasileiro em relação ao aborto?

SV Vocês vêm de um governo Bolsonaro muito difícil, com restrições significativas em termos de acesso a todos os direitos – diria não só o aborto, mas saúde reprodutiva em geral. Tudo isso é visto pela ótica do castigo, o que precisa mudar para que as pessoas comecem a se empoderar sobre o assunto. A partir de outros países com leis mais amplas, como nós, Uruguai e México, é possível uma contribuição não só sobre conhecimento científico, mas sobre a realidade do que acontece. Para nós, a lei foi uma oportunidade de demonstrar que era uma questão de saúde pública e de que estávamos salvando vidas. Não éramos loucas com lenços verdes gritando pelas ruas: representávamos as pessoas internadas por complicações de abortos clandestinos. A clandestinidade só leva a aumentar o risco, não reduzir o aborto.

MC Em algum momento, a organização foi vítima de perseguição por parte de movimentos anti-aborto, grupos religiosos ou pela extrema direita?

SV Há até hoje muita perseguição. Nos ameaçam, dizem que vão nos matar ou incendiar a Casa FUSA. Isso inclui os programas de TV e noticiários noturnos, os mais assistidos do país: exibem fotos da Casa FUSA dizendo que recebemos recursos do Planned Parenthood – o que jamais aconteceu – para assassinar bebês e que vendíamos os fetos. Um nível de mentiras e agressões altamente direcionados. Cheguei a procurar a justiça, fizemos uma ação e, depois de um ano, encerraram as investigações, não acontece nada. Grupos religiosos vêm duas vezes ao dia rezar em frente à FUSA. Dão rosários, fetos, tentam interceptar as pessoas que querem entrar. Aqui, meninos vão para a psicóloga, mulheres fazem citologias e ecografias, vem gente fazer pré-natal... Mas tudo eles veem mal, não é só o aborto.

Sandra Vázquez sobre perseguição contra a FUSA: 'Cheguei a procurar a justiça, fizemos uma ação e, depois de um ano, encerraram as investigações. Não acontece nada' — Foto: Reprodução/FUSA
Sandra Vázquez sobre perseguição contra a FUSA: 'Cheguei a procurar a justiça, fizemos uma ação e, depois de um ano, encerraram as investigações. Não acontece nada' — Foto: Reprodução/FUSA

MC Houve uma diminuição dessas ameaças nos últimos tempos?

SV Sim, mas agora estão retomando devido às eleições presidenciais. Querem que se eleja alguém que revogue a lei do aborto. Sabemos que é possível que haja um retrocesso em outras coisas. Por exemplo, muitos partidos estão pleiteando a extinção do Ministério das Mulheres. Revogar a lei do aborto vai ser uma questão muito complicada, não acho que a sociedade vai lutar contra isso.

MC Qual é a principal prioridade da FUSA neste momento?

SV Estamos trabalhando uma linha muito forte de prevenção ao abuso sexual de crianças e adolescentes, tentando fazer um programa nacional a curto prazo, de prevenção e atendimento às vítimas que tenham sido abusadas pelos pais. A justiça não está funcionando bem hoje nesses casos. As questões são mais relacionadas à proteção de menores ou acesso ao conhecimento.

MC Quais ações a organização mais quer dar prioridade daqui para frente e como gostariam de inspirar outras iniciativas?

SV Queremos que as pessoas com capacidade de gestar decidam sobre suas próprias vidas e gostaria que pudéssemos apoiar a América Latina. Fundamentalmente o Brasil, principalmente agora que se tem um governo mais permeável. Mesmo que Lula, na campanha, tenha dito que era contra o aborto, sabemos que ele não é. Digamos que, às vezes, as questões políticas antes das eleições se sobressaem. No Brasil, o número de habitantes é tão grande que tudo que se faz é muito pouco. Se houver a possibilidade de colaborar, queremos mostrar experiência, números e como estamos avançando na Argentina. Aqui, ninguém mais morre.

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