• Por Maria Laura Neves e Patrícia Zaidan
  • Colaboração para Marie Claire
Atualizado em
Imagens da mobilização pró-discriminalização do aborto, na Argentina (Foto: Getty Images)

Imagens da mobilização pró-discriminalização do aborto, na Argentina (Foto: Getty Images)

Entardecia quando a atriz argentina Jazmín Stuart, 44 anos, se juntou à multidão que ocupava a Praça do Congresso, em Buenos Aires, no histórico 29 de dezembro de 2020. Para chegar à barraca onde suas companheiras estavam, ela atravessou uma multidão de mulheres que vestiam lenços verdes – símbolo do feminismo argentino – nos pulsos e nos cabelos. Nesses panos, estavam escritos os motivos que as levaram à praça: “Educação sexual para decidir. Anticoncepcional para não abortar. Aborto legal para não morrer”. Ao chegar ao ponto de encontro, rendeu as ativistas que estavam ali desde o começo da manhã, em uma poderosa vigília que acompanhava a votação do projeto de lei no Senado que legalizaria a interrupção da gravidez até a 14ª semana no país. A cada voto positivo, transmitido por um telão, a multidão delirava. Pela oitava vez, o Parlamento argentino discutia o aborto. Pela primeira vez, os políticos temeram as ruas. Naquele dia, e no crepúsculo de 2020, a lei 27.610, que estabelece que a gravidez pode ser interrompida até a 14ª semana, foi aprovada na Argentina. O hospital tem de realizar o procedimento até dez dias depois da solicitação.

“Choramos, nos abraçamos, gritamos. Foi uma liberação coletiva de energia”, diz Jazmín sobre a noite histórica. “Ficamos muito emocionadas. Foram décadas de luta para chegar àquilo. Não podíamos deixar de pensar nas gerações de mulheres que tiveram de abortar ilegalmente, em segredo, correndo riscos de saúde e vida”, afirma a atriz, que integra o coletivo Actrices Argentinas, uma das 700 organizações de mulheres de Buenos Aires que conferiram à capital portenha o apelido de Cidade Feminista. O sinal disso eram os lenços verdes em carros, bicicletas, janelas, mochilas e cabelos. “Estima-se que 450 mil mulheres abortam por ano, e que há medo ao recorrer às intervenções clandestinas”, diz Jazmín, porta-voz das atrizes. Desde a redemocratização do país, em 1983, mais de 3 mil morreram por essa causa. Anualmente, 39 mil são hospitalizadas por complicações de procedimentos malsucedidos.   

Fruto da militância de Jazmín e de milhares de ativistas, a legalização do aborto deixou de ser um assunto marginal na sociedade argentina nos últimos anos. Passou a ser discussão central nos almoços de família, nos escritórios, nas escolas, nos bares, nos programas de TV.  A pressão popular culminou, em 2018, na criação de uma comissão transpartidária de deputadas, a Sorora, que escreveu um projeto de lei que descriminaliza a interrupção da gravidez até 14 semanas. O texto foi aprovado pela Câmara e derrubado pelo Senado. Na ocasião, o tema também mobilizou o país: militantes feministas fizeram vigília na Praça do Congresso e uma intensa campanha nas redes sociais e fora delas. Jazmín conta que integrou uma das comissões que não foram recebidas pelos senadores, mas visitaram os deputados. “Eles diziam que podiam conversar sobre infraestrutura, gado ou petróleo, mas nada entendiam de aborto”, recorda. Para convencer os deputados, perguntava: “Como o senhor reagiria se sua filha de 16 anos engravidasse e tivesse de ir escondida a uma clínica, de onde sairia morta, doente ou arrastando o estigma de criminosa?”.

Após a derrota, o então presidente Maurício Macri, de centro-direita, propôs uma alteração no Código Penal que extinguiria a pena criminal para mulheres que fizessem o procedimento. “Essa medida ajudou a descolar o rótulo de bandeira dos partidos de esquerda à da legalização do aborto, o que foi um grande ganho para a luta”, afirma a cientista política argentina Giselle Cariño, CEO da International Planned Parenthood Western Hemisphere Region, ONG que luta pelos direitos das mulheres na América Latina e no Caribe. O projeto do presidente, no entanto, não andou, mas outro grande passo rumo à autonomia estava dado. A população entendera que o aborto se tratava de uma questão de saúde pública e não criminal – desde 1921, era punido com cinco anos de prisão, excluindo os casos de gravidez fruto de estupro e risco de morte para a mulher, de acordo com a Constituição. As pesquisas de opinião passaram a retratar recordes de 60% a 78% de aceitação popular à ideia. “Ficamos devastadas com a derrota, mas sabíamos que era questão de tempo para aprovar”, afirma Giselle.

O movimento Ni Una a Menos (Foto: Getty Images)

O movimento Ni Una a Menos (Foto: Getty Images)

A discussão não parou na saúde. Avançou pela necessidade de romper o domínio masculino inaugurado pelos colonizadores espanhóis, que chegaram à região em 1502, fincaram bandeira no chão e demarcaram como propriedade os corpos das mulheres que viriam a ser suas. Esse sentimento, somado à mística da maternidade santa, vivia nos outdoors pagos pela Minoria Celeste, grupo de conservadores antiaborto espalhados por Buenos Aires: “Se a Virgem Maria tivesse abortado, não teríamos Natal”; “Aborto é contra os pobres, contra os nascidos com síndrome de Down”; “É descarte, assassinato”. Na Praça do Congresso, ergueram imagens católicas, crucifixos e lenços azuis com a frase: “Salvemos as duas vidas”. Não saiu confusão porque a polícia manteve a Minoria isolada da monumental onda verde de mulheres, lésbicas, travestis e transgêneros, defensoras dos direitos humanos e do ambiente, representantes femininas de partidos e sindicatos. Era a foto viva do conceito de “povo feminista”, criado por Graciela Di Marco, da Universidad Nacional de San Martín, que escreve que as mulheres construíram um movimento político (e não só feminista), antagonizando o catolicismo integral e as demandas de um laicismo profundo e de mais democracia.
 

"O movimento de mulheres na Argentina sempre foi muito forte e intrinsecamente ligado à defesa dos direitos humanos"

Giselle Cariño, CEO da International Planned Parenthood Western Hemisphere Region

NI UNA MENOS

“O movimento de mulheres na Argentina sempre foi muito forte e intrinsecamente ligado à defesa dos direitos humanos”, afirma Giselle. A organização das Mães da Praça de Maio, que ainda hoje cobra respostas sobre os filhos desaparecidos – foram 30 mil casos – na ditadura, é o exemplo mais emblemático dessa interseccionalidade. Todas as quintas-feiras elas se reúnem ali para sua tradicional manifestação. Mas foi no ano de 2015, com o surgimento do movimento Ni Una Menos, que a atual onda revolucionária tomou forma. Na época, jovens ativistas começaram uma mobilização contra a violência machista. O estopim foi o assassinato da adolescente Chiara Paz, de 14 anos, pelo namorado de 16. Ela estava grávida. No ano seguinte, ganhou forças e ultrapassou as fronteiras do país com o assassinato brutal de Lucia Perez, que foi drogada, brutalmente violentada e empalada. “Naquele momento, o foco eram os feminicídios”, afirma Cecilia Palmeiro, integrante do Ni Una Menos. “Com o tempo, passamos a associar as mortes decorrentes do aborto ilegal ao feminicídio cometido pelo Estado”, complementa a ativista. Em 2017, as ativistas começaram a fazer greves que se espalharam por toda a América Latina. “Em 2018, trabalhamos para que uma lei fosse aprovada.”

O Ni Una Menos é um movimento autogestionário, participativo e horizontal. Ninguém manda, os acordos se dão em plenárias regionais e viralizam nas redes das organizações parceiras. Tem caráter transfeminista, por incluir mulheres que combatem racismo, fascismo, LGBTfobia, misoginia e o neoliberalismo que explora, reservando o pior salário para elas. Por manter-se conectada a frentes pelo mundo, é também internacionalista.

Para a antropóloga brasileira Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília e vice-diretora da região do hemisfério ocidental na International Planned Parenthood Federation (IPPF), houve ganho em agregar movimentos fora de suas fronteiras. “Em geral, a mulher que luta contra a violência doméstica não sabe lidar com a questão do aborto. As que enfrentam a violência de gênero e defendem o aborto não se aproximam do movimento trans”, afirma. “Na Argentina, o front é único e conta com a força jovem, das deputadas e dos deputados, que emergiram das ruas.” Ofelia Fernández, 20 anos, é uma dessas parlamentares. Foi incluída pela revista americana Time na lista mundial de dez líderes da nova geração. Em 2018, ainda secundarista, ela se fez notar por um discurso na Câmara. Os deputados estavam dispersos, Ofelia disse: “Os senhores não dão ouvidos à minha geração e precisam escutar. Somos nós que fazemos aborto, e agora cabe a vocês nos dar o direito de decidir”. Elegeu-se deputada um ano depois.

O presidente Fernández e sua gravata verde

A onda verde oxigenou a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal Seguro e Gratuito, criada em 2005 por feministas, acadêmicas e profissionais de saúde. Em 15 anos, ela propôs quase todos os projetos que tramitaram no Congresso, escritos por advogadas feministas como Nelly Minyersky que, aos 91 anos, se mantém na linha de frente do ativismo. Por exigência da Câmara, Nelly submeteu-se ao teste de coronavírus para entrar e influenciar os deputados na aprovação da lei no fim do ano passado. Em seu time, há três pioneiras que vão às passeatas de braços dados com secundaristas que usam glitter verde no rosto. São elas a advogada Nina Brugo, 77, a médica Martha Rosenberg, 84, e a socióloga Dora Barrancos, 80, assessora do presidente Alberto Fernández em assuntos de gênero.

O projeto que o Senado debatia no fim do ano passado é de autoria dele. Na campanha eleitoral de 2019, apoiado pelas feministas, Fernández prometeu legalizar o aborto. Sua vice, a ex-presidente Cristina Kichner, nunca apoiou manifestações pela legalização – assim como a ex-presidente Dilma Rousseff, que, em entrevista à Marie Claire antes de sair candidata, defendeu a legalização e depois voltou atrás, confrontada por José Serra nas eleições de 2010. Pouco dias após assumir a cadeira, no dia 17 de dezembro de 2020, Fernández deu o nó em sua gravata verde, gravou um vídeo e postou no Twitter. Anunciava dois projetos: o da legalização do aborto e o de amparo do Estado a mães durante os primeiros mil dias do bebê. O segundo era uma resposta a argumentos da oposição de que as mulheres abortavam porque não tinham amparo para seguir com a gestação. “O Estado tem a obrigação de acompanhar as mulheres em seus projetos de maternidade, mas também de cuidar da vida daquelas que decidem interromper sua gravidez”, justificou o presidente. “A estratégia foi perfeita, fez sentido”, comenta Giselle Cariño.

Outra parte importante da argumentação pró-legalização do aborto na Argentina foram os dados fornecidos pelo vizinho Uruguai, que descriminalizou a prática em 2012. “Recebemos muitas informações, dados e estudos”, diz Giselle. Uma pesquisa da Universidade da República do Uruguai, por exemplo, mostrou que, após a implementação da lei, os bebês passaram a nascer em melhores condições de saúde, com mais peso do que antes dela. Outro trabalho, da Organização Mundial da Saúde, mostrou que, depois da lei, o país se tornou o de menor índice de mortalidade materna na América Latina e no Caribe.

A cor verde é a oficial do movimento (Foto: Getty Images)

A cor verde é a oficial do movimento (Foto: Getty Images)

Lições hermanas

O que se pode aprender com as argentinas? Em primeiro lugar, a não nos medirmos por elas. “Aprendemos mal quando comparamos”, diz Debora. O Brasil é parecido com o vizinho, mas nosso caminho tende a ser outro. “O maior avanço está no Supremo, onde uma ação já passou por todas as audiências públicas e aguarda a entrada em discussão”, lembra. Ela se refere à ação do PSOL e da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, a ADPF 442, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana, questionando os artigos 124 e 125 do Código Penal, que penalizam o procedimento. “A democracia é composta de três poderes. No giro autoritário que o país sofreu, o Judiciário ainda é o mais independente deles.” Debora acredita ser mais fácil mostrar aos 11 ministros do STF que a clandestinidade mata e que o fundamentalismo, orquestrado pelo governo, persegue as mulheres que precisam abortar dentro da lei. O caso emblemático mais recente é o da menina capixaba de 10 anos, grávida depois de estupros praticados pelo tio. Em agosto passado, ela conseguiu entrar em um hospital pernambucano e abortar sob a proteção de feministas que fizeram um cordão na porta para impedir a ação dos fundamentalistas.

Jolúzia Batista, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), que monitora a produção parlamentar com recorte de gênero no Brasil, afirma que o bolsonarismo reagiu a esse caso, dificultando a vida das vítimas de abusos sexuais. Um exemplo: dos 76 hospitais que ofereciam o serviço de aborto legal em 2019, restaram 42 em 2020. “Nos decretos, portarias e resoluções do governo, está uma clara tentativa de ‘redomesticar’ as mulheres, que hoje têm menor acesso à aposentadoria e sofrem o desemprego em maior número. “Sobrou para elas apenas a lida doméstica.” Tese com a qual concorda a advogada Elisa Aníbal ao lembrar que, na Câmara, há proposições da extrema direita defendendo a anulação total do direito ao aborto. Ela integra a Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto que, em 2015, puxou nas ruas o “Fora Cunha”. Conhecida como Primavera Feminista, a iniciativa peitou um projeto de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, que pretendia acabar com a oferta, no SUS, da pílula do dia seguinte. Giselle crê que o Brasil chegará ao aborto: “O que aconteceu na Argentina repercute na América do Sul. Na Colômbia, um movimento tenta tirar o aborto do Código Penal. No Chile, o processo constitucional começa com paridade de gênero e, no Brasil, as mudanças podem vir do Supremo”. Para ela, não se deve separar aborto seguro de cidadania, liberdade, igualdade de gênero, democracia e combate à violência. “Ele é parte da agenda de direitos.”

Entendidas as diferenças entre as sociedades, o recado das argentinas dos lenços verdes é claro: “Cada país tem suas particularidades. O que temos em comum é que não podemos parar de resistir. As brasileiras podem se apropriar do lenço verde, que foi um instrumento de comunicação importante para nós. Estamos aqui para ampará-las no que precisarem. A América Latina aglutinou lutas e tem um grande movimento interseccional”, diz Giselle Cariño. A ativista Cecilia Palmeiro corrobora: “Estamos disponíveis e prontas para lutar pelas mulheres, sejam elas brasileiras, sejam argentinas. Ni Una Menos vale para todas, não só para nós. Força para todas porque vai cair, vai cair”, diz, em alusão ao grito que a multidão ecoou na noite do dia 29: “Abaixo o patriarcado, que vai cair, vai cair. Acima o feminismo, que vai vencer, vai vencer”.