Silvia Chakian

Por Silvia Chakian

Promotora de Justiça, mestre em Direito Penal e autora do livro "A Construção dos Direitos das Mulheres"

São Paulo


Qual é o legado de 2023 para as mulheres? — Foto: João Brito (gerada com Inteligência Artificial)
Qual é o legado de 2023 para as mulheres? — Foto: João Brito (gerada com Inteligência Artificial)

O ano que se iniciou com um atentado sem precedentes contra nossa democracia termina com a marca do realinhamento à legalidade, repúdio ao autoritarismo e fortalecimento das instituições, que, aliás, serão lembradas pelas respostas contundentes que apresentaram (ou deixaram de apresentar) na defesa do nosso Estado Democrático. Como aprendizado, a certeza de que a democracia não está definitivamente conquistada, o que impõe vigilância constante.

Mas 2023 também foi um ano emblemático para a luta dos direitos das mulheres. O caso Daniel Alves despertou atenção para o Protocolo espanhol No Callen, criado para enfrentar situações de violência de gênero em espaços de lazer a partir de ações de prevenção, acolhimento e proteção à vítima, com respeito à sua privacidade e autonomia, exigindo a capacitação de funcionários. Iniciativas legislativas semelhantes avançam no Brasil.

A Lei 14.550/23 aprimorou medidas protetivas de urgência para mulheres em situação de violência doméstica ao estabelecer que sua concessão independe da motivação da violência ou da existência de investigação ou processo criminal contra o agressor. A Lei 14.674/23 facilitou a concessão de auxílio-aluguel em caso de vulnerabilidade social e econômica da vítima.

No âmbito do combate ao assédio sexual, a Lei 14.540/23 obriga todos os órgãos da administração pública à criação de canais internos de denúncia e capacitação de seus agentes para lidar com casos dessa natureza. Já a Lei 14.542/23 estabeleceu a prioridade no atendimento às mulheres em situação de violência doméstica pelo Sistema Nacional de Emprego.

Avanço importante ocorreu no Direito de Família: a Lei 14.713/23 criou exceção à regra geral da guarda compartilhada, impedindo sua concessão ou exercício sempre que houver risco de violência doméstica e familiar. Nada mais adequado, já que nesses casos a necessidade de contato e convivência exigidos acaba sendo estopim para episódios de agressão física e verbal, devendo a justiça se preocupar com a escalada de violência e, principalmente, o impacto para os filhos.

Finalmente, a Lei 14.717/23 rompeu o padrão de invisibilidade das vítimas indiretas do feminicídio: crianças e adolescentes levados à condição de orfandade em razão do assassinato de suas mães. A legislação prevê o pagamento de benefício assistencial a eles como forma de minimizar as enormes dificuldades que têm para reconstruir suas vidas.

Apesar desses avanços, o último Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revela dados alarmantes de aumento da violência contra as mulheres, como 2,6% nos feminicídios. Estamos colhendo os frutos da falta de orçamento para a pasta nos últimos anos; do sucateamento de serviços da Rede de Atendimento; do crescimento do discurso misógino que, em última instância, “justifica a violência”; das consequências da pandemia, que impôs às mulheres ainda mais vulnerabilidade no espaço doméstico; e do efeito backlash, de reação violenta à maior reivindicação das mulheres por direitos. Também houve aumento de 14,9% nos casos de estupro contra meninas e mulheres, o que é revelador das nossas relações sociais estruturadas historicamente a partir das desigualdades de gênero; da fragilidade persistente do Estado na efetivação das doutrinas de proteção integral e prioridade absoluta de crianças e adolescentes; e do tabu e desinformação que ainda revestem os debates sobre educação sexual.

De qualquer forma, terminar o ano com a constatação de que quase 4 milhões de estudantes tiveram que refletir sobre o importantíssimo tema dos “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil” na redação do Enem deve ser motivo de renovação de nossas esperanças. Que venha 2024!

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