• Natacha Cortêz
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O Produto Interno Bruto (PIB) de um país é o resultado da soma dos bens e serviços finais produzidos por essa nação num período. É também o principal indicador do desempenho econômico dela, adotado por governos do mundo todo. Seu cálculo inclui da produção de carros a publiposts, passando pelas atividades dos profissionais liberais. Essa conta exclui, no entanto, a jornada contínua de trabalho doméstico da paulistana Tereza Joda. Desde março, ela dedica seus dias a limpar a casa onde mora com o marido e os filhos, além de prestar assistência (física e emocional) à toda família. É sobre esse trabalho das mulheres – sem remuneração e invisibilizado – que economistas feministas têm se debruçado desde a década de 1970. Com a pandemia e o aumento da carga de trabalho sobre os ombros femininos, as discussões sobre a economia do cuidado, como as estudiosas se referem a essa área de estudo, foram ainda mais estimuladas. Conhecer o valor, literalmente, dessa mão de obra, elas argumentam, nunca foi tão urgente.

O real valor DO cuidado (Foto: Iilustração: Anna Magalhães)

(Foto: Iilustração: Anna Magalhães)

Foi em março, quando a pandemia mudou a rotina dos brasileiros, que Tereza, de 37 anos, perdeu o emprego de analista de RH numa agência de comunicação no centro de São Paulo. Com os dois filhos pequenos em casa devido a interrupção das aulas presenciais, passou a assistí-los em tempo integral, acreditando piamente que "aquilo tudo duraria dois meses". Desempregada e confinada em casa, dispensou a diarista e se tornou a responsável pela limpeza do lugar, pela alimentação do marido, então em home office, e das crianças (cozinhando ao menos duas vezes ao dia), por comprar e gerir os estoques (de comida a produtos de limpeza e higiene) e, logo depois, pelos cuidados com a mãe, de 74 anos, que quebrou a perna e foi morar com a filha por um tempo.

Estamos em dezembro e, nove meses depois, Tereza se vê refém de uma dinâmica sem data para acabar. A mãe, que depois da fratura na perna teve Covid, continua com ela, o marido segue em home office e os filhos sem ir para a escola. Padecendo de um esgotamento físico e mental, Tereza desabafa: nunca se sentiu “tão pobre, tão distante de si e tão invisível”. “O trabalho doméstico é exaustivo, contínuo, exige doação física e emocional, exige planejamento, não tem qualquer tipo de reconhecimento e não há espaço para folga. É simplesmente visto como uma aptidão feminina. Um papel que nem sequer questionei se podia recusar”, diz ela em uma videoconferência de 15 minutos que fizemos entre o banho do filho mais novo e a preparação do jantar.

A crise causada pelo coronavírus é mais sentida pelas mulheres e empurra boa parte da força de trabalho delas de volta para casa. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) mostrou que, como Tereza, 7 milhões de brasileiras abandonaram o mercado na última quinzena de março. São 2 milhões a mais que os homens na mesma situação. É a primeira vez nos últimos três anos que a maioria das mulheres brasileiras está desempregada.

Na casa de Tereza, não existiu conversa com o marido sobre ela retomar a profissão e buscar por novas vagas no setor de Recursos Humanos. O casal naturalmente preferiu zelar pela manutenção do emprego dele, que sempre ganhou mais que o dobro da mulher. O acordo velado foi: com a falta da empregada doméstica – antes presente em dias alternados –, da escola, do inglês e do futebol dos meninos, alguém teria que preencher os buracos. Não houve dúvidas de que essa pessoa seria Tereza. Sua mãe dependente foi apenas a cereja do bolo do novo escopo de trabalho que a filha precisou desempenhar. “Acordo às 7 da manhã e começo preparando o café. Só paro mesmo depois da louça do jantar e das últimas medicações de minha mãe. Lá pelas 22h estou livre para pensar em mim”, conta ela.

O real valor do cuidado (Foto: Ilustração: Anna Magalhães)

(Foto: Ilustração: Anna Magalhães)


Se o PIB considerasse os afazeres domésticos e da classe do cuidado não pagos, o cálculo do período mais crítico da pandemia (menos 9,7% no segundo trimestre em relação aos três primeiros meses do ano), que definiu a marca do pior desempenho econômico do Brasil nas últimas décadas, não assustaria analistas como foi capaz de fazer. Essa é a teoria que Hildete Pereira de Melo, professora da Faculdade de Economia e da pós-graduação em Políticas Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF), defende desde 2001, o ano em que parou para estudar o trabalho doméstico não remunerado, “feito por amor ou destino”, no Produto Interno Bruto per capita do Brasil. Analisando dados de 2001 a 2010, ela descobriu que o PIB aumentaria ao menos 11% em cada um desses anos caso fosse contabilizado o trabalho gratuito que as pessoas fazem cuidando do lar e de outras pessoas. A valoração foi baseada no rendimento médio das empregadas domésticas, à época o mais baixo do mercado.

Imagine então o cenário que a crise do novo coronavírus trouxe, em que os serviços domésticos não remunerados se multiplicaram nos lares brasileiros. O que seria do PIB do segundo trimestre de 2020 se aplicada a tese de Hildete? O que seria do PIB do segundo trimestre de 2020 se os serviços domésticos não remunerados também fossem reservados aos homens? Ainda assim desconsiderados?

Mas não é apenas a economia em si que perde quando esse tipo de trabalho é invisibilizado. Na verdade, ele não ser reconhecido pelos institutos de pesquisa é um dos sintomas do mundo desigual em que vivemos, no qual mulheres ainda são vistas como menores em relação aos homens, além de subservientes a eles. A autora italiana Silvia Federici foi das precursoras a chamar atenção para o tema. É dela a frase mais famosa sobre a economia do cuidado: “Isso que chamam de amor nós chamamos de trabalho não pago”.

Nos anos 1970, em Nova York, Silvia teve participação central no movimento Wages for Housework (salários para o trabalho doméstico), originado na Itália e levado para os Estados Unidos. A reivindicação das mulheres do grupo consistia em primeiro apontar o dedo para o problema, como quem diz "estamos cientes dele, inclusive cientes de que é uma carga nociva para nossos futuros", depois lutar por políticas públicas que ajudassem a mitigar os danos causados por ele. Você deve se perguntar, e quanto aos homens, principais beneficiados do cuidado como de competência exclusivamente feminina? De acordo com Silvia, restaria a eles serem sensíveis à reivindicação das mulheres, ouvindo-as e se responsabilizando pela parte que lhes cabe. Revisão de privilégios também entra na receita.

Naquela época, a italiana desenvolveu sua interpretação do papel crucial, porém invisível, que a economia do cuidado exerce no capitalismo. Para a autora, o trabalho doméstico é parte essencial da reprodução do trabalhador, que é a mão de obra e, portanto, principal ativo de lucros no sistema. A italiana acredita que a desvalorização do trabalho doméstico e a da posição da mulher na sociedade são partes do mesmo fenômeno. E rebate críticas que diriam que o pagamento por ele apenas o incorporaria à lógica capitalista, argumentando que esse trabalho nunca esteve fora do escopo do sistema. Seria, pelo contrário, central para seu funcionamento.

Uma das criadoras da economia do cuidado (nos Estados Unidos difundida como care economy) como uma vertente da economia feminista – antidescriminatória, que por sua vez combate as questões de exploração –, Silvia ainda diz que a mulher foi responsabilizada por cuidar do corpo e da mente dos trabalhadores após o expediente e prepará-los para o retorno ao trabalho dia após dia. Fazendo isso, a vida, os planos e os desejos dela ficavam, e parece que ainda ficam, para quando dá. No caso de Tereza Joda durante a pandemia, para depois das 22h.

Outra corrente feminista prefere o termo “ordinário” a “cuidado”, pelo caráter cotidiano das atividades domésticas. “Cuidado tem carga de sagrado e isso complica as coisas, parecendo que é da natureza das mulheres o feitio dessas tarefas”, argumenta Nicole Aun, do movimento Atreva-se.

Segundo a economista brasileira Luiza Nassif Pires, pesquisadora no Levy Economics Institute of Bard College, um think tank voltado a políticas econômicas com sede em Nova York, um mundo melhor depende da aplicação dos valores da economia do cuidado na vida das sociedades. A começar pela ação dos governos. Luiza afirma que uma das fontes do problema são as políticas de austeridade que reduzem o papel do Estado e sua capacidade de suprir certas necessidades da população. Em outras palavras, se há escola pública para todos, saúde pública acessível e de qualidade, creches e programas assistencialistas, licenças maternidade e paternidade iguais, o trabalho e os cuidados dentro de casa diminuem. "Quanto maior é o peso que recai sobre a família e o privado, mais desigual fica a divisão das tarefas em um lar. Na esmagadora maioria dos casos, tudo que o Estado não atende sobra como responsabilidade das mulheres. E isso reflete na menor participação delas no mercado de trabalho, ou no menor salário delas." Por isso, políticas que equalizem os salários entre os gêneros também passam pelas propostas das economistas feministas. E não falamos apenas de equidade salarial nos mesmos postos de trabalho, mas entre diferentes ocupações. Trabalhos associados a mulheres não podem ser menos valorizados, elas defendem. “O que define o salário não é a produtividade do trabalhador, mas a força de um grupo de trabalhadores, quanto aquele grupo consegue barganhar. Isso rebaixa salários de profissões ditas femininas, a enfermagem, por exemplo, se comparada à medicina”, pontua a economista.

Luiza afirma que há três teorias que tentam explicar a desigualdade de gênero na divisão do trabalho doméstico. Uma delas fala do poder de barganha. A mulher, tem menos poder de barganha dentro de casa, portanto perde nessa luta, e acaba fazendo mais o trabalho. Outra teoria seria a do custo de oportunidade. A mulher tem salários menores e fica em casa cuidado de tudo para o homem, com salário maior, construir carreira. A terceira, muito endossada por Silvia Federici, seria a de que se trata simplesmente de ideologia de gênero. "A nossa sociedade é patriarcal e nela as mulheres naturalmente cuidam do trabalho doméstico porque ele serve ao fluxo da vida dos homens."

Sobre o papel do Estado, Luiza aponta políticas públicas "sensíveis a gênero", como o Bolsa Família, criado em 2004, e o auxílio emergencial duplo para mães chefes de família durante a pandemia, como exemplos a serem seguidos. Sobre o Bolsa Família, dados de 2016 mostram que 92% dos titulares das famílias beneficiadas pelo programa eram mulheres. "A ajuda, em vez de simples assistencialismo, pode ser entendida como uma recompensa às mulheres que trabalham não apenas fora de casa, mas ainda cuidando de suas famílias", diz a economista.

Em outubro deste ano, o governo da Argentina enviou ao Congresso um orçamento com perspectiva de gênero. A ideia é de Mercedes D’Alessandro, diretora nacional de Economia e Igualdade de Gênero do Ministério da Economia. O projeto traz 55 medidas, com recursos que correspondem a 15% do orçamento total e a 3,4% do PIB. Uma das medidas, já em curso, é uma aposentadoria para donas de casa. Outra concede um salário mínimo por seis meses para vítimas de violência doméstica poderem sair da casa que compartilham com o abusador.

Professora titular do departamento de Administração Geral e Recursos Humanos na Fundação Getulio Vargas (FGV), Maria José Tonelli não vê o Estado como o único responsável por implementar a economia do cuidado. “A sociedade está organizada em diversas camadas e mudanças de mentalidades podem ser incentivadas pelo Estado, mas é necessário o envolvimento de toda a sociedade. E aí entram as empresas, com a aplicação de políticas próprias – equiparação salarial entre gêneros, licenças-maternidade estendidas e creches nos postos de trabalho, por exemplo – e a mídia, com o questionamentos de práticas arraigadas.”

Luana Passos, doutora em economia pela UFF, acredita que só vamos desafogar as mulheres “oferecendo políticas de conciliação entre trabalho e família”. Ela explica: “Uma das restrições à maior inserção laboral das mulheres, em especial as de baixa renda, é a necessidade de articular atividades reprodutivas com as produtivas. No Brasil, a oferta de creches públicas, em especial de tempo integral, fica aquém da demanda, o que faz com que mães se ausentem do mercado para exercer cuidados”. Luana cita o Sistema Nacional Integrado de Cuidados do Uruguai como um modelo, “guardadas as devidas proporções de tamanho de população”, para o Brasil. O sistema a que ela  se refere foi implantado em 2015 no Uruguai e, entre suas ofertas, subsidia o serviço de cuidadores, total ou parcialmente, para idosos e mães solos que comprovem rendas baixas. Casas de cuidados gratuitas e administradas pelo Estado também foram criadas. “Seria factível fazer o mesmo por aqui, já que temos a expertise do SUS [Sistema Único de Saúde] e do SUAS [Sistema Único de Assistência Social].”

A economista ainda lembra da oferta de serviços públicos de cuidados aos idosos, “incipiente em um cenário de envelhecimento populacional”. “Esse sistema único de cuidados seria vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos”, defende Luana, que não tem dúvidas de que “um amanhã melhor demanda que a nossa socialização não seja machista, que não naturalizemos a violência contra as mulheres, os menores salários e a discriminação no trabalho, e que o cuidado não seja visto como de competência exclusivamente feminina”.