Lúcia Monteiro

Por Lúcia Monteiro

Crítica e pesquisadora de cinema


Sandra de Castro Buffington divulga na Rio 2C seu método de imersão — Foto: Divulgação
Sandra de Castro Buffington divulga na Rio 2C seu método de imersão — Foto: Divulgação

Sandra de Castro Buffington é dessas raras pessoas que sabem trafegar entre mundos, sem, no entanto, manter vidas paralelas. É cineasta, palestrante e empreendedora, tudo ao mesmo tempo agora. Nascida nos Estados Unidos, é filha de uma brasileira que cantava em 13 idiomas. Não preciso dizer que ela passa de um idioma a outro com a mesma tranquilidade com que transita entre a área da saúde pública (sua formação original) e o audiovisual (onde atua hoje em dia). Convidada para participar esta edição da Rio2C, ela apresenta no Brasil o trabalho que vem desenvolvendo nos últimos anos junto a roteiristas de cinema e televisão dos Estados Unidos, de facilitação de narrativas de impacto social.

O método criado por Sandra Buffington consiste em reunir grupos de roteiristas e levá-los para uma imersão – que pode ser em uma favela, um centro de acolhimento para vítimas de violência sexual, um presídio, uma área sujeita a alagamentos. "Não se trata de ensinar aos roteiristas o que eles devem escrever, mas de inspirar novos tipos de roteiro", diz ela. De suas oficinas, já saíram passagens de séries de sucesso. Alguns anos atrás, o episódio de Grey's Anatomy em que Jo lembra de um trauma do passado foi escrito a partir de uma experiência conduzida por Sandra Buffington, chamada de "rape tour" (se chama Silent All These Years, de 2019, e está disponível no Star +).

+ Vanda Witoto sobre eventos climáticos extremos: ‘Resultado de escolhas políticas'

Em uma parceria com a Associação de Escritores dos Estados Unidos, ela oferece uma conversa inicial junto a uma centena de escritores e roteiristas, sobre temas como violência de gênero, migração, encarceramento, mudança climática. Duas semanas mais tarde, vinte pessoas são selecionadas para participar de uma imersão em um ambiente diretamente ligado ao tema escolhido. No caso do centro de acolhimento a vítimas de estupro, por exemplo, os participantes conversaram com médicas, enfermeiras e profissionais da área jurídica. Mais importante: observaram o funcionamento do local, de modo a entender como as coisas funcionam.

A imersão gerou cinco programas de TV, entre os quais estava o episódio de Grey's Anatomy. "A cada etapa do exame clínico, os médicos da equipe de Meredith pedem a permissão da paciente. Quem escreveu o episódio entendeu que é preciso que o paciente tenha agência sobre seu corpo", disse-me ela. Nas 48 horas que se seguiram à estreia nos Estados Unidos, houve um aumento de 43% nos registros de estupro no país. Ao longo dos anos, Sandra Buffington aprendeu que a boa ficção é capaz de provocar identificação dos espectadores com os personagens. E, em situações assim, a capacidade de aprendizado aumenta muito.

Perpetuado pela indústria do cinema ao longo de décadas, o "olhar masculino" ou "male gaze" tem sido estudado na universidade e criticado. Buffington não titubeia em dizer que esse a maneira objetificante como o cinema filmou as mulheres contribuiu para a cultura do estupro. Deem uma olhada no trailer do documentário Brainwashed: Sex-Camera-Power, de Nina Menkes.

A diretora reuniu trechos de quase duzentos filmes em que o corpo das mulheres é fragmentado, sensualizado, submetido. "Reparem, o corpo do homem costuma aparecer em três dimensões, já o da mulher quase sempre está em duas dimensões, como se flutuasse", diz Buffington. O que é interessante com ela é que não apenas ela denuncia a violência que o audiovisual tantas vezes reproduz, mas propõe uma fórmula para virar o jogo. "Quem cria narrativas tem capacidade de mudar o mundo", afirma. Depois da palestra deste ano, a ideia de Sandra Buffington é voltar ao Brasil em 2025 para oferecer um de seus "tours". Alguém duvida de que vai ser um sucesso?

Mais recente Próxima As estrelas do Festival de Cannes