Brasileiras que estocam comida para o fim do mundo: por que essa prática viralizou?

Por aqui, os estoques emergenciais passaram a tomar contas do YouTube e do TikTok com mais força, ao menos, desde 2023, segundo pesquisas da reportagem. A maioria desses vídeos são produzidos por mulheres. Os homens lideram ao ensinar outros aspectos do sobrevivencialismo, como caça e acampamento.

As preparadoras mostram não apenas o progresso e a organização de seus estoques, mas fazem alertas, trocam dicas ou fazem tutoriais de como começar a montar o próprio armazenamento, com valores que começam a partir de R$ 50.

A reportagem teve acesso a dezenas de vídeos das preparadoras e tentou contato com todas as criadoras dos conteúdos que pesquisou. No entanto, só teve retorno de duas delas.

Os motivos detectados por Marie Claire para o fim do mundo se misturam entre preparativos para tempos de crises e de incertezas profissionais e econômicas. Mas alguns estão vinculados a teorias conspiratórias disseminadas em determinadas bolhas da internet. Elas estão ligadas, sobretudo, a desdobramentos políticos e razões religiosas.

O avanço desenfreado das mudanças climáticas e seus possíveis impactos no cotidiano também despertam muitas pessoas à necessidade de começarem a preparar estoques de emergência.

As flutuações de preço de alimentos nos primeiros meses de 2024 é uma consequência das mudanças climáticas (segundo análise do do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo do IBGE), mas também da inflação (aponta levantamento do Observatório PUC-Campinas). Essa instabilidade é um dos motivos que levam as preparadoras a estocarem para poder acumular comida o suficiente para se precaver em meses em que itens básicos estiverem muito encarecidos.

Além disso, muitas delas veem o estoque como um investimento a longo prazo, porque acreditam que, desta maneira, podem economizar a renda do mês e gastar o dinheiro com outras necessidades, ou mesmo poupar a quantia.

"Sempre aproveito promoções e faço reposições. Não gosto de deixar acabar. Além disso, compensa mais fazer essa compra de alimentos básicos do que uma reserva de emergência em dinheiro, que geralmente se gasta com outras coisas que não são tão essenciais”, explicou a agente de saúde Rubiana Paiva, 35 anos, em entrevista a Marie Claire.

Levantamento de fevereiro deste ano do IBGE apontou para uma queda no índice de desemprego em 26 das 27 unidades federativas brasileiras: foi de 9,6% em 2022 para 7,8% em 2023. Mesmo com o declínio, a crise econômica, a precarização dos postos de trabalho e os impactos de desocupação do mercado da pandemia acentuaram o receio de demissões. Junto dele, também é citado o medo de autônomos e microempresários de adoecimento e impossibilidade de trabalhar.

Para Marie Claire, a autônoma Agnes Antunes, 28, apontou que esse foi o motivo pelo qual ela começou a estocagem. “Minha decisão foi baseada em segurança familiar. Moro em Florianópolis e, aqui, vi uma grande oscilação nos preços. Antes enchia o carrinho com R$ 1.300. Hoje a realidade é outra”, disse à reportagem.

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O fantasma dos impactos sanitários da covid-19 preocupa as preparadoras e a quem assiste os vídeos sobre a possibilidade de uma nova pandemia, de outros vírus respiratórios, acontecerem no futuro. Desta forma, elas esperam que os estoques possam servir de auxílio para reduzir as saídas de casa e conseguir ficar em isolamento em uma nova crise de saúde.

Em 2023, ao decretar o fim da pandemia do novo coronavírus, o diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS) Tedros Adhanom afirmou que haveria a possibilidade de novas pandemias acontecerem, e que países devem se manter alertas e com medidas de contenção, caso sejam necessárias. O aviso foi feito em maio, na assembleia anual de saúde da OMS.

No Brasil, as alterações no clima acentuaram as ocorrências de eventos extremos – como ondas de calor e chuvas fortes, por exemplo –, tornando-as mais frequentes. No entanto, a preocupação das brasileiras está ligada à possibilidade de explosões solares acontecerem em 2024.

Existem pesquisas e membros da comunidade científica que afirmam sobre a possibilidade de acontecer um pico na atividade solar neste ano. Isso poderia resultar em explosões e tempestades solares potentes que poderiam alcançar satélites próximos à Terra. Isso impactaria no abastecimento de energia elétrica, no funcionamento de GPS e radares de avaliação e causaria um colapso na internet. Essa possibilidade é chamada de “apagão” pelas preparadoras e sobrevivencialistas.

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Desde 2022, o mundo acompanha um conflito entre Rússia e Ucrânia. Em outubro de 2023, foi a vez do conflito entre Israel e Hamas. Ambos estão em curso até hoje, mas a situação entre Israel x Hamas é mais citada – não só pela questão econômica, mas há quem entenda a situação como um sinal de “fim dos tempos”. Há receio de aumento de preço de alimentos e de gasolina que podem acabar encarecendo as despesas mensais.

No Brasil, os vídeos das preparadoras chegaram com mais força ao longo do primeiro ano do terceiro mandato do presidente Lula. A polarização política do país deu tom alarmista a opositores de Lula e apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, indicando que a eleição do petista indicaria um momento de crise e destruição para o país.

O tweet de um perfil no X (antigo Twitter), feito em dezembro de 2022 (um mês depois do fim do segundo turno da eleição presidencial), dizia que a estocagem de água, alimentos e reserva de emergência seriam necessários "nessa época nebulosa".

A narrativa foi alimentada pelo ex-presidente: "Se Lula administrar o Brasil como fez antigamente, o Brasil quebra. Um país riquíssimo. Fará com que seu povo viva em situação de miséria", afirmou Bolsonaro em sabatina da TV Record, em outubro de 2022, quando tentava a reeleição.

Em um dos vídeos de pessoas que incentivam o estoque emergencial de alimentos, preparados pelo canal Projeto Provérbio 31, do YouTube, remete a necessidade de estocar alimentos, exemplificando com a "crise alimentar na Venezuela", causada por "mau governo, corrupção, falta de dinheiro" e um aumento de juros e inflação.

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Há uma parte das preparadoras que estão se planejando por motivos religiosos: segundo ela, as mudanças climáticas e guerras podem indicar para um sinal de apocalipse. Na bíblia, o livro do Apocalipse refere-se à uma revelação ao apóstolo João que indica o fim dos tempos e a volta de Jesus Cristo. Nestes casos, esse tipo de significado é dito tanto nos vídeos quanto na sessão de comentários destes vídeos.

No TikTok, a usuária Daiane Marques (@daianemarques2perfil) alerta seus seguidores desde dezembro de 2023 sobre um possível "aviso de Deus para guardar alimentos", em que cita versículos bíblicos, diz ter sonhos premonitórios e alerta para o surgimento de novas pandemias e falta de alimentos.

Em um de seus vídeos, ela cita o provérbio bíblia 21:20, que diz “Na casa do sábio há comida e azeite armazenados, mas o tolo devora tudo o que pode.”

"Aqueles que estiverem nas grandes cidades, guardem a maior quantidade de comida possível a partir de hoje. Uma guerra muito grande, da qual nenhuma nação já viu, vai começar. Virá uma fome muito grande sobre as nações, que não terão acesso a comidas", afirma Daiane enquanto mostra uma foto de alimentos estocados em garrafa PET.

"Esse tipo de vídeo não é para gerar transtorno, mas deve ter um fundo de verdade porque são vários os pastores que estão tendo essa profecia. Crente não pode ficar desesperado, angustiado. Tem que se preparar. Deus manda você se preparar para o dia mau", afirmou também a dona do canal Projeto Provérbio 31.