A Barbie e a pretíndia 

Longa dirigido por Greta Gerwig tem protagonistas loiríssimos e alguma diversidade no elenco, mas fica preso a clichês e sem espaço para personagens como a indígena trans do documentário Uyra, rodado na Amazônia

Por Lucia Monteiro


Quando estava grávida, escolhi com minha mãe um tecido azul escuro de estrelinhas para a colcha e a cortina do quarto de minha filha. Enquanto pude, evitei o cor-de-rosa, não dei bonecas, regulei nos acessórios. Já não decido tudo e hoje ela tem uma coleção de bolsinhas, tiaras, bonecas mil.

Numa tarde chuvosa vejo seu rosto inconfundível na TV: a Barbie chegou à minha casa. É um anacronismo o sucesso da boneca curvilínea em 2023, quando temos mais consciência dos terríveis efeitos do racismo, do machismo e dos preconceitos na educação das crianças? 

Cena do filme Barbie, com Margot Robbie e Ryan Gosling no elenco — Foto: Cortesia Warner Bros. Picture

Essa pergunta retorna quando fico sabendo que Barbie está entre as mais aguardadas estreias de julho. O longa tem direção de Greta Gerwig. Talvez você se lembre dela estrelando Frances Ha (2012), do qual é corroteirista, filme independente sobre uma bailarina um tanto rebelde. O casal de protagonistas é interpretado por Margot Robbie e Ryan Gosling – sim, eles se chamam Barbie e Ken, assim como os demais personagens do filme.

Esses nomes repetidos geram risos em diálogos insólitos como “O que você está fazendo, Ken?”, “Nada, Ken, e você?”, que parecem ressaltar o aspecto vazio de corpos humanos que emulam seres de plástico.  

A história é conduzida por uma boneca que precisa deixar a Barbielândia por ser imperfeita. Ao aventurar-se no mundo real, descobre que a perfeição vem de dentro. Você esperava mesmo algo mais original? Bem, se os protagonistas são loiríssimos, sarados e aparentemente meio bobos, o elenco não é todo homogêneo, ainda bem: pessoas negras e asiáticas interpretam alguns dos demais papéis (da mesma forma que nas lojas de brinquedos encontram-se hoje Barbies e Kens de cabelos cacheados, pele negra ou traços asiáticos). 

Uyra, longa de estreia de Juliana Cury — Foto: Divulgação
Será que algum dia um filme mainstream como Barbie conseguirá se aproximar de um mundo real como o de Uyra e de problemas como rios sujos, incêndios na floresta, garimpo, violência? "
— Lúcia Monteiro

Escrevo sobre Barbie ao mesmo tempo que assisto a Uyra, a retomada da floresta, longa de estreia da paulistana Juliana Cury, que chega às telas brasileiras depois de fazer o circuito de festivais dos Estados Unidos. O filme conta a história de uma pessoa trans não binária que vive na periferia de Manaus, onde a maior parte da população é, nos termos de Uyra, “pretíndia”. Sua família tem sangue de garimpeiros e de indígenas – com a herança indígena, abafada por gerações, Uyra só se conectou na idade adulta.

Arte-ativista, ela pinta o corpo de verde e entra em igarapés poluídos, lembrando à população que até pouco tempo atrás a água dali podia ser bebida. Será que algum dia um filme mainstream como Barbie conseguirá se aproximar de um mundo real como o de Uyra e de problemas como rios sujos, incêndios na floresta, garimpo, violência? 

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