Lúcia Monteiro

Por Lúcia Monteiro

Crítica, pesquisadora e professora de cinema da Universidade Federal Fluminense

"Quem tem filho sempre dá um jeito de colocar uma reclamação na conversa." A fala dá o tom de O filho dos Outros, que chega às telas neste mês. Interpretada por Virginie Efira, Rachel, a protagonista, continua: “É para equilibrar a alegria de tê-los”. Com essas falas, o filme da realizadora francesa Rebecca Zlotowski deixa claro, já nos primeiros minutos, que seu assunto é a parentalidade. E que, para abordá-lo, adotará um ponto de vista incomum: o de uma mulher sem filhos.

Professora de francês em um colégio, Rachel ouve do ginecologista que seu estoque de óvulos está baixo. Se pretende engravidar, precisa agir rápido. Ela acaba de conhecer Ali (Roschdy Zem), os dois estão apaixonados. Temos uma personagem em busca de algo, mas o verdadeiro motor do filme não será a tentativa de engravidar.

O novo namorado de Rachel tem uma filha, Leila (Callie Ferreira), de 5 anos, e é a investigação sobre esse papel de mãe postiça que move o filme. Numa viagem de trem, uma passageira elogia a beleza da garotinha e, maldosamente, completa: “Impressionante como vocês duas se parecem”. O estrago está feito. Num chilique, a menina exige a mãe. Aqui, agora.

Há limites preestabelecidos para a relação entre madrasta e enteada? Quais são as expectativas de parte a parte? O filme não traz respostas fechadas, mas investiga múltiplas possibilidades de transmissão. Será que, para além do elo sanguíneo entre mãe e filha, há outras formas de filiação que sobrevivem aos anos e às mudanças de estatuto?

O que pode restar da relação entre uma professora e seu aluno depois que um e outro deixam de exercer esses papéis? E entre madrasta e enteada, após a separação do casal? Essas questões são abordadas com inteligência, principalmente através do casting, excelente.

O papel da mãe de Leila foi reservado para Chiara Mastroianni, que carrega nos genes a emblemática memória cinematográfica de seus pais, Catherine Deneuve e Marcello Mastroianni. Michel Zlotowski, que interpreta o pai da protagonista, é o pai da cineasta na vida real. Rachel, aliás, tem muito da própria Rebecca Zlotowski: ambas são judias, têm pouco mais de 40 anos e perderam a mãe na infância. Li que a realizadora escreveu o filme enquanto elaborava o fato de que não seria mãe – até que, às vésperas do início das filmagens, engravidou.

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Para o papel do ginecologista, nenhuma escolha seria melhor do que o premiado documentarista Frederick Wiseman. Em meio a relações familiares e cinematográficas, a realizadora afirma-se como herdeira de uma história do cinema que a ultrapassa. Não por acaso, o filme começa com a exibição, na sala de aula, de um filme estrelado por Anna Karina, eterna musa de Godard.

Depois de vê-lo, fiquei mais consciente das alegrias (e tormentos) de meu papel de professora de universitários, que por definição estão sempre de passagem, assim como da efemeridade da infância de meus filhos, fadados a tornarem-se adultos.

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