• Gabryella Garcia
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Dia Nacional da Visibilidade Trans é um dia para que pessoas trans sejam ouvidas (Foto: Getty Images)

Dia Nacional da Visibilidade Trans é um dia para que pessoas trans sejam ouvidas (Foto: Getty Images)

29 de janeiro é marcado como o Dia Nacional da Visibilidade Trans no Brasil mas, muito além de uma data comemorativa, é também um chamado para a reflexão e principalmente uma homenagem às ancestralidades trans e travestis que lutaram, muitas vezes com a própria vida, para que direitos básicos que garantem a dignidade humana fossem concedidos para essa parcela da população.

Apesar de a data ser celebrada desde 2004, a motivação começou um pouco antes, no ano de 2002. Na ocasião, algumas das principais lideranças do movimento trans como Kátia Tapety, Jovana Baby e Keila Simpson lançaram junto com o departamento de DST e Aids do Ministério da Saúde a campanha 'Travesti e respeito: já está na hora dos dois serem vistos juntos'. A partir de então, houve uma distribuição de cartazes e panfletos informativos sobre essa realidade em diversos pontos de todo o país.

Entretanto, foi no dia 29 de janeiro de 2004, há 18 anos, que 27 pessoas trans ocuparam o Congresso Nacional para dar visibilidade a essa campanha e exigir respeito e dignidade para esses corpos dissidentes. Por ter sido o primeiro grande ato nacional organizado por pessoas trans, a data ficou marcada como o Dia Nacional da Visibilidade Trans.

Desde então, houve diversos avanços na luta por direitos das pessoas trans, apesar de um longo caminho ainda precisar ser trilhado para uma verdadeira vida digna. O direito à retificação de prenome e gênero no registro civil, por exemplo, foi conquistado em 2017 por meio da Lei nº 13.484 após uma longa batalha da ativista Neon Cunha. Ela lutava pela retificação de seus documentos desde 2014, em uma época que pessoas trans obrigatoriamente deveriam apresentar um laudo médico que atestasse que eram de fato transgênero. Depois de três anos de tentativa sem sucesso, Neon entrou com um pedido de morte assistida à OEA (Organização dos Estados Americanos) caso seu gênero e sua identidade não fossem reconhecidos e se tornou a primeira mulher trans a falar no local. Seu pedido foi negado e desde então o processo de retificação de nome e gênero no Brasil dispensam a apresentação de laudos médicos ou comprovação de cirurgia de redesignação sexual.

A criminalização da transfobia aconteceu um pouco depois, em uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) em 13 de junho de 2019 que equiparou a transfobia ao crime de racismo. Deve-se, entretanto, destacar que não é o fato de ser um crime que deve garantir respeito, dignidade e empatia para outro ser humano. Essa questão muito antes de ser tratada no âmbito jurídico, deveria ser tratada no âmbito civilizatório. É importante destacar que pessoas transgênero, assim como pessoas cisgênero, só querem humanização e respeito às suas identidade e pronomes.

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O que é transgênero?

De acordo com a psicóloga especialista em gênero e sexualidade, Paola Ruchinsque, a partir de um viés psicológico, transgênero é a pessoa que não se identifica com o gênero designado ao nascimento, ainda ligado a genitália. "Aí entram algumas relações problemáticas que é definir gênero como sinônimo de sexo biológico", completa.

Ou seja, o gênero trata de elementos sociais que identificam o homem e a mulher dentro de um sistema binário em nossa sociedade. Portanto, se uma pessoa nascer com pênis (sexo masculino) mas se identificar com tudo aquilo que é imposto pela sociedade como feminino, se identificando como uma mulher, essa pessoa é uma mulher trans. Por outro lado, se uma pessoa nascer com vagina (sexo feminino) e realmente se identificar como uma mulher, ela é uma mulher cisgênera. Pessoas transgênero não se identificam com o gênero que lhe foi atribuido no momento do nascimento, enquanto pessoas cisgênero se identificam.

Já a orientação sexual trata da forma como as pessoas se relacionam afetivamente, romanticamente ou sexualmente. Ela nada tem a ver com a identidade de gênero da pessoa. "A orientação é um aspecto do indivíduo, mas não tem nenhum viés de dependência com a identidade de gênero. Ela diz respeito para quem vou direcionar meu desejo e afeto e não tem nada a ver com a forma como me vejo e me coloco no mundo", explica Ruchinsque.

Qual a diferença entre mulher trans e travesti?

O primeiro ponto importante é que ambas as identidades estão dentro do guarda-chuva trans e associadas àquilo que é considerado o espectro feminino dentro de nossa sociedade. Portanto, em ambos os casos, o pronome de tratamento é feminino. Outro elemento de destaque é que travesti é uma identidade latina, onde os estudos de gênero são escassos e, portanto, não há um consenso sequer dentro da própria comunidade sobre a diferença entre as identidades. O que se deve ter em mente é que ambas são identidades femininas e que no caso de surgir alguma dúvida, basta perguntar para a pessoa como ela se identifica para não haver erros.

Em 1992 Kátia Tapety foi a primeira travesti eleita na política brasileira (Foto: Kátia/Divulgação)

Em 1992 Kátia Tapety foi a primeira travesti eleita na política brasileira (Foto: Kátia/Divulgação)

A influenciadora travesti Alina Durso, explicou em suas redes sociais que a identidade de mulheres trans surgiu como uma tentativa de higienizar a identidade travesti. "A palavra travesti é marginalizada e para grande parte das pessoas cisgêneras (as travestis) são marginais que estão nas esquinas enquanto as mulheres trans são as que estão prosperando. A palavra travesti ainda assusta a cisgeneridade", afirma.

Ela também destaca que é necessário quebrar esse imaginário, pois as travestis não são apenas aquelas das esquinas, também são as que estão nas revistas, nas universidades e prosperando em diversos espaços. "Tudo começou com as travestis então encham a boca para falar a palavra travesti."

De maneira simplificada, tanto mulheres trans quanto travestis foram designadas como homens ao nascer por possuírem um pênis e nenhuma das duas se identifica com aquele gênero. As duas identidades também estão alinhadas ao que a sociedade considera como sendo o espectro feminino, a diferença é que a mulher trans, além desse alinhamento realmente se enxerga e se coloca no mundo como uma mulher, enquanto a travesti não necessariamente se coloca como mulher, apesar do alinhamento ao feminino.

Há também mulheres trans que se identificam também como travestis por uma questão política, em uma tentativa quebrar o imaginário da marginalização de travestis e mostrar que podem sim ocupar lugares de destaque, além de ser uma referência à ancestralidade, uma vez que a luta por direitos não apenas das pessoas trans, mas de toda a comunidade LGBTQPIA+, teve as travestis em sua linha de frente.

Não binariedade

A não binariedade é um conjunto de identidades de gênero que não está dentro do parâmetro binário de homem ou mulher em sua totalidade. "Podem existir diversas configurações a partir disso, existem muitas identidades e cada pessoa vai ter uma compreensão de gênero diferente. Basicamente nem homem e nem mulher", explica o rapper do duo Rap Plus Size, Jupitter, que se identifica como uma pessoa não binária.

Juppiter é uma pessoa não binária e defende a linguagem neutra como ferramenta de inclusão (Foto: Arquivo Pessoal)

Jupitter é uma pessoa não binária e defende a linguagem neutra como ferramenta de inclusão (Foto: Arquivo Pessoal)

Jupitter também acredita que as pessoas não binárias ainda sofrem muito com a invalidação de sua identidade de gênero, até mesmo dentro da própria comunidade trans. Ele afirma que nossa sociedade tem uma mentalidade tão reduzida entre homem e mulher que as pessoas acabam não compreendendo. "Isso nada mais é do que transfobia, porque a partir do momento que uma pessoa não compreende o gênero da outra, ela está reduzindo aquilo que ela mesma esperava que fosse", diz.

"Sou bissexual e quando comecei alinhar minha expressão ao masculino ainda estava perdido, mas quando me entendi como gênero fluído e podia me expressar dessa maneira e ser livre para ser quem eu sou, comecei a entender como sou. Foi um encontro comigo mesmo. Falam que pessoas não binárias não existem, mas a gente existe sim"

Jupitter

O rapper também explica que dentro do espectro de gênero não binário podem também existir alinhamentos com o gênero masculino ou feminino, mas isso não significa que a pessoa não binária se veja como homem ou como mulher. "Eu sou uma pessoa transmasculina mas eu não sou um homem trans. Dentro da minha transmasculinidade está muito da minha expressão de gênero (associado a vestimentas e jeito de se portar), mas o meu gênero é fluído e a forma como me compreendo é fluído. Mas também existem pessoas sem nenhum alinhamento que são as pessoas agênero, mas é muito particular de cada um".

"Há muito preconceito e invalidação porque a não binariedade está fora do espectro binário normativo da sociedade, mas nós não precisamos escolher um lado. A não binariedade é justamente uma não coisa, qualquer coisa que não seja uma imposição de masculino e feminino. Uma pessoa não binária pode ser muito mais fluída e a questão de gênero é muito ampla, não se restringe apenas aquilo que as pessoas esperam", finaliza.

Linguagem neutra

A linguagem, seja neutra ou não, é um importante mecanismo de afirmação de identidade e autoconfiança e, dentro desse contexto, a linguagem neutra surge para garantir a inclusão. E, ao contrário do que algumas pessoas pensam, a linguagem neutra não representa qualquer ameaça à língua portuguesa. Uma tese apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) ao STF em novembro de 2021, inclusive, afirma que a possibilidade de inclusão da linguagem neutra no português não pode ser ignorada.

Além de a linguagem neutra ser uma forma de demonstrar respeito a pessoas que não se identificam com o gênero masculino ou feminino, Jupitter também destaca a importância de utilizar a linguagem neutra para subverter a língua como uma ferramenta decolonial.

"A língua portuguesa não foi implantada através de livros que ensinaram gentilmente. Foi implementada pela violência e colonização dos povos originários que foram escravizados e catequizados. A língua foi construída através da violência. O latim manteve o neutro através do masculino porque os poderes regem e têm o controle da língua e do ensino, e são feitas por homens, cisgêneros e brancos. Então essa tradução para o neutro masculino atende interesses de controle e poder, e quando subvertemos a norma da demarcação de gênero estamos subvertendo essa comunicação e incluindo pessoas não binárias".

Nesse contexto de inclusão e subversão, a linguagem neutra substitui os marcadores de gênero (“a” e “o”) por “u” e no caso de outras palavras, “a” e “o” podem ser trocados por “e”, como em “senhore”, “filhe”, “amigue” e “todes”.

"Muitas pessoas usam pronomes neutros e a gente precisa olhar para essas resistências e respeitar os pronomes. Não é só sobre validar a existência, mas também garantir qualidade de vida sem violentar. Quando a gente fala em incluir a linguagem neutra, a gente tá falando de incluir todas as existências e garantir acessibilidade para que essas existências possam ocupar diversos espaços", finaliza Jupitter.