Comportamento
Por , redação Marie Claire — São Paulo (SP)


Fodabilidade: quem tem o direito de escolher com quem transar? E como a política influencia essa escolha? — Foto: João Brito
Fodabilidade: quem tem o direito de escolher com quem transar? E como a política influencia essa escolha? — Foto: João Brito

Foi na sexta série que Luara* se apaixonou pela primeira vez. Após ela e o menino por quem seu coração batia mais forte serem definidos como dupla por uma professora, ficaram amigos, e não demorou até o laço passar para trocas de olhares e mãos dadas. “Eu gosto de você”, ela ouviu, aos 11 anos, da boca de seu primeiro amor. “Mas é uma pena que você seja gorda.”

Com o garoto, viveu um ciclo ferrenho de gaslighting: se a sós ele correspondia ao desejo de Luara, publicamente, a fazia vê-lo beijar outras meninas de corpos magérrimos, longos cabelos lisos e loiros ala líderes de torcida de As Apimentadas. O que Luara viveu na tenra idade não só transmitiu uma mensagem equivocada sobre o que seria experimentar amor e desejo, como a fez pensar que esse era o tipo de afeto que ela, uma pessoa gorda, deveria receber.

Ao longo dos anos, novas possibilidades afetivo-sexuais se desenharam para ela – das mais orgásticas às mais broxantes. Entre uma e outra transa, dormiu com caras que queriam transar no sigilo, os que a viam como meio de realizar seus fetiches. Como quando namorou, por seis anos, um homem que sequer a apresentou a amigos e familiares – em troca de "sexo deplorável e amor em migalhas". O que a fez ficar por tanto tempo? “Algo em mim sabia que eu queria mais, mas não sabia se eu merecia mais.”

Existe um pacto social – para uns velados, para outros às claras – que dita quais são os corpos dignos e os não dignos de serem vistos como desejáveis. Bem, você pode dizer que cada pessoa tem sua preferência sexual, que cada um de nós, ao longo da vida, vai construindo qual é seu "tipo". Claro, nossas vivências influenciam nessa escolha. Mas a construção desse tal tipo não está isenta das estruturas de poder, ideologias e cultura em que estamos imersas. O nosso desejo sexual, gostemos ou não, é político.

É o que defende a filósofa e professora na Universidade de Oxford Amia Srinivasan. Em seu provocativo ensaio O direito ao sexo, publicado no Brasil em 2021 na coletânea O direito ao sexo: Feminismo no século vinte e um (ed. Todavia, 320 págs. R$ 84,90), de 2021, Srinivasan se debruça sobre as profundas ambivalências que permeiam o que é o desejo sexual, de um ponto de vista feminista e interseccional.

As mulheres talvez nunca tenham tido tanta liberdade sexual quanto hoje, é verdade. Mas, para Srinivasan, a questão está além, por exemplo, da ideia do mero consentimento. A filósofa entende que nossa disponibilidade para o sexo está mais ligada a quem nos escolhe para se relacionar do que quem nós escolhemos. Em sua análise, o que determina se um corpo vale a pena ser desejado é sua “fodabilidade”.

O que Srinivasan quer dizer não é que a escolha sobre quem você dá like no app de relacionamento ou quem aborda no bar para um sexo casual deve ser baseada no tal do “politicamente correto”. As perguntas aqui são outras, e as respostas múltiplas, distantes do binarismo entre certo e errado. Afinal, o que condiciona nosso desejo? E ainda: como ele seria se conseguíssemos enxergá-lo para além de marcadores sociais que moldam nossa existência em sociedade?

Ter fodabilidade ≠ ser fodível

Fodabilidade, nas palavras da filósofa feminista Amia Srinivasan, diz respeito “não sobre quais corpos são vistos como sexualmente disponíveis (nesse sentido, mulheres negras, trans e com deficiência seriam muito fodíveis), mas sobre quais conferem status a quem faz sexo com eles” — Foto: João Brito
Fodabilidade, nas palavras da filósofa feminista Amia Srinivasan, diz respeito “não sobre quais corpos são vistos como sexualmente disponíveis (nesse sentido, mulheres negras, trans e com deficiência seriam muito fodíveis), mas sobre quais conferem status a quem faz sexo com eles” — Foto: João Brito

Fodabilidade, Srinivasan cunha, é um termo que diz respeito “não sobre quais corpos são vistos como sexualmente disponíveis (nesse sentido, mulheres negras, trans e com deficiência seriam muito fodíveis), mas sobre quais conferem status a quem faz sexo com eles”.

Pense, por exemplo, em Kate Middleton, a mulher escolhida para ocupar a vaga de mulher de William, o Príncipe de Gales e futuro rei da Inglaterra. Além de cumprir com os requisitos do padrão de beleza, veio de uma família milionária, estudou em instituições de elite, sempre foi aluna exemplar e teve a possibilidade de viajar pelo mundo. Mais do que meras características físicas, a reputação, a condição financeira e os acessos que Middleton teve, definitivamente, influenciaram o Príncipe a elegê-la. Ela teria, portanto, status o suficiente para fazer com que ele – e a Coroa britânica – a identificasse como desejável.

Em uma realidade mais palpável para nós, meros plebeus, a fodabilidade também pode ser ilustrada pela maneira como comunidades masculinistas (como incels e red pills) atribuem notas de 0 a 10 para quantificar o quão “fodível” é o corpo de uma mulher. Uma que esteja dentro dos padrões – branca, magra, cisgênero, sem deficiência e favorecida financeiramente – tem atributos que facilitam que seja categorizada como um 10/10. Para um corpo que fuja desses padrões, dificilmente a nota seria a mesma.

Em linhas gerais, há dois grupos de pessoas quando se trata de desejo: as que são favorecidas e as que são preteridas, de acordo com o que ditam as estruturas patriarcais, racistas, capacitistas, homotransfóbicas… a lista é enorme. É o que diz a antropóloga, pesquisadora e roteirista Paola Lins, que chegou a resenhar o livro no artigo O desejo pode escolher por si mesmo?, publicado em 2023. "Existe uma formatação do nosso desejo, que será despertado de acordo com símbolos de poder e status específicos criados no ambiente cultural. Nossas preferências sexuais vão muito além da mera subjetividade."

No Brasil, esses símbolos que codificam quem é digno do desejo sexual têm forte influência do colonialismo, que colocou homens, brancos e cisgênero como os corpos legítimos, desumanizando todo o resto – inclusive para o desejo. Essa é a leitura que faz a linguista-semioticista, ativista e professora Erika Matheus, que coordena a área de Gênero e Sexualidade em Relações Étnico-Raciais da Rede Nacional de Mulheres Negras no Combate à Violência e integra o Fórum Nacional de Travestis e Transsexuais Negras e Negros (Fonatrans). "Temos um território com histórico de sequestro de pessoas negras e escravização, de exploração sexual e estupro de aborígenes da época e a perseguição por parte da inquisição contra Xica Manicongo, documentada a primeira travesti em território brasileiro."

Essa cartilha colonial (vigente até hoje) é, por exemplo, a que permite que Fernanda*, uma mulher parda e de descendência indígena, seja fetichizada. “Vou te colonizar” e “anda para mim que nem índia [sic], pelada” foram só algumas das frases que já ouviu. Mas, o fato de ser “desejada”, mesmo que violentamente, não a salva de ser escanteada quando homens decidem preteri-la para assumir relacionamentos com mulheres brancas. "Meu grupo de amigas não tem tantas pessoas negras, e, nos rolês, só chegam nas brancas. Isso impacta minha autoestima", ela desabafa. “Quando saio, é difícil de acreditar que sou bonita.”

Quando Srinivasan afirma que “mulheres negras, trans e com deficiência seriam muito fodíveis”, expõe esse paradoxo. O que a filósofa quer dizer é que são “fodíveis” corpos que, à luz do dia, são atravessados por violências racistas, capacitistas e transfóbicas, além de considerados inumanos e indesejáveis. Mas, no off, são corpos sexualmente desejados pela ótica do fetiche, da violência ou da possibilidade de dominação.

Um bom ilustrativo disto é a forma como o Brasil é, há 15 anos, o país que mais mata pessoas trans no mundo (segundo a organização Transgender Europe), sendo que ao mesmo tempo é o que mais consome pornografia protagonizada por pessoas trans. Um relatório mundial divulgado pelo site PornHub em dezembro passado mostra ainda um aumento de 75% nas buscas gerais da categoria transgender e afins. “O pornô diz a verdade sobre os nossos desejos”, nos lembra a escritora francesa Virginie Despentes, no livro Teoria King Kong (N-1 Edições, 128 págs., R$ 59,43).

Mas não se deixe enganar: o fato de este corpos serem altamente desejáveis não quer dizer que tenham acesso pleno ao sexo; tampouco que a qualidade desse sexo é satisfatória. "As mulheres negras, por exemplo, podem ser altamente fodíveis, mas, quando o assunto é afeto, são negligenciadas. Ter muito sexo é diferente de poder gozar e, de fato, ter uma conexão com o outro", pensa Paola Lins.

Em seus perfis em aplicativos de relacionamentos, a criadora de conteúdo Bruna Gago percebe que é minimamente correspondida. Em aplicativos de sexo, o marasmo é trocado por uma avalanche de comentários que fetichizam seu corpo.

Mulher trans, pansexual e com deficiências invisíveis múltiplas – autismo, gagueira, ansiedade e Transtorno do Processamento Sensorial (TPS) –, ela percebe que a performance sexual, sobretudo de homens cisgênero, é mecânica, quando não é violenta e dominadora. “Somos lidas como prostitutas, objetos sexuais de satisfação majoritariamente para o homem cis. Por isso, acham que podem fazer o que quiserem comigo.”

Transformação do desejo

Ao falar de fodabilidade, filósofa quer que as pessoas sejam mais imaginativas e possam romper as barreiras que cercam seus desejos — Foto: João Brito
Ao falar de fodabilidade, filósofa quer que as pessoas sejam mais imaginativas e possam romper as barreiras que cercam seus desejos — Foto: João Brito

Voltemos à Amia Srinivasan. Quando O direito ao sexo foi publicado, a filósofa feminista frisou que “todos têm o direito de querer o que quiserem", mesmo que "as preferências sexuais nunca sejam apenas pessoais”. No entanto, houve quem entendeu o texto como uma forma de moralização do desejo ou de ditar novas regras sobre por quem devemos sentir tesão. Ela só não frisa que um direito ao sexo não existe – afinal, ninguém é obrigado a transar com ninguém, nem quer “uma foda por compaixão, certamente não de um racista ou transfóbico” –, mas espera tecer caminhos para que possamos compreender quais são os ruídos simbólicos que, por vezes, nos afastam de novas possibilidades do desejo.

“Não estou tentando sugerir um projeto em que cada indivíduo pense se seus desejos estão de acordo com seus compromissos políticos”, afirmou Srinivasan em 2021, em entrevista a The Paris Review. “O que proponho é algo que as pessoas queer vêm propondo há muito tempo, que é pensar de forma mais imaginativa sobre quais podem realmente ser seus desejos.”

De fato, essa proposta não só é necessária como não nasceu hoje. Entre as décadas de 1960 e 1970, feministas norte-americanas da segunda onda olhavam para o desejo sexual como uma das questões chaves para a emancipação das mulheres; enquanto buscavam maneiras outras de se relacionarem sexual e afetivamente dentro de um sistema patriarcal, calcado na dominação dos homens sobre mulheres submissas.

Houve uma continuidade destas indagações nos anos 1980, com uma participação mais ativa do movimento queer. Foi nesta década que a antropóloga feminista Gayle Rubin – aliás, a primeira pensadora a usar o termo “gênero” como fazemos hoje – publicou Pensando em sexo, um de seus mais cultuados ensaios. Três décadas antes de Srinivasan falar em fodabilidade, Rubin buscava caminhos para a criação de uma teoria radical do sexo: uma capaz de refletir a vida erótica de maneira politizada e de identificar e denunciar injustiças e opressões sexuais.

O que condiciona o nosso desejo, portanto, vai além do mero mecanismo (“aparentemente inofensivo”, como diz Srinivasan) da preferência sexual, e pode, sim, internalizar e reproduzir uma série de violências – inclusive para quem está no topo dessa pirâmide. "As mulheres loiras, magras e peitudas também são desumanizadas e objetificadas; mesmo que tenham vantagens e privilégios", lembra Paola Lins.

Mas, em meio a tantas perguntas difíceis de serem respondidas e de tanto remexer no que imaginávamos ser incondicionado, a filósofa traz uma boa notícia: nossas preferências sexuais “podem mudar e, de fato, mudam”. Não só isso, mas devem mudar. O filósofo Paul B. Preciado equipara a sexualidade como a sala de edição de um filme cinematográfico. Para ele, é preciso redefinir quem tem acesso à sala de montagem. Ou seja, novas pessoas capazes de imaginar novas configurações e ficções para a sexualidade. Mais do que uma nova consciência e conhecimentos, Preciado acredita que o feminismo queer deve levar a uma “modificação do desejo”. “É necessário aprender a desejar liberdade sexual.”

Uma grande chave para esta redefinição pode estar nos esforços coletivos de movimentos sociais. Srinivasan cita como exemplo organizações do movimento negro e gordoativista, que promovem slogans como “negro é lindo” e “gordo é lindo”. “Nem digo que esses slogans sejam empoderamento”, diz Erika Matheus, “mas sim a restituição histórica do nosso autocuidado, autovalor e autoafeto. São caminhos para a construção de novos afetos e desejos.”

Essa revolução do desejo está no aqui e no agora. Aos 34 anos, Lins se descobriu uma mulher bissexual – então, viveu na pele essa transfiguração do que é o desejo sexual e quem é esse outro. Longe de moralização, ela vê as indagações com muita esperança, assim como Srinivasan. “A partir do momento que aprendemos novas formas de erotizar, teremos uma redistribuição dos afetos e dos desejos”, pensa. “Acho que isso já está acontecendo.”

* Os nomes foram trocados a pedido das entrevistadas.

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