Há poucos meses atendi na minha sala, situada no Fórum Criminal da Barra Funda, um desses casos que marcam nossa vida para sempre: Dona Vera chegou no final do dia, acompanhada das netas e outros familiares, em visível estado de esgotamento emocional. Ela tinha prestado depoimento no Plenário do Júri onde ocorria o julgamento da morte de sua filha pelo companheiro, que ateou fogo em seu corpo e a deixou trancada agonizando na presença da filha de 3 anos, esta retirada da casa apenas quando a irmã de 16 chegou ao local. Dona Vera, idosa e sem renda, se viu da noite para o dia entre o luto pela perda da filha e a responsabilidade pelo cuidado integral das netas órfãs.
![Coluna Silvinha abril — Foto: Colagem Pamella Moreno](https://cdn.statically.io/img/s2-marieclaire.glbimg.com/glpLb8pX1Lk3INbmKlpvPk1Tjaw=/0x0:2400x3200/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_51f0194726ca4cae994c33379977582d/internal_photos/bs/2023/N/9/mKzDbbTIyl5z9rTNSpLw/filhos-feminicidio.jpg)
No último dia 9 de março a Câmara dos Deputados aprovou proposta legislativa que garante o pagamento de benefício assistencial equivalente a um salário mínimo para crianças e adolescentes até 18 anos cujas mães foram vítimas de feminicídio. O texto estabelece como condição para o pagamento a renda mensal per capita de até 25% de um salário e veda o acúmulo com benefícios previdenciários. A discussão do tema será agora feita perante o Senado.
A previsão de pagamento de benefício assistencial para vítimas indiretas da violência feminicida – crianças e adolescentes levados à situação de orfandade – já é garantida em leis municipais de algumas cidades como Cuiabá, Recife, Rio de Janeiro e, mais recentemente aprovada, São Paulo, em fase de implementação.
Para sua concessão, considera-se orfandade decorrente de feminicídio a condição social em que a criança ou o adolescente tenha perdido a genitora ou ambos os genitores, biológicos ou por adoção, ou seus representantes legais.
No contexto do atentado contra a vida de mulheres por circunstâncias de gênero, que se caracteriza quando a violência é praticada no âmbito doméstico ou familiar; de menosprezo ou de discriminação, nosso país tem estatísticas alarmantes. O Fórum de Segurança Pública divulgou que, no Brasil, 1.319 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2021, o que significa uma morte a cada sete horas. Só no período entre março de 2020, mês de decreto do início da pandemia de covid-19, e dezembro de 2021, foram totalizados 2.451 feminicídios.
São dados que exigem estratégias de enfrentamento às múltiplas e complexas formas de violência contra as mulheres, que não se delimitam à responsabilização dos autores da violência, mas que compreendam as dimensões da assistência e garantia de direitos, também (e principalmente) de seus filhos e filhas.
De acordo com o pesquisador José Raimundo Carvalho, da Universidade Federal do Ceará, coordenador da Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher desenvolvida em parceria com o Instituto Maria da Penha, estima-se que cada mulher assassinada deixa aproximadamente três órfãos. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública conjectura que esse crime hediondo resulta em aproximadamente 2 mil órfãos no país todos os anos.
Mesmo com esses números, a invisibilidade da orfandade decorrente de feminicídio é histórica no Brasil, agravada pelo atraso no reconhecimento da orfandade em geral como problema de Estado, que não se limita às soluções no âmbito privado, familiar, mas exige a adoção de políticas efetivas para o cumprimento da doutrina de proteção integral de direitos de crianças e adolescentes previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Constituição Federal e nos diplomas internacionais.
O assassinato de uma mulher deixa marcas indeléveis de dor e sofrimento que transcendem a morte em si. É uma fratura incurável na vida de seus familiares, sobretudo seus filhos e filhas, que se deparam com enormes dificuldades para reconstruir suas vidas, lidar com a ausência da mãe, com novas vivências, novas relações e, não raras vezes, novos lares. É um processo de desenraizamento doloroso demais na vida dessas crianças e adolescentes. Inaceitável que sigam desamparadas e sem o apoio integral do Estado, que pressupõe acompanhamento psicológico e jurídico, além de suporte socioassistencial.