'Mesmo mutilada após nascer, ressignifiquei meu corpo e lutei para ser reconhecida como uma pessoa intersexo na minha certidão de nascimento'

A jornalista e fotógrafa Céu Albuquerque nasceu com genitais ambíguas devido a uma hiperplasia adrenal congênita que causou uma alta produção de andrógenos na gestação. Aos três anos, ela passou por uma cirurgia que a mutilou. Durante anos, ela sofreu várias violações até entender que era uma pessoa intersexo. Hoje, ela é uma ativista e ajuda outras pessoas a compreenderem quem são

Por , Céu Albuquerque, em depoimento a Paola Churchill, de redação Marie Claire — São Paulo (SP)


A jornalista e fotográfa Céu Albuquerque nasceu com genitália ambígua Reprodução/Instagram

Meu nome é Céu Ramos de Albuquerque, tenho 33 anos e sou uma jornalista, ativista, engenheira civil e fotógrafa, reconhecida nacional e internacionalmente por meu trabalho. Sou uma mulher intersexo, cisgênera e lésbica, nascida com hiperplasia adrenal congênita (HAC), uma condição genética que afeta as glândulas suprarrenais.

Uma pessoa intersexo é quem nasce com características sexuais, como os genitais, padrões cromossômicos e glândulas, como testículos ou ovários, que não se encaixam nas noções binárias típicas de corpos masculinos ou femininos.

Como nasci com genitais ambíguas por conta a exposição a hormônios andrógenos durante a gestação, meu começo de vida não foi fácil. Minha família veio de uma região muito humilde do Recife, em Pernambuco, e não tinham muitas informações.

Passei seis meses sem registro de nascimento, tempo que meus pais esperaram o exame de cariótipo para determinar meu gênero. O resultado só saiu no dia 10 de outubro de 1991, quando eles foram informados que eu era tinha os cromossomos XX. Como não tinha documentos, eu não tive acesso ao tratamento do Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC), então eu poderia ter morrido. Esse foi só o começo das violações que passei ainda na infância.

Quando tinha três anos, os médicos convenceram meus pais a fazer uma cirurgia para redesignação sexual. Eu passei por uma mutilação genital, porque nasci com um aumento do clitóris. Eles realizaram uma clitoroplastia e amputaram todo o tecido esponjoso e a glande do órgão.

Desde a década de 60 até os dias atuais, a medicina tem sido profundamente binária quando se trata de corpos intersexo. Em vez de buscar a qualidade de vida dos pacientes, tratando apenas suas comorbidades, sem intervenção cirúrgica, médicos colocam como prioridade a adequação a um gênero. Eu sempre acreditei que esse enfoque viola os direitos básicos sobre o corpo das crianças, colocando suas vidas em risco com cirurgias que podem resultar em diversas sequelas, incluindo infecções urinárias recorrentes e dor intensa.

A jornalista e fotográfa Céu Albuquerque nasceus com genitais ambíguas devido à exposição a hormônios andrógenos ainda na fase intrauterina. Quando tinha cerca de 1 ano de idade, passou por uma cirurgia de redesignação sexual, na qual ocorreu uma mutilação genital — Foto: Reprodução/Instagram

Eu tinha a saúde muito debilitada, então precisava sempre ir ao hospital fazer acompanhamento da hiperplasia e o ajuste da dosagem do corticoide que eu tomava. Só quando eu tinha 10 anos descobri que era uma pessoa intersexo. O episódio me marcou: a médica chegou gritando dizendo que eu tinha uma doença incurável e, além de não poder ter filhos, também iria morrer se não tomasse os remédios. Eu tinha 10 anos, era só uma criança.

A jornalista e fotográfa Céu Albuquerque nasceus com genitais ambíguas devido à exposição a hormônios andrógenos ainda na fase intrauterina. Quando tinha cerca de 1 ano de idade, passou por uma cirurgia de redesignação sexual, na qual ocorreu uma mutilação genital — Foto: Reprodução/Instagram

Sofri muita violência médica. Eles me tratavam como se eu fosse um caso, não uma pessoa. Diversas vezes me colocavam em uma sala cheia de residentes e mostravam meu corpo dizendo que era um caso de uma cirurgia bem sucedida. Essa ‘cirurgia bem sucedida’ me trouxe vários problemas físicos, como fibrose (formação de tecido após a cicatrização), estenose (estreitamento dos canais) e perda de sensibilidade. Isso além do sofrimento psicológico, que me gerou ansiedade, depressão e crises de pânico, que começaram desde a infância.

Quando fiquei mais velha na adolescência, eu dei um basta e comecei a ter controle do meu corpo. Comecei a pesquisar mais sobre o intersexo e me tornei uma ativista da causa. Quando tinha 19 anos, mudei meu nome que me deram quando nasci.

Eu odiava aquele nome, não combinava comigo. Até que minha namorada da época disse que meu nome era Céu e comecei a usá-lo como nome artístico social até puder mudar meu nome junto com o termo intersexo. Esse é um ponto complicado: muitas pessoas intersexo sofrem muita dificuldade para enfrentarem um relacionamento.

Muitos têm vergonha do corpo e tem medo da reação das pessoas. Como boa parte são mutilados, o sexo é algo complicado, por conta da vergonha, da dor e também pelos comentários intersexofóbicos que escutamos.

Já ouvi várias vezes da comunidade lésbica comentários dos mais diversos tipos. “Você tem pinto ou vagina?”, “Pode mandar uma foto para ver o que eu tenho que encarar?”, “Você é uma mulher trans?”. A maioria eu ignorava, mas era difícil me abrir.

Realizei sete cirurgias adicionais na tentativa de reverter a mutilação e melhorar minha qualidade de vida, porém nunca tive sucesso. A última cirurgia, realizada em 2023 em São Paulo, proporcionou melhorias estéticas e alguns ganhos. Realizarei outra esse ano.

Ao longo desses anos, ajudo muitas pessoas a descobrirem sua corporalidade intersexo, conscientizando famílias sobre a não necessidade de cirurgias genitais mutiladoras e oferecendo apoio, especialmente para as pessoas intersexo adultas que estão em processo de diagnóstico. Atualmente, meu ativismo é focado em minha página do Instagram, "Intersexualizando", onde abordo temas relacionados às condições intersexo, qualidade de vida, advocacia, entre outros assuntos importantes.

Em julho de 2021, iniciei um processo com a ajuda da Defensoria Pública do Estado de Pernambuco para retificar o campo de nome e sexo em minha Certidão de Nascimento. Solicitei a mudança para o nome Céu, que tenho usado desde os 19 anos, e a alteração do campo de sexo para "Intersexo".

A jornalista e fotográfa Céu Albuquerque nasceus com genitais ambíguas devido à exposição a hormônios andrógenos ainda na fase intrauterina. Quando tinha cerca de 1 ano de idade, passou por uma cirurgia de redesignação sexual, na qual ocorreu uma mutilação genital — Foto: Reprodução/Instagram

Essa ação visou reconhecer a existência de pessoas biologicamente intersexo no sistema brasileiro, permitindo que outras pessoas também busquem reconhecimento por meio de mudanças em suas certidões de nascimento. Após quase três anos de espera e várias etapas, em fevereiro de 2024, o veredito favorável da juíza foi emitido, concluindo o processo de forma favorável. Agora estou no processo de atualização de todos os documentos necessários, o que demanda tempo. É uma reparação pelos que sofri nos primeiros seis meses de vida, quando que eu não documentos, não era ninguém.

A partir desta conquista, espero que agora políticas públicas, como direito aos documentos com informações corretas, orientações de saúde e a garantia de direitos básicos e de qualidade de vida das pessoas intersexo possam ser assegurados. Acredito que este meu passo irá gerar muitas mudanças, já que pela primeira vez o termo "intersexo" se popularizou. Isso causa um efeito: ao quebrar bolhas, a informação chega à mais pessoas, fazendo com que todos rompam com a visão binária e entenderem que além do XX e XY, existem centenas de possibilidades de corporalidades biológicas.

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