Minha admiração por Divina Valéria começou quando a vi pela TV no início dos anos 2000. Cantava com maestria e tinha o glamour cinematográfico de Grace Kelly, mas com uma picardia brasileira. Ela me inspirou não apenas como artista, mas também como mulher, embora isso eu ainda fosse levar algum tempo para entender.
A trajetória de Valéria começou em 1964, interpretando de Emilinha Borba a Edith Piaf, sob a direção de figuras como Augusto César Vanucci, Ronaldo Bôscoli e Miéle. Sua imagem foi eternizada em umapintura de Di Cavalcanti. Brilhou nos palcos de Paris, Uruguai, Argentina e até Japão. Tudo isso sem perder um único Carnaval em Salvador, onde era musa do Bloco Jacu.
Em 2013, tive a oportunidade de assistir à gravação do show Divinas Divas para o documentário dirigido por Leandra Leal, no qual Valéria dividia o palco com as outras Divas, como Rogéria, Jane Di Castro e Eloína dos Leopardos. Cada uma delas possuía um talento, personalidade e trajetória únicos. Valéria, emparticular, destacava-se pelo talento inquestionável no canto, elegância irônica e forte temperamento. Pioneiras, foram conhecidas como transformistas, travestis e trans. Eram exemplos de coragem e resistência às adversidades da ditadura militar e às mudanças sociais. Uma geração que, mesmo sem empunhar bandeiras, tinha suas próprias vi-das como forma de protesto.
Dez anos depois, Carolina Benjamin, da produtora do documentário, me convidou para dirigir um curta-metragem baseado no conto “Nihil Sumus” (“Nada Somos”) de Carmen Dolores. A história da personagem Lili Vignon, uma artista decadente no fim da vida, mas que deseja provar que ainda é uma estrela, me remeteu imediatamente às Divas. Carol compartilhava dessa visão e juntas decidimos que Valéria seria a protagonista.
O roteiro de Nada Somos já estava em andamento, escrito por Anna Clara Peltier, e decidimos focar em falar sobre a vida, não sobre a morte. Era fundamental mostrar essa mulher amando e sendo amada e estabelecer um imaginário positivo de uma travesti com mais de 80 anos em um país onde a expectativa de vida é menor que a metade disso.
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Quando liguei para Valéria para falar sobre o roteiro, ela se empolgou e começou a contar toda a história de Lili, misturando os pronomes “ela” e “eu”. Também queria saber qual música cantaria. Na dúvida, me cantou três ou quatro.Porém, aos 79 anos, suas preocupações também incluíam um pé recém-fraturado – o que limitava seu uso de salto – e a memória para decorar as falas. Prometi que daria um jeito em tudo!
Dias antes do nosso primeiro encontro presencial, me pediu para acompanhá-la em um exame. Lá estava eu, na manhã seguinte, esperando Valéria na porta do Palacete dos Artistas. Conheci a diva sem maquiagem, cabelos presos, usando sandálias. Conversamos muito. Valéria lidava com memórias recentes que às vezes se escondiam dela, mas contava as histórias gloriosas do passado com riqueza de detalhes. Como rimos juntas naquela manhã!
Se eu esperava encontrar amargura pelas dificuldades, fui surpreendida pela serenidade e leveza de Valéria, como alguém grata ao seu passado e, o mais difícil, presente. Senti que havia conquistado sua confiança para rodarmos o filme.
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A preocupação de toda a equipe era com o bem-estar de Valéria. Ela estava se desafiando a uma maratona, presente em todas as cenas. No fim do primeiro dia, na cena em que deveria simular uma queda, Valéria se jogou dramaticamente no chão, assustando a todos. Pedi que continuassem rodando. Então, se levantou orgulhosa, perguntando se tinha ido bem! Ao final das filmagens, me despedi de Valéria, que estava com um sorriso radiante, olhos brilhando. Nos abraçamos emocionadas. Nada Somos é minha homenagem e agradecimento pelos 80 anos de Valéria e o que ela representa. Hoje, das oito “Divinas Divas”, apenas ela e Eloína seguem conosco. Conheçam suas histórias, aplaudam seus trabalhos e contribuam para que todas as travestis e pessoas trans possam viver cada vez mais. Como Valéria, somos todas divinas!
Luh Maza é diretora e roteirista da série Da Ponte Pra Lá (Max, 2024), roteirista das séries Candelária (Netflix, 2024) e Sessão de Terapia (Globoplay/GNT, 2019) — que a tornou a primeira roteirista trans da TV brasileira. Com mais de 20 anos de carreira teatral, foi a primeira diretora trans no Theatro Municipal de São Paulo (Transtopia, 2019) e primeira jurada trans no Prêmio Shell de Teatro (2022).