Cultura

Por Por Natacha Wolinski, de Marie Claire França, Com Tradução de Manuela Azenha, de Marie Claire Brasil

Poucos são os escritores que estão tão atentos ao mundo naquilo que ele oferece de mais cotidiano, o tom monótono do desempregado mendigando no metrô, o cheiro de água sanitária que emana da seção de verduras do supermercado... Annie Ernaux, que ganhou o Prêmio Nobel da Literatura em 2022, baseia-se nos seus escritos na experiência direta de tudo o que a rodeia, mas também, muitas vezes, recorre à fotografia.

Fascinado pela natureza visual das histórias de Ernaux, um jovem curador de exposição, Lou Stoppard, partiu à procura, nas coleções da Casa Europeia da Fotografia (MEP), de imagens que as pudessem ecoar livremente. Ao longo desta exposição, intitulada Exteriores - Annie Ernaux & fotografia, em cartaz de 28 de fevereiro a 28 de maio de 2024 em Paris, fotos de Janine Niepce, William Klein, Dolorès Marat e Daido Moriyama estão reunidos nas paredes ao lado de textos retirados do livro Journal du exterior, escrito entre 1985 e 1992.

Estas fotos funcionam como outras tantas projeções mentais do trabalho de Annie Ernaux, que aqui confidencia a sua relação com a imagem e com o mundo de hoje.

MARIE CLAIRE Quando se vence um Prêmio Nobel de Literatura, você passa a ser comparado a outros Prêmios Nobel. É interessante que, desta vez, seus textos não sejam confrontados com outros textos, mas com fotografias?
ANNIE ERNAUX
É uma abordagem muito interessante, de fato. O texto em que a exposição se baseia é o Journal du exterior, livro em que busquei praticar uma escrita fotográfica da realidade, descrevendo o que se pode sentir diante das coisas comuns da vida, como fazer compras ou pegar o ônibus.

Para mim existe uma ligação entre o Journal du exterior, que é uma soma de anotações do que vejo, do que ouço, e a fotografia, que é uma espécie de instantâneo. No livro A câmara clara, que questiona a natureza da fotografia, Roland Barthes inventa uma palavra, “punctum”. O “punctum” é o detalhe que chama a atenção, o acaso que desperta espanto ou emoção. Alguns dos meus escritos têm muito a ver com “punctum”.

MC Todo o seu trabalho é baseado em uma escrita direta e concisa. Você acha que a descrição clínica da realidade dá acesso a essa realidade?
AE
Não. Ao olhar e descrever o que me rodeia, procuro na realidade o que corresponde a algo profundo dentro de mim. Assim que coloco os pés no mundo exterior, sou uma caixa de ressonância. Sou guiada pela sensação e pelo desejo de preservar uma memória das relações humanas, uma memória da época também. Tenho uma visão sociológica, isso é certo.

MC Às vezes temos a sensação de que você escreve como se desmontasse um mecanismo de relógio. Mas uma vez desmontado, é preciso remontar o mecanismo para que ele funcione, não é?
AE
Acho que a descrição em si mesma é uma forma de julgar, de denunciar. Não estou tentando reconstruir. Não se deve colocar uma ideologia por trás do que faço. O que escrevo obedece quase sempre à memória e à sensação. Não é mais do que isso. Mostro a época, entrego vestígios da vida social através de cenas ou personagens anônimos que capturo com minhas palavras.

MC Todos esses anônimos, você considera que poderiam ser você?
AE
Sim, claro. À minha maneira, carrego a vida dos outros.

MC Numa das suas obras mais famosas, Os Anos, você traça o percurso da sua vida e de parte do século XX por meio da descrição de cerca de vinte fotografias. O livro começa com estas palavras: “Todas as imagens desaparecerão”. É porque sempre acabamos esquecendo que é preciso escrever?
AE
Sim, mas não só. Escrever contra o esquecimento é salvar algo do tempo passado, mas também é entender de onde viemos e o que aconteceu. Em outro de meus livros, O acontecimento, contei sobre meu aborto em 1963, quando era uma jovem estudante. Senti a necessidade de trazer à tona uma memória que é terrível, mas que precisa ser salva para o futuro. Vemos bem, hoje em dia, em que tantos países estão regredindo sobre essa questão, o quanto isso é necessário.

MC O canal Arte projetou no ano passado um filme, "Les Années Super 8", co-dirigido com David Ernaux-Briot, no qual te vemos como uma jovem mãe nos anos 70. As imagens, captadas por seu então marido, transmitem uma impressão de felicidade. Foi o caso?
AE
Não, não foram anos muito felizes.

MC Então são imagens enganosas?
AE
Sim.

MC Você sempre manteve um diário. Encontramos aí o contraponto dessas imagens?
AE
O diário reflete os sentimentos profundos, enquanto o filme é a aparência, o superego. Somente meu diário contém a verdade daqueles anos. Meu diário só será publicado na íntegra depois da minha morte.

MC Por que você mantém um diário há tanto tempo?
AE
É um hábito que começou aos 16 anos. Durante o tempo em que criei meus filhos, este diário foi uma forma de expressar o que eu não conseguia. A partir do momento em que morei sozinha, foi menos um refúgio do que uma outra forma de escrever.

MC Você guardou todos os seus diários desde os 16 anos?
AE
Não exatamente, já que minha mãe destruiu os que eu tinha entre 16 e 22 anos. Quando me casei e saí da casa da família em Yvetot, deixei-os no sótão. Não queria que meu marido os lesse. Quando minha mãe veio morar conosco, para cuidar dos meus filhos enquanto eu me preparava para prestar um concurso, ela me trouxe meus cadernos antigos, minhas fotos de aula, mas não meus diários!

Entendi imediatamente que ela tinha lido e provavelmente queimado meus diários, com medo que meu marido os encontrasse. O pior é que ela provou isso ao me devolver apenas o último, em que conto justamente do encontro com meu marido. Nunca ousei falar com ela sobre isso.

MC O que o diário representa para você? Um equilíbrio mental?
AE
É onde reajo às coisas. Nos últimos anos, como levo uma vida bastante solitária, ele está principalmente relacionado ao que está acontecendo no mundo. Os momentos trágicos que Gaza está passando atualmente me preocupam muito.

Escrever no meu diário me permite clarear meu pensamento. Claro, às vezes penso: para que escrever tudo isso no seu diário se isso não tem impacto algum no presente, no real? Seria melhor escrever um artigo no Le Monde, mas meu diário me permite uma grande liberdade. Não tenho ninguém para poupar no meu diário, que aliás só será publicado integralmente após a minha morte.

MC No seu diário há reflexões sobre o Prêmio Nobel de Literatura recebido no ano passado?
AE
Sim, mas se eu publicasse meu diário hoje, seria um protesto porque não me agradou essa homenagem. Ir a Estocolmo buscar a minha medalha pelas mãos de um soberano, de uma realeza, é algo que para mim não tem nada a ver com a escrita.

MC Você se sentiu desconfortável?
AE
Sim, absolutamente. Enviei minha sósia para Estocolmo! [ri].

MC Você não aprecia o reconhecimento de sua obra?
AE
O que é maravilhoso é a felicidade dos outros. Recebi muitas mensagens de leitores que me disseram que, de certa forma, eram eles, os anônimos, que tinham recebido o Nobel por meio da minha obra. Mensagens como essas justificam uma existência de escrita.

MC Se você odiou a entrega do Prêmio Nobel, ficaria ainda mais horrorizada com a cerimônia de admissão na Academia Francesa...
AE
Sempre disse que nunca iria nessa coisa de velhos conservadores. Eles se opuseram por anos à feminização da ortografia. Eles continuam a denunciar os pronomes não binários. Pessoalmente, eu os uso agora. A gente se acostuma muito bem.

MC Hoje, o feminismo é muito plural. Isso a incomoda?
AE
Não, é saudável. O feminismo, em todas as suas facetas, representa uma força importante, capaz de mudar as coisas, mesmo que nem todas as mulheres enfrentem as mesmas questões. Acho que as mulheres racializadas ou provenientes de meios desfavorecidos (quando não os dois) estão no cruzamento de vários tipos de dificuldades. Não podemos ter todas as mesmas lutas, as mesmas urgências.

MC Recentemente, você assinou petições pela paz em Gaza. Em 2023, você se opôs à reforma das aposentadorias...
AE
Não me considero uma militante, no sentido em que apoio programas, lutas, mas não partidos. Dito isso, quero participar das mudanças na sociedade. A França, como é governada, não está indo na direção certa, seja na educação, nos hospitais, na abolição do imposto sobre a fortuna, na nova lei que limita os direitos dos imigrantes...

Quando ouvi que essa lei injusta foi aprovada, pensei nos franceses que, na maioria, apoiam essa votação. Eles não percebem que na próxima etapa serão eles os afetados pelo fim do auxílio para moradia. Se continuarmos assim, Marine Le Pen estará no poder e as pessoas mais vulneráveis serão prejudicadas, aquelas que já são acusadas de fraudar os benefícios familiares.

MC Você mora em Cergy desde 1975. Por que permaneceu fiel a este lugar?
AE
Fiquei nesta casa após meu divórcio para que meus filhos não mudassem de colégio. Depois, em 1984, recebi o prêmio Renaudot por O lugar e senti a necessidade urgente de me manter afastada do meio literário parisiense e de seu isolamento. Aqui, tenho um belo jardim.

Em Paris, não teria a tranquilidade necessária para escrever e ao mesmo tempo essa proximidade com uma cidade nova, que me permite observar esses microcosmos que são os hipermercados ou os trens suburbanos. A realidade sempre nos escapa, escapa a todos. Mas é preciso tentar mesmo assim nomeá-la.

Esta entrevista foi publicada originalmente na revista Marie Claire França número 858, de março de 2024.

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