Michelli Provensi

Por Michelli Provensi

Multiartista por vocação, Michelli se divide entre a passarela, cabine de dj e literatura. É autora dos livros Preciso Rodar o Mundo e Marinheira de Açude.

“A cidade estimula, põe a gente a andar, a se mover, a pensar, a querer, a se envolver. A cidade é a própria vida.”

Terminei o livro “Flâneuse - Mulheres que caminham em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres”, de Laure Elkin. Aproveitando o silêncio das ruas vazias da cidade de São Paulo, resolvi flanar com minha cachorra pelo bairro de Pinheiros.

No livro, a escritora americana diz que, ao longo da história, o flanar, esse tipo de observar urbano, tem sido entendido como algo exclusivamente masculino, mesmo que ao longo dos tempos sempre houvesse uma flâneuse pela rua.

As calçadas se desenham irregulares. Há de todo tipo. A 30 passos de casa encontro o que sobrou do piso paulistano: padrões em ziguezague desenhados em 1966 pela arquiteta Mirthes dos Santos Pinto, morta em 2020, que chegou a pleitear direitos autorais pelo design, mas nunca ganhou um centavo por ele.

Atravesso a rua Teodoro Sampaio e tento cortar caminho pelo jardim de um prédio todo espelhado. Sou abordada por um segurança mal-humorado que decreta: o Atrium Jardins não permite a circulação de animais. Mudo minha direção, cruzo então a Arthur de Azevedo, as caçambas carregadas de sobras de concreto formam uma fila imaginária de carros estacionados.

Do outro lado da rua Malú faz xixi nas raízes de um pé de alecrim de campina, árvore de crescimento lento, que provavelmente acompanhou as transformações da rua Cristiano Viana. Protegida por uma rede de construção, a árvore se encontra à frente do terreno que foi um dia nossa sorveteria favorita, uma charmosa casinha que vendia apenas quatro sabores produzidos artesanalmente no local.

É sábado, os homens trabalham como se fosse qualquer dia da semana. Entro no perímetro da obra e, entre os escombros, pergunto o nome da grande máquina azul que eles operam. Bate-Estaca, responde um deles, sorrindo. Faz sentido, esse é o som que mais ouvimos no bairro nos últimos tempos.

Chamo de Pinheiros, como muitos, mas sei que a parte que habito é Cerqueira César. Aliás, lendo o "Diário Confessional" do modernista Oswald de Andrade, descubro que essas terras da Vila Cerqueira César pertenciam ao seu pai, herdeiro de uma família abastada do sul de Minas e que foram alienadas no que Oswald considerava uma fracassada venda no ano de 1911.

No decorrer do diário, reconheço nomes de famílias do ramo imobiliário que vejo hoje nas recorrentes placas de venda e locação, para não mencionar os tapumes. Elas chegam, derrubam as casinhas, constroem pracinha “pet-friendly”, parquinho para crianças, compartimentos de reciclagem para o lixo e permitem acesso às árvores que se encontravam nos jardins dessas antigas construções.

Os cachorros do bairro se reúnem e brincam juntos, formam-se novas relações, nos esquecemos de quem antes morou ali. Até que as máquinas chegam, derrubam as árvores, e um estande de vendas espalhafatoso surge no lugar. Penso que seria legal a legislação demandar das incorporadoras uma compensação pelo verde que elas derrubam, em outras áreas do bairro.

Enfim, sigo pela João Moura, rua em que o trânsito literalmente gangrena. O adensamento da região relevou a sobrecarga de carros. Dou passagem a um caminhão, em frente à placa da obra que diz: "um co​mplexo multiuso que vai mudar a região​". Já mudou. Numa página do Instagram, alguns moradores comentam se devemos chamar o bairro de Nova Itaim ou Nova Moema. Sugiro: Subida Faria Lima, pois é assim que aos poucos vamos sendo engolidos pela arquitetura dos prédios espelhados mata passarinhos.

Os tapumes trazem mensagens: What 's Next, New, Novo, Innovation. Me pergunto, incomodada, o que de novo e interessante pode vir de tanta redundância? Um prédio em especial era um xodó do bairro: o Edifício Itaoca, aquele rosinha, de arquitetura visivelmente italiana, construído em 1947 com seu charmoso recuo na Francisco Leitão. Lá, em 2001, fiz meu primeiro editorial de moda e foi também onde conheci com quem 20 anos depois me casei. Numa pesquisa rápida de internet dizem que o primeiro proprietário foi o Conde Matarazzo e, mesmo tendo no registro a assinatura de outro arquiteto, desconfiam ser do italiano Marcello Piacentini.

Em "Flâneuse", a autora revela que há uma ala de atendimento psiquiátrico no hospital Saint Anne, para turistas japoneses que ficam catatônicos com a decepção ao descobrir que Paris, na verdade, é suja e barulhenta, pois esperavam que tudo seria croissants e aroma CHANEL N°5. A isso dá-se o nome: síndrome de Paris.

Continuando o passeio com Malú, vejo a construção de um hospital na rua de casa e me pergunto: teremos a ala da síndrome de Pinheiros? Poderia ser apropriado para quem acreditou nos anúncios de que habitaria num bairro fofo, gastronômico, cheio de casinhas e descobriu que seus vizinhos são transeuntes de airbnb.

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