Jurema Werneck

Por Jurema Werneck

Ativista negra, médica pela UFF e doutura em Comunicação e Cultura pela URFJ. Fundou a ONG Criola e é diretora da Anistia Internacional Brasil


Segundo a mitologia grega, Pandora foi a primeira mulher criada por Atena e Hefesto para viver entre os homens. Portadora de graça e inteligência, carregava uma caixa cujo conteúdo desconhecia. O objeto era, na verdade, uma vingança de Zeus contra os humanos, por terem conquistado autonomia. Ao abrir a caixa por desobediência, Pandora deixou escapar guerra, discórdia, inveja e doenças do corpo e da alma. Mas não deixou escapar a esperança.

Jurema novembro — Foto: Colagem: Pamella Moreno
Jurema novembro — Foto: Colagem: Pamella Moreno

Está explícito no mito, ou nas interpretações que circulam sobre ele, a busca por reduzir a mulher a instrumento nas disputas entre homens. Mas há outras possibilidades de interpretação: a busca por autonomia e autodeterminação; o desejo por conhecimento; as desgraças e dores como instabilidades necessárias à dominação patriarcal. A esperança de que Pandora não abriu mão é um recado de que, um dia, o poder muda de mãos e, assim, podemos alcançar plenitude em nossa existência.

Foi com as lentes de Pandora que enxerguei outubro de 2022. Foram 31 dias de agitação e sobressaltos, potencializados pelo processo eleitoral, que expuseram males e desgraças espalhados pela renitência do poder racista patriarcal em morrer e permitir o crescimento de uma outra sociedade – que já existe mas que precisa se expandir para tornar este país em lugar seguro para mulheres trans e cis, travestis, gays, quem nasce e reside no Norte e Nordeste do país, pobres e faveladas, indígenas, e para a maioria negra. Para que sonham com um futuro melhor, e que fazem da esperança o impulso que alimenta nossas utopias.

Independentemente das nossas escolhas eleitorais, sabemos que há um longo caminho pela frente. Vimos o ovo da serpente eclodir e o veneno se espalhar pelos poros da sociedade. Mas temos sido também o antídoto, a resistência necessária às desgraças que o poder patriarcal moribundo, mas ainda vivo, espalhou no terreno fértil de violências e violações, sob liderança de meliantes disfarçados de políticos que se amparam no que de pior têm: visões de um mundo dominado por homens brancos das classes altas que se consideram escolhidos por um deus particular e igualmente restrito, violento, armado e impiedoso.

Um outubro azedo. Naqueles dias, os sentimentos de revolta e de busca por justiça pelo assassinato de Mahsa Amini, a jovem de 22 anos morta em uma prisão no Irã por homens poderosos que acharam inadequada a forma como usava o véu religioso, foram respondidos com mais mortes. Segundo a Anistia Internacional, 24 meninas e meninos com idades entre 11 e 17 anos estão entre essas vítimas.

Em outubro, chuvas de mísseis atravessaram os céus da Ucrânia, atingindo pessoas nas ruas, mercados e casas.

No Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, tentou-se convencer os Estados membros a cumprirem o compromisso assumido na III Conferência Mundial contra o Racismo de 2001, de evitar que a polícia seguisse assassinando pessoas negras. A proposta? Reconhecer a “necessidade de coleta, análise, uso e publicação de dados desagregados por raça ou origem étnica (...) na aplicação da lei e no sistema de justiça criminal como forma de impedir a brutalidade policial”. Os Estados seriam obrigados a reconhecer que pessoas de pele escura e de minorias étnicas são mortas de forma desproporcional pela polícia.

Parece pouco diante de tanta morte, e é. Se esta decisão tivesse sido implementada há 21 anos, os assassinatos de George Floyd, nos Estados Unidos, e de João Pedro Matos Pinto, no Brasil, talvez não tivessem acontecido.

No Brasil, nossos sonhos e projetos de um país mais justo foi desrespeitado por alguns (e algumas) de nossos pares e autoridades. Vimos uma campanha eleitoral com farta disseminação de mentiras, ameaças, violências e mortes. Mas também as imensas filas para o exercício do nosso direito (e dever) de votar.

Brasileiras e brasileiros decidiram enviar uma mensagem pelas urnas eletrônicas. O azedume que inundou meus dias de outubro também me trouxe à memória o texto disseminado por Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio morto em 2015: aquele sobre a utopia que está no horizonte e se afasta a cada passo, a cada avanço que conquistamos. E para que serve? Para caminhar!

É assim que espero atravessar os tempos que virão. Caminhando na direção deste país que precisa vigorar para quem é negra, mulher cis, mulher trans e travesti, gay, lésbica, pobre, quem nasce e vive no Nordeste e no Norte do país, quem sabe que não haverá justiça enquanto se mantém privilégios para poucos. A utopia é o meu horizonte.

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