• Manuela Azenha
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Eram 10 horas da manhã e a deputada federal Taliria Petrone (PSOL-RJ) já tinha recebido a primeira ameaça virtual do dia. “Esse tipo eu não ligo mais, é aos montes”, conta a parlamentar, após mostrar um print da mensagem. “Liberei seus dados para diversos marginais. Já que vc quer liberar o assalto, espero que vc e seus familiares vivam na pele. E se fizer B.O. ou reclamar, aí vamos até seu gabinete”, dizia o texto enviado pelo Instagram, fazendo referência ao posicionamento antipunitivista da deputada.

Lugar de mulher (não) é na política (Foto: Colagem Pamella Moreno)

Lugar de mulher (não) é na política (Foto: Gabriela Pecantet)

Taliria sofre ameaças desde que entrou para a vida pública, em 2016, ao eleger-se vereadora de Niterói, no Rio de Janeiro. Única mulher em exercício na Câmara Municipal da cidade durante os dois primeiros anos de mandato, era também amiga e colega de partido da vereadora Marielle Franco, cujo assassinato em 2018 tornou-se o maior marco de violência política no país. Depois disso, Taliria passou a andar de escolta armada.

Por questões de segurança, a deputada já mudou de casa quatro vezes. Na última e mais grave delas, em 2020, teve de sair do Rio após a Polícia Federal interceptar uma conversa de milicianos que encomendavam a sua execução. “Não tenho a menor dúvida de que é uma violência política que se agrava por eu ser mulher e uma mulher negra. É impossível descolar o debate de violência da questão de gênero e raça”, diz.

A violência política de gênero, definida por ações que excluem ou inibem a participação feminina na esfera pública, é um fenômeno histórico, crônico e que escala conforme as mulheres se propõem a participar do establishment. O esforço em conceituá-la, no entanto, é recente e ainda está em construção.

Por isso mesmo, os dados a respeito são escassos. Na legislação brasileira, por exemplo, apenas em 2021 passou a ser tipificada no Código Eleitoral, por meio da Lei 14.192: “Toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher”.

O primeiro país da América Latina a tratar do assunto foi a Bolívia, ao implementar uma lei pioneira sobre o tema em 2012. O texto categoriza a violência política de gênero e o assédio político contra mulheres e estabelece mecanismos de prevenção e punição.

Lugar de mulher (não) é na política (Foto: Gabriela Pecantet)

A violência contra mulheres na política é uma manifestação no mundo todo (Foto: Gabriela Pecantet)

A Lei Modelo Interamericana, elaborada pela Comissão Interamericana de Mulheres em 2017, define o conceito nas seguintes categorias: violência física, sexual, psicológica, moral, simbólica (a propagação de imagens estereotipadas e preconceituosas contra mulheres) e econômica (recusa em direcionar recursos para candidaturas femininas, por exemplo).

A violência contra mulheres na política é uma manifestação no mundo todo. Um estudo da União Interparlamentar de 2016, feito com 55 parlamentares de 39 países, mostrou que 81,8% das entrevistadas disseram ter passado por violência psicológica; 44,4% sofreram ameaças de morte, estupro, agressão física ou sequestro; 25,5% foram vítimas de agressões físicas no espaço parlamentar e 21,2% sofreram assédio sexual.

Alguns casos tornaram-se emblemáticos. Adesivos para automóveis com a imagem da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) de pernas abertas para serem colados na entrada da bomba de gasolina. Ou, em 2014, quando o então deputado federal e atual presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), afirmou, na Câmara e a jornais, que a deputada Maria do Rosário (PT-RS) não merecia ser estuprada porque a considerava “muito feia”. Na Inglaterra, a deputada Jo Cox foi morta a tiros e facadas em meio à campanha pela saída ou permanência do Reino Unido na União Europeia.

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No Brasil, a violência política cresce de forma geral, assim como a voltada às mulheres. Nas eleições de 2020 foram registrados 263 crimes violentos contra candidatos, versus 46 em 2018 e em 2016, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral. A reportagem solicitou ao TSE dados específicos sobre ataques a mulheres, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.

Lugar de mulher (não) é na política (Foto: Colagem Gabriela Pecantet)

O Brasil é o pior país da América Latina em representação feminina (Foto: Gabriela Pecantet)

A cientista política Débora Thomé, do Laboratório de Gênero e Interseccionalidade da UFF (Universidade Federal Fluminense), acompanhou as eleições de 2020 para o relatório +Representatividade, do Instituto Update. Cerca de 10% das 51 candidatas entrevistadas afirmaram ter sofrido ameaças físicas e/ou assédio sexual.

“Isso tem tirado as mulheres da política. Neste ano, mulheres estão desistindo de se recandidatar por causa da violência, interrompendo suas carreiras na política. E isso inibe principalmente as que estão entrando na vida pública, impede o que seria uma aspiração nascente e retarda um processo que já é muito lento”, explica.

Foi o caso da ex-deputada federal Manuela d’Ávila (PCdoB-RS), que desistiu de concorrer ao Senado. Mesmo fora do páreo, ela recebeu mais um ataque virtual em agosto, no qual o autor ameaçava de morte e estupro a ela, sua mãe e sua filha de 6 anos.

Logo acima de Manuela no ranking, a deputada federal Joice Hasselmann (PSDB-SP) foi a parlamentar mais atacada do país, segundo monitoramento de tuítes feito pela revista Azmina com a Internetlab em 2020. Segundo ela, as agressões vieram como uma avalanche assim que rompeu com o governo Bolsonaro, em 2019.

Além de receber ameaças de morte, Joice era agredida principalmente com comentários gordofóbicos. “Também fizeram montagens sexuais comigo, inclusive com animais. Essas imagens chegaram até ao meu filho, que é menor de idade. Foi uma coisa muito pesada, terrível”, conta. Joice anda com escolta armada desde então, pela polícia legislativa, quando está em Brasília, e por uma equipe de segurança privada nos demais lugares.

Depois da experiência traumática, a parlamentar diz que abriu os olhos para o tema, e o combate à violência política de gênero tornou-se uma de suas principais bandeiras. Em 2020 criou o Movimento Feminino Brasileiro, com cursos gratuitos que preparam mulheres para a atividade política. “Minha missão é tornar o caminho das próximas mulheres mais fácil do que foi o nosso”, afirma.

Banho de sangue

O Brasil é o pior país da América Latina em representação feminina, diz Débora. “Mulheres ocupam apenas 15% da Câmara dos Deputados. Temos mais de 5 mil municípios no país e apenas oito mulheres pretas prefeitas. A violência política afeta todas as mulheres, mas se intensifica quando se trata de mulheres trans, que sofrem em dobro. E mulheres trans negras, mais ainda”, destaca a pesquisadora.

Em um levantamento do Instituto Marielle Franco, feito durante as eleições municipais de 2020, 98,5% das candidatas negras relataram ter sofrido violência política. Em sua grande maioria, ataques virtuais. Das que foram agredidas, apenas 32% fizeram denúncia – e 70% dessas afirmam não ter aumentado a sensação de segurança depois disso.

Além de agressões e ameaças, a violência política de gênero pode se dar de forma institucional, principalmente dentro dos próprios partidos. O subfinanciamento de campanhas de candidatas femininas e a falta de espaço para mulheres em posições de comando são exemplos disso.

Segundo a pesquisadora Marlise Matos, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), também falta aos partidos dar maior suporte para receber e encaminhar as denúncias de violência.

“A gente precisa de uma regulamentação de proteção e responsabilização, inclusive criminal, da violação dos direitos políticos das mulheres. Mas temos que implementá-la dentro das estruturas políticas e institucionais, estabelecer procedimentos para que as mulheres possam saber que, quando acontecer, os partidos vão proteger elas e não exercer mais violência deixando que resolvam sozinhas na justiça comum. E que nos estados, defensorias públicas, Ministério Público geral e eleitoral, polícias civil e militar saibam da existência da legislação e como proceder”, afirma Marlise.

Secretária nacional de Mulheres do PT e candidata a vice-governadora do Amazonas, Anne Moura afirma que as denúncias são acolhidas pela Comissão de Enfrentamento à Violência e encaminhadas para a Comissão de Ética, que decide sobre eventuais punições. “No PT temos a presidenta Gleisi Hoffmann, mas também tem o reflexo do patriarcado. Enfrentamos isso no dia a dia, com debates e conscientização. Ainda é pouco diante de tudo que precisamos enfrentar para combater essa estrutura machista da sociedade”, diz.

O MDB, por sua vez, firmou um acordo com o TSE, a Procuradoria-Geral Eleitoral e o Ministério Público Eleitoral em 2020, assumindo o compromisso de que todos os diretórios do partido tenham no mínimo 30% de mulheres até 2028. A presidenta do MDB Mulher, Katia Lôbo, não soube precisar quantos diretórios já cumpriram a determinação.

Com relação à distribuição de recursos do fundo partidário, Kátia afirma que os critérios são estabelecidos pelo Diretório Nacional, de acordo com os Diretórios Estaduais e em parceria com os Núcleos Femininos. Para acolher e encaminhar as denúncias de violência política de gênero, o MDB criou uma ouvidoria da mulher em parceria com o Instituto Justiça de Saia, fundado pela promotora Gabriela Manssur, que pediu exoneração do Ministério Público de São Paulo neste ano para concorrer à Câmara pelo mesmo partido.

A reportagem também entrou em contato com PSOL, PDT, PL e PSL, mas não obteve resposta.

Em agosto deste ano, foi firmado um acordo inédito entre o TSE e o Ministério Público para ampliar a celeridade na investigação de crimes de violência política de gênero. O termo assinado aponta a necessidade de as duas instituições trabalharem em conjunto para divulgar o novo tipo penal, previsto na Lei 14.192/2021, os caminhos institucionais de denúncia e os ritos a serem percorridos nos órgãos.

O aumento da violência política acompanha o crescimento da participação dos grupos que são mais atacados. Ainda de acordo com levantamento do Instituto Marielle Franco, das 84.418 candidatas negras à vereança no país em 2020, apenas 3.634 acabaram eleitas, o que equivale a 6% nas novas câmaras municipais. Isso representou um aumento de quase 700 cadeiras ocupadas por mulheres negras, que receberam 32% a mais de votos em comparação às eleições municipais de 2016.

"Por ser transexual, a violência é algo rotineiro"

Duda Salabert

Duda Salabert (PDT-MG) acumula ameaças. Primeira vereadora trans de Belo Horizonte, foi eleita em 2020 com o maior número de votos da história da Câmara Municipal da capital mineira. Resolveu se candidatar  a deputada federal nas eleições deste ano para contar com um esquema mais robusto de segurança.

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Uma pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais demonstrou que, das 63 candidatas trans das eleições de 2020 entrevistadas, 91% foram vítimas de discriminação. Das 31 que foram eleitas, 80% disseram não se sentir seguras para exercer o cargo.

Na última semana de julho, Duda recebeu um e-mail com ameaça de morte a ela, à companheira e a sua filha de 3 anos. O texto faz menção ao nazismo, assim como outros três e-mails que recebeu no ano passado, logo após ser eleita, enviados a ela e funcionários da escola onde trabalhava como professora. Os autores prometiam um “banho de sangue” na escola. Duda foi demitida após o episódio.

O e-mail de agora faz referência ao acontecido: “Perder seu emprego foi só o começo. Agora você vai perder a sua vida. De SP para MG é só um passo. Quer ser mártir dos travecos, então beleza, aberração. Posso deixar você mais feio do que já é hoje, apenas preciso de um bastão de aço e um maçarico”, diz um trecho da mensagem.

A vereadora encaminhou o e-mail à Polícia Civil de Minas Gerais e encontrou-se com representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Organização das Nações Unidas (ONU). Desde então, ela e a família passaram a ser escoltadas 24 horas pela guarda municipal e Polícia Militar.

“Por ser transexual, a violência é algo rotineiro. Essa ameaça que recebi, a violência psicológica, é regra, não é exceção. A gente publiciza apenas as que consideramos mais sérias. Sem naturalizar essa violência, mas a gente acaba ficando mais calejada. O problema é quando ela transborda para nossas famílias, que não estão acostumadas com isso”, relata Duda.

"Já tive vontade de desistir da política diversas vezes"

Taliria Petrone

Na época de licença-maternidade, Taliria amamentava a sua bebê, então com 3 meses, no momento em que recebeu a ligação da Polícia Federal que antecedeu sua ida a Brasília. Disseram a ela para não sair de casa e informaram que retomariam a escolta armada no dia seguinte.

“Já tive vontade de desistir da política diversas vezes, e essa foi a mais forte. Mas eu vou embora para onde? Como que eu saio da luta se a luta me constitui? Eu sou mulher, negra, trabalhadora, nesse Brasil socialmente tão desigual. Sou militante antes de ser parlamentar”, afirma com a voz embargada. Taliria voltou ao Rio no início deste ano, mesmo que não recomendado pela equipe de segurança. Até à padaria da esquina, vai de carro blindado e escolta armada.

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Agora grávida de seu segundo filho, fala que a maternidade desperta sentimentos contraditórios. Não planejou nenhuma das duas gestações e diz que não escolheria ser mãe na situação de constante risco em que vive.

“Mas sou uma mulher mais feliz e forte sendo mãe”, comenta. “Ao mesmo tempo que o medo aumenta pelos meus filhos, aumenta a força para a luta. Não tenho o direito de me ausentar na tentativa de construir um Brasil melhor.”