• Manuela Azenha
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Relatos de mulheres coagidas a seguirem os votos dos maridos (Foto: Getty Images)

Relatos de mulheres coagidas a seguirem os votos dos maridos (Foto: Getty Images)

“Ele falou pra minha filha de 3 anos ir comigo na hora de votar e contar pro papai em quem eu tinha votado”. “Meu pai ligou para a minha mãe dizendo: ‘Se o Bolsonaro perder, vou me matar e a culpa é de vocês’”. “Meu marido sequer me perguntou em quem vou votar, acha que ainda existe voto de cabresto”.

As frases acima são de mulheres coagidas por seus companheiros ou outros homens da família a votarem nos candidatos deles nestas eleições presidenciais. Entrevistadas em momentos do dia em que estavam sozinhas, uma delas só conseguiu falar com Marie Claire quando o marido saiu de casa para realizar uma prova de tiro, parte do processo para tirar a licença de CAC (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador). Por segurança, disse que também deletou do celular o nosso histórico de mensagens.

A influência do homem sobre a mulher na hora do voto é um comportamento histórico e longe de ser um fato inédito no Brasil, onde o voto feminino foi conquistado em 1932. Mas o que se observa é que, especialmente a partir de 2018, na primeira eleição de Jair Bolsonaro (PL), essa relação passou a ser motivo de maior contestação e conflito dentro de casa. Se por um lado agravaram-se comportamentos violentos e controladores por parte de alguns homens, por outro, o fortalecimento e autonomia femininas também avançaram neste período. Ambos os movimentos se retroalimentam. É o que defende a antropóloga brasileira Rosana Pinheiro Machado, professora titular da University College London e pesquisadora da adesão ao autoritarismo pelas classes populares no sul global, no European Research Council.

“Por muito tempo, o homem é quem falou de política e a mulher não se interessava pelo assunto. Mas isso mudou e o questionamento gera conflito e reação”, explica. Para a antropóloga, a mudança no padrão histórico de passividade feminina diante do voto se consolida principalmente a partir dos protestos femininos “Ele não”, contra Bolsonaro, nas eleições de 2018.

O fenômeno, segundo Rosana, faz parte de um processo de empoderamento de mulheres da última década, fruto de vários fatores, como o programa Bolsa Família (implementado em 2004), a inclusão social pelo consumo, o acesso às universidades, a PEC das Domésticas (aprovada em 2013) e a chamada Primavera Feminista, movimento que gera mais uma onda para as filhas dessas mulheres que foram empoderadas financeiramente, ocorrido a partir de 2015.

“Como a pauta das mulheres virou mainstream, está na novela da Globo, nas redes sociais, as bem mais velhas começam a entender a importância de falar sobre isso, e a pensar como a vida delas teria sido diferente se tivessem lido sobre essa pauta antes. No ‘Ele Não’ a gente vê mulheres seguindo o voto das filhas. Isso é um abalo enorme na estrutura patriarcal. Diversas pesquisas qualitativas observaram isso pelo Brasil: meninas feministas conversando com suas mães e fazendo alianças com mulheres. Isso é bombástico numa sociedade conservadora em que o homem define o voto da família”, argumenta.

“Tanto em termos morais de família quanto em termos de dinheiro, essa sensação de perda de poder do homem médio brasileiro é o que gera o maior conservadorismo popular e a adesão ao autoritarismo”, defende Rosana.

A professora Deborah Maia é mesária em Osasco, região metropolitana de São Paulo, desde 2014. Pela primeira vez, neste ano, recebeu uma orientação informal de funcionários do TRE-SP (Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo) de permitir apenas a presença de crianças de colo nas urnas. “Não deram maiores explicações, mas depois fez sentido para mim, por conta de tudo que está acontecendo nessa eleição totalmente atípica. Deve ser por causa de violência doméstica. O pai pede para a criança ver se a mãe vai realmente votar no candidato que ele ‘obrigou’”, opina.

Na noite de sexta-feira (28), Deborah recebeu por Whatsapp outro comunicado, enviado por uma colega professora e presidente da seção de Barueri. A mensagem, endereçada aos presidentes de seções, destaca mais uma vez a proibição da entrada de crianças em cabines de votação. Os motivos para a norma são: "1. Evitar que terceiros usem crianças e adolescentes como supostos filhos para vigiar eleitores que vendem votos para burlar o sistema de sigilo do voto; 2. Evitar o retardamento da votação; 3. Evitar possíveis danos à urna eletrônica ou organização da cabine.", diz a nota.

Presidente da seção eleitoral em que trabalha, S* contou que, no primeiro turno, um marido entrou na cabine para ver o voto da mulher. “Falei para ele que enquanto não saísse dali, a esposa não votaria. Virei para a fila que se formava e disse: ‘a culpa é desse senhor’. E ainda falei pra ele: ‘Vou ter que chamar a polícia mesmo?’. Só assim ele saiu e reforcei a ela: ‘O voto é secreto, vote em quem você quiser mesmo que tenha que mentir para o seu marido depois. Me esforcei para não dizer: ‘divórcio, minha fia!’.”

A legislação eleitoral não traz regra específica sobre o voto acompanhado de crianças, mas autoriza a presença de acompanhantes na cabine somente quando imprescindível para que a votação ocorra, de forma a zelar pelo sigilo do voto. Segundo a assessoria de imprensa do Tribunal Superior Eleitoral, quem faz essa avaliação é o presidente da seção.

A influenciadora digital Polly Oliveira, que declarou voto no ex-presidente Lula (PT) nestas eleições, colocou em seu perfil do Instagram uma enquete perguntando se alguma seguidora já havia sido vítima de violência doméstica por causa de política ou se conhecia alguma mulher nessa situação. Após 24 horas,  recebeu mais de dez histórias.

“Não regularizou o título porque o marido dela decidiu que não queria votar. Uma mulher adulta pedindo autorização.”

“Aconteceu comigo mesma, levei um tapa na cara porque votei no Lula.”

“Meu pai já ameaçou quebrar minha mãe a pau se ela não votasse no Lula anos atrás.”

“A tia de uma amiga estava com os pais e o marido. Disse que votaria em Lula e o marido deu uma gravata nela no meio do bar.”

“Minha mãe sempre foi obrigada a votar no Lula/PT por imposição do meu pai.”

Esses são trechos de histórias enviados a Polly, também fundadora de um instituto que leva seu nome e arrecada doações para ajudar mulheres em situação de vulnerabilidade social.

“O conflito aparece forte em época de eleição, mas principalmente nesta, em que a polarização é também uma polarização de gênero. Por mais que muitas mulheres votem em Bolsonaro, a rejeição feminina a ele é um fenômeno na sociedade brasileira, e isso abala a autoridade masculina sobre a qual a nossa sociedade é estruturada”, argumenta Rosana.

Abaixo, alguns dos relatos ouvidos pela reportagem. Os nomes e algumas cidades onde as mulheres vivem foram ocultados a pedido delas.

T*,  36 anos, professora e doutoranda em Educação. Mora no interior de Mato Grosso do Sul

Sempre votei nos candidatos que meu marido e minha família votavam, venho de uma família evangélica. Em 2018, estava cursando o 1º ano do  mestrado. Não discutimos sobre partidos na universidade, mas as leituras e discussões em sala e fora dela me atravessaram. 2018 foi o meu primeiro voto consciente, no qual pensei e refleti sobre as minorias, os mais vulneráveis, em mim enquanto mulher, em minha filha e tantas outras questões.

Em casa não falávamos sobre candidatos, mas questões sociais sempre estavam presentes. Ao me posicionar sobre aborto, por exemplo, lembro de meu esposo dizendo que eu deveria guardar minha opinião para mim. Que eu não falasse em casa e nem com ninguém.

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Em um dia perto das eleições de 2018, recebemos primos meus em casa.
Começamos a falar sobre racismo e cotas raciais, meu esposo e eles se posicionaram contra as cotas, e argumentei a favor. A discussão passou a ser apenas com meu primo. Ele falava mais alto do que eu, mas eu não parava de falar e argumentar. Foi então que meu esposo disse que não adiantava falar comigo, “que precisava de 10 homens para me calar”. Falou que eu só poderia ser comunista e feminista. Que a universidade tinha feito lavagem cerebral em mim.

Quando chegou mais perto das eleições, meu esposo me perguntou em quem eu iria votar. Falei que não poderia votar em Bolsonaro, pois era um machista, misógino. Lembrei de uma fala de Bolsonaro falando de uma menina de 15 anos grávida do terceiro filho, diminuindo a menina em situação vulnerável. Falei que tinha náuseas ao ouvi-lo.

Meu esposo me pediu pelo amor de Deus que votasse no Bolsonaro. Falou que tinha náuseas de pensar que a filha dele poderia ter ideologia de gênero na escola. Tentei argumentar, mas ele só me pedia pelo amor de Deus. No outro dia, falou que eu estava me comportando feito Manuela D'Ávila. Disse que eu tinha que pensar no trabalho dele, ele é MEI e trabalha com terraplanagem. Que se o PT ganhasse ficaríamos na miséria. Olhava para mim e falava: "pensa na nossa filha".

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No dia da eleição, falou pra minha filha de 3 anos ir comigo na hora de votar e contar para o papai se eu tinha votado 17. Falava brincando, claro, mas fiquei com medo. Saí da urna e falei que votei 17. Achei que era a melhor forma de ficar em paz em casa. Sem constrangimento.

Sempre que estamos falando sobre alguma questão, como povos indígenas, ou vacinas, ele diz que a faculdade fez uma lavagem cerebral em mim. Ele não queria que minha filha tomasse a vacina da covid-19, mas eu defendi que tomaria, sim. E tomou.

Não posso falar por mim, pensar e refletir, pesquisar, questionar e tomar minhas decisões. Sempre desvaloriza o que eu penso e fala que implantaram uma ideologia em mim. Não reconhece que sua esposa fez faculdade, mestrado, está no doutorado e que a educação liberta.

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Um mês atrás, fiz críticas ao corte de verbas da universidade e a situação da educação pública no país. Falei que minha mãe e eu não conseguimos engolir a situação do desmatamento e vulnerabilidade dos povos indígenas. Aí ele perguntou se eu votaria no Lula. Falei que sim e a conversa parou aí.

Esse ano ele saiu cedo para votar. Foi sozinho e mal falou comigo. Passou o dia calado. Na hora da apuração, assistiu pelo celular, calado. Preferi acompanhar também pelo celular para evitar que ele achasse que eu estava, de alguma forma, superior a ele de acompanhar pela televisão. Quando Bolsonaro estava na frente, ele pegou a bandeira do Brasil e saiu de casa. Voltou depois do resultado, quieto. Não conversamos mais sobre o assunto.

No domingo vou votar e irei para casa da minha mãe em outra cidade. Já falei com ele que, por ser próximo ao feriado, quero ficar com a minha mãe para comprar umas coisas. Mas vou porque me preocupo. Não se o candidato dele ganhar, mas se perder. Pode ter bebida e ele se alterar. Além disso, ele adquiriu armas há pouco tempo. Ele trabalha em fazenda, os colegas caçavam javalis. Um dia ele chegou com uma espingarda.

Ele nunca me agrediu fisicamente. Sempre vivemos bem, foi nas eleições de 2018 que começamos a discordar. Antes disso, muitas das ideias dele eram minhas também, eu não questionava nada no mundo. Só seguia o fluxo.

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Ele já foi violento com palavras, muitas vezes por ciúmes. Chegou a dizer que eu tinha outro, que minhas roupas não são de mãe. Este ano teve uma vez que chegou em casa alterado, imagino que tenha bebido. Fiquei quieta e fui para o quarto da minha filha, trancamos a porta. Quando ele entrou no banho, aproveitei para guardar facas grandes no guarda-roupa da minha filha. Fiquei com medo.

No dia seguinte, falei que era a última vez que ele fazia isso, por mim e por minha filha. Não viveria esta situação nunca mais.

Não sei o que vou fazer depois das eleições, se continuarei com meu marido. Às vezes me sinto insegura, mas não é sempre assim. E me apego no "não é sempre assim".

Este ano resolvi declarar meu voto porque sou mulher, professora, mãe de uma menina. Preciso falar que sou contra as atitudes de Bolsonaro, que ele não me representa. Quero que meu esposo saiba, que minha família saiba e meus amigos também.

D*, 53 anos, contadora e estudante de Direito. Vive no interior de São Paulo

Gostaria em primeiro lugar de ressaltar que essa não é uma situação pontual, é cultural. Está ligado ao machismo. Sendo assim, os homens acreditam que podem, pelo temor, exigir o que quiserem de suas mucamas.

Para não criar uma situação desagradável, pois dependo de meu marido financeiramente, faço de conta que está tudo certo. Trabalho no escritório dele, na área de contabilidade. O pensamento é livre, pode-se aprisionar o corpo, mas não o pensamento e a alma.

Meu marido tem certeza que vou votar no Bolsonaro. Sequer perguntou minha opinião. Pensa que ainda existe o voto cabresto, que eu sigo e não questiono. Imagina! Logo eu, com 53 anos, de uma família de mulheres fortes e independentes.

Escondi dele que ia votar 13 porque ele fala demais. Olha para mim e fala do Bolsonaro. Meu marido já era assim antes, mas agora está se armando. Hoje foi fazer a prova de tiro. Tentei orientar, mas nessa hora a tendência é acompanhar quem está na mesma sintonia. Ele está acompanhando o cunhado, que é um grosso, sem educação.

Sinto medo, porque ele é muito grosso quando quer. Mas a violência é psicológica, não física.

Essa história das armas me deixou tão nervosa que fiquei doente. Ele parece um menino birrento, que bate o pé, então não adianta falar nada. Acabei somatizando e tive faringite. Tomei oito injeções de antibiótico.

Agora voltei a estudar e estou no primeiro ano da faculdade de Direito, para me emancipar e não depender mais do meu marido.

F*, 33 anos, empresária e vive na cidade de São Paulo

Não moro mais com meus pais. Todos os dias minha mãe me liga para contar mais uma novidade. Não é uma novidade corriqueira. Ela me liga para dizer que mais um dia meu pai a pressionou para votar no Bolsonaro.

Minha mãe já nem quer mais votar, perdeu todo o interesse na democracia de tanta pressão que sofre diariamente. Meu pai passa os dias trabalhando e vendo lives/podcasts do presidente e de todos do seu partido. Ele não usa fones propositalmente, deixa o som ecoar pela casa. Entre digitação e vozes vindas das lives, meu pai insiste em dizer que isso é o melhor ao Brasil.

Minha mãe é uma mulher de 60 anos, pós-graduada e cheia de vida. Porém, esse brilho dela desapareceu faz alguns meses mediantes a ameaças constantes. “Se você não votar no Bolsonaro, o Lula vai tirar todos os nossos bens e você não vai ter mais teto”, grita ele.

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E a última da vez é: “Se você não votar no Bolsonaro, eu vou embora desta casa”.

Ela responde muitas das vezes, mas pede encarecidamente que eu e meu irmão não nos posicionemos ou falemos sobre política na frente dele.

Porém, na última segunda, meu irmão fez um post no Instagram contra o Bolsonaro. Meu pai se irritou e ligou para a minha mãe dizendo: “Se o Bolsonaro perder, eu vou me matar e a culpa é de vocês”.

Ameaças atrás de ameaças. Sinto total desespero. Minha mãe chora todos os dias. As famílias estão sofrendo pelo fanatismo. Sentimos que ele passou por uma lavagem cerebral e não tenho ideia de como isso pode acabar.

*Os nomes foram protegidos a pedido das entrevistadas