• por Manuela Azenha
  • Em colaboração para Marie Claire
Atualizado em
Mulheres protestam na Avenida Paulista, em São Paulo,  em novembro de 2017 (Foto: Cris Faga/NurPhoto via Getty Images)

Mulheres protestam na Avenida Paulista, em São Paulo, em novembro de 2017 (Foto: Cris Faga/NurPhoto via Getty Images)

Um marco no combate à violência contra a mulher no Brasil, a Lei Maria da Penha (11.340/2006) completa 15 anos neste agosto. Ainda que seu texto seja reconhecido mundo afora, sua aplicação é alvo de críticas. Criada para ter efeito educativo e transformador na sociedade, a lei vai sendo modelada conforme o governo em questão. Os gastos públicos das administrações, juntamente com os números de denúncias, também refletem a forma como o Estado encara a violência de gênero no Brasil.

Só em 2020, 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Apesar da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, afirmar que o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) "é o mais cor de rosa que já se viu na história", o orçamento dedicado à proteção da mulher está cada vez mais enxuto.

A fala da ministra aconteceu na cerimônia de sanção da lei que inclui no Código Penal o crime de violência psicológica contra a mulher, na última semana de julho, na qual o presidente da República não se pronunciou. No evento, Damares também disse que a "ideologia de gênero" fica em xeque ao defender que homens e mulheres sejam iguais: "Deus fez os homens biologicamente mais fortes. (...) Se o menino acha que menina é igual, ela vai apanhar igual. Deus os fez mais fortes para nos proteger, mulheres".

A Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, durante o evento de inauguração da Casa da Mulher Brasileira em São Paulo, em novembro de 2019 (Foto: Fabio Vieira / Getty Images)

A Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, durante o evento de inauguração da Casa da Mulher Brasileira em São Paulo, em novembro de 2019 (Foto: Fabio Vieira / Getty Images)

Especialistas do Consórcio Lei Maria da Penha, grupo que participou da elaboração da lei e que desde então fiscaliza a sua implementação, denunciam o esvaziamento do que o texto propõe. Os principais fatores para isso seriam sobretudo o contínuo corte de gastos do poder público, mas também a aprovação de projetos de lei de recrudescimento penal e, a partir do governo de Jair Bolsonaro, a promoção de uma cruzada antifeminista sob a gestão de Damares.

"O que vemos é um desmonte quase por completo da Lei Maria da Penha", afirma Fabiana Cristina Severi, professora de Direito Público da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. “Na falta de recurso orçamentário para os serviços de atendimento integral à mulher, justamente o que a lei tem de inovador, o governo responde com populismo penal, falando em castração química e aumento de pena.”

"O que vemos é um desmonte quase por completo da Lei Maria da Penha"

Fabiana Cristina Severi, professora de Direito Público da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP

Houve uma queda brutal do orçamento federal para políticas públicas voltadas às mulheres, em programas de promoção de igualdade e de enfrentamento à violência, de acordo com levantamento feito pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos). De 2015, ano em que a ex-presidenta Dilma Rousseff sofre um impeachment e Michel Temer assume a Presidência, a 2020, no governo de Jair Bolsonaro, o valor gasto pelo poder público nessa área diminuiu sistematicamente – foi de R$ 139,4 milhões a apenas R$ 36,5 milhões executados no ano passado.

Chama atenção o fato de que o menor valor tenha sido em 2020, ano em que declarou-se a pandemia de covid-19, o que agravou ainda mais a condição de vulnerabilidade de mulheres. Justamente por isso, o volume de recursos previsto ao governo federal na Lei Orçamentária Anual (LOA) praticamente dobrou com relação ao ano anterior. Mesmo assim, foram gastos apenas 30% dos recursos disponíveis para políticas voltadas às mulheres, segundo o Inesc.

A LOA é elaborada pelo Executivo e enviada ao Congresso, que aprova o texto com ou sem emendas, para depois ser sancionada pelo presidente, com ou sem vetos. O governo decide o quanto vai de fato executar do total de recursos autorizados na LOA. Nesses gastos também estão incluídos valores empenhados no ano anterior, ou seja, recursos que foram reservados para pagar despesas daquele ano mas não foram executados, e por isso entram como gastos do orçamento seguinte.

"É um absurdo não terem executado bem em 2020. Houve um decreto de calamidade pública e por isso as normas para convênios e licitações foram flexibilizadas justamente para o recurso chegar aos estados e municípios. Se você analisar os gastos do ministério, o recurso de políticas para idosos, por exemplo, foi super bem executado. Então são escolhas políticas mesmo", afirma a antropóloga Carmela Zigoni, assessora política do Inesc e responsável por acompanhar questões orçamentárias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).

Os gastos em políticas para mulheres devem diminuir ainda mais neste ano. Os recursos autorizados para essa área sofreram um corte de 50% com relação a 2020, também de acordo com o Inesc.

O MMFDH contesta esses números e afirma, em resposta por email à reportagem, que a execução dos gastos tem melhorado a cada ano. Segundo a pasta, em 2020 foi executado 98% de um total de mais de R$ 126 milhões, o que corresponde a quase R$ 122 milhões. A diferença entre os números do Ministério e os fornecidos pelo Inesc nesse caso se dá porque o governo considera os valores empenhados como executados. "Trata-se de uma diferença metodológica. O Inesc considera como execução financeira aquilo que foi pago, recurso que efetivamente chegou a um município. O empenho significa o compromisso do governo com aquele gasto, mas não é a materialização da política pública", explica Carmela.

O MMFDH também informou que em 2019 o índice de execução orçamentária chegou a 96% de um total de pouco mais de R$ 30 milhões, ou seja, quase R$ 27 milhões gastos. Dados do Inesc, por outro lado, falam em R$ 67.2 milhões de recursos disponíveis e R$ 47.9 milhões executados. Perguntado sobre a metodologia e, logo, a discrepância entre os números informados pelo Inesc e pelo MMFDH, a pasta não enviou respostas até o fechamento desta reportagem.

Outra divergência que dá contraste aos números é que o Inesc considera os gastos de todas as políticas públicas para mulheres, mesmo que não da alçada da Secretaria Nacional de Política para Mulheres. É o caso do Disque 180, por exemplo, que corresponde ao orçamento da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, e por isso não é computado pelo governo como gastos em políticas para mulheres, mesmo sendo um serviço criado para protegê-las. Ainda conforme o Inesc, dos recursos executados pelo ministério de Damares com políticas de mulheres no ano passado, metade foi destinada a essa ferramenta. Especialistas consultadas por Marie Claire afirmam que falta transparência nos gastos e no funcionamento do Disque 180.

Carmela diz que desde governos anteriores há reclamações sobre o serviço de denúncias, criado em 2005. A ferramenta é uma central de atendimento que recebe denúncias de violações contra as mulheres e as orienta aos serviços especializados da rede de atendimento. "É uma empresa de call center terceirizada que atende as ligações. É uma política que funciona, boa, mas é só uma porta de entrada. Depois você encaminha para onde, se não são executados os gastos para a Casa da Mulher Brasileira [espaço com equipe multidisciplinar que atende mulheres em situações de violência], por exemplo, se você não repassa recursos aos estados e municípios?", questiona a antropóloga. De acordo com levantamento feito por ela, dos R$ 67.2 milhões que foram autorizados para serem gastos na Casa da Mulher Brasileira em 2020, apenas R$ 289 mil foram executados.

Dia Internacional da Mulher em São Paulo, em 8 de março de 2018 (Foto: Cris Faga/NurPhoto via Getty Images)

Dia Internacional da Mulher em São Paulo, em 8 de março de 2018 (Foto: Cris Faga/NurPhoto via Getty Images)

Segundo a advogada Myllena Calasans de Matos, advogada integrante do Cladem-Brasil (Comitê de América Latina e Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres), também houve muitas mudanças nas categorias de violência utilizadas pelo Disque 180, portanto perdeu-se a série histórica utilizada para comparar dados de hoje com os anteriores.
Junto ao corte de verbas, ocorreu um boom de projetos de lei no Congresso Nacional relacionados ao combate à violência contra a mulher, a maior parte com criação de novos tipos penais ou agravamento de penas.

De acordo com uma pesquisa feita por Myllena, em consultoria para o CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), até dezembro de 2019 havia 236 propostas sobre violência doméstica contra mulher em tramitação, 151 delas com alterações ao texto da Lei Maria da Penha e o restante (85) com mudanças indiretas. Essa tendência se manteve pelo menos até o fim de 2020, afirma a advogada. 

A lei sofreu 11 alterações até agora. As mudanças, segundo Myllena, em geral reforçam os mecanismos punitivos e a atuação da área de segurança pública, como por exemplo a Lei 13.641, de 2018, que cria o crime de descumprimento de medidas protetivas, com pena de 3 meses a 2 anos. "A Lei Maria da Penha não precisa ser alterada e sim implementada”, argumenta. “E isso passa por mais centros de atendimento e casas abrigo, mais juizados especializados de violência doméstica e familiar, mais delegacias, e também capacitação adequada dos profissionais nesses locais - que é uma deficiência hoje. Esses serviços todos estão sucateados e o combate à violência contra a mulher foi reduzido apenas ao viés criminal e punitivo.”

"Estudos mostram que muitas mulheres querem sair da situação de violência, mas não desejam que o agressor vá para a cadeia"

Myllena Calasans de Matos, advogada integrante do Cladem-Brasil

A advogada afirma que o recrudescimento penal pode inclusive afastar mulheres de denunciarem agressores: “Estudos mostram que muitas mulheres querem sair da situação de violência, mas não desejam que o agressor vá para a cadeia”.

Myllena chama atenção também para a diminuição da participação popular no acompanhamento da implementação da Lei Maria da Penha, ela mesma fruto de duas décadas de mobilização e debate de organizações feministas. "As alterações à lei foram aprovadas praticamente sem escutar os movimentos que estudam o tema, e sem embasamento em dados", diz. Lembrando que até 2006, o Brasil não tinha nenhuma lei que tratasse especificamente da violência doméstica. Por isso, esses casos eram enquadrados na Lei 9099, a dos Juizados Especiais Cíveis, conhecidos como “pequenas causas”.

Myllena conta que historicamente o processo de proposição de políticas para mulheres contou com a participação da sociedade civil e de organizações feministas. De 2003 a 2016 houve quatro conferências de mulheres, que resultaram em dois planos nacionais. A última conferência terminou no dia em que a ex-presidenta Dilma deixou o Palácio do Planalto. O relatório produzido a partir dele só foi publicado em 2019 e não houve elaboração de um novo plano nacional. A quinta conferência aconteceria em 2020, mas foi cancelada. 

Outro elemento que mudou a elaboração de políticas públicas para mulheres, segundo Fabiana Severi, foi a ascensão de um governo mais conservador, com menor ênfase nas mulheres e na diversidade de suas demandas – e maior foco na família.  A chamada "abordagem familista", de acordo com a pesquisadora, reforça o papel social da mulher como agente do cuidado e do trabalho doméstico.

“Gênero, quando proibido ou demonizado pelo governo, afeta a abordagem dos profissionais, que passam a ter enfoque na recomposição da família. Assistente social sem capacitação em gênero vai orientar a mulher em situação de violência a procurar ajuda para tentar entender o agressor, recompor-se com ele, tentar fazer a mulher entender o que ela fez para que ele a agredisse, que papel de esposa que ela deixou de cumprir para merecer a violência. O mesmo vai acontecer com o agente de saúde, o policial e por aí vai”, explica Fabiana.

“A Lei Maria da Penha, apesar de falar em violência doméstica, refere-se a violência contra mulheres e meninas, um fenômeno que resulta de relações desiguais de gênero. O enfoque da resposta, então, é o fortalecimento dos direitos das mulheres e de sua autonomia. A lei tenta justamente quebrar o paradigma familista de abordagem da violência. E o que Damares e seu ministério fazem é, desde sempre, uma tentativa de retomada da perspectiva familista.  Apesar de ter mulher no nome do ministério, Damares enfatiza o tempo todo conceitos como família, crianças, vulneráveis e não usa o termo 'mulher' ou 'mulheres'”,  continua a advogada.

Myllena diz que a abordagem familista enfraquece o trabalho de prevenção da violência que deveria ocorrer no sistema de educação, por exemplo. “Hoje questiona-se até mesmo o termo violência de gênero, com todas essas discussões dos grupos fundamentalistas, conservadores”. A advogada afirma que essa guinada pode ser percebida na política pública de Damares pelo próprio desenho dos programas, que deixam de ter um enfoque específico na mulher para mirar na família de uma maneira mais ampla, incluindo crianças e idosos, por exemplo.

“Quando a Damares faz essa cruzada contra o gênero, ela faz uma cruzada contra a Lei Maria da Penha, porque é ela que fala da necessidade de se capacitar e formar em gênero. O enfoque é manter a família. E o que é ‘família’ para Damares? Homem, mulher e filhos. Isso passa uma imagem equivocada para as mulheres, que já relutam em procurar ajuda por conta dos preconceitos, da vergonha. Com isso não queremos dizer que a Lei Maria da Penha é contra a família, mas é uma lei de defesa dos direitos das mulheres. A mulher é reconhecida como sujeito de direitos e o direito fundamental é viver uma vida livre de todo tipo de violência”, conclui Fabiana.