• Humberto Tozze
  • Da Redação
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A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado recebeu em março a notícia de que foi laureada pelo Conselho Europeu de Pesquisa (Foto: Divulgação)

A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado recebeu em março a notícia de que foi laureada pelo Conselho Europeu de Pesquisa (Foto: Arquivo pessoal)

Foram 18 meses, tempo de gestação de um elefante, até que a antropóloga brasileira e professora da Universidade de Bath (Reino Unido) Rosana Pinheiro-Machado, 42 anos, recebesse a notícia que viria a ser o maior marco de sua carreira. Foi laureada pela European Research Council (ERC) com um financiamento de €2 milhões (aproximadamente R$ 11 milhões) para desenvolver uma pesquisa que irá investigar a conexão entre trabalho precarizado, a plataformização do trabalho, e a ascensão de regimes autoritários no Sul Global. Nela, irá apurar os efeitos em países emergentes: o próprio Brasil, Índia e Filipinas. Desde que a bolsa foi criada, em 2007, apenas 13 brasileiros foram contemplados.

A metáfora com a gestação do elefante foi imaginada por Rosana quando tornou pública a conquista. “Agora o elefante tem que andar”, diz sobre as burocracias seguintes. A antropóloga vai liderar um time de pesquisadores em três países.

Se hoje celebra com sorriso, lembra também que os últimos anos não foram fáceis. Sua vida virou de ponta cabeça em 2019. Saiu quase exilada do Brasil. Estava desempregada após desocupar o cargo de professora visitante na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e na Universidade de São Paulo (USP). “Queria ficar no Brasil, mas não consegui emprego. Tive dois cargos de professora visitante e não foi possível me alocar. Fiz um concurso na USP e não passei. Eu realmente tentei ficar no Brasil.”

O estopim da sua decisão foi a perseguição política que sofreu após palestrar em universidades norte-americanas sobre o fenômeno do bolsonarismo, a convite da diretora do Brazil Program da Universidade Estadual de San Diego, Érika Larkins. Rosana discursou em 27 instituições, e sua empreitada levantou suspeitas. A reitoria da universidade da UFSM foi acionada pelo Ministério Público Federal pedindo esclarecimentos sobre os passos da pesquisadora.

“Fiquei petrificada com aquele pedido. Por dois meses não contei para ninguém.” Naquela altura, seu nome e rosto já eram conhecidos. Certa vez, um homem ao reconhecê-la no aeroporto, jogou café na professora. Foram diversas ameaças e assédios online. A insegurança tirava sua atenção no dia a dia.

“Nos últimos dias em Santa Maria, vi um cara parado por muito tempo com uma moto na frente do prédio e pensei que ele estava ali para me matar. É isso que o medo faz conosco.” Rosana viu que não havia mais condições financeiras, tampouco políticas para ficar: “Eu iria apanhar se ficasse”.

Para selar a decisão, foi aprovada para ocupar uma posição permanente no departamento de Desenvolvimento Internacional na Universidade de Bath. Agora, vive momentos melhores.

“Desde 6 ou 7 anos quis ser cientista social”

Pouco após assimilar a informação sobre a bolsa europeia, foi ao Twitter e abriu um longo fio aos seus 150 mil seguidores, destacando nome a nome daqueles que a ajudaram no processo. Queria mostrar como foi a caminhada, e lembrar que tantos outros foram imprescindíveis na concepção do projeto. “Na academia, mistificamos, mostramos [as conquistas] como algo completamente natural. O intelectual pensa que a sua admiração vai ser conquistada por alcançar algo inatingível, isso é estúpido.”

Durante a seleção, a mais difícil pela qual já passou, que se encerra numa sabatina com 22 especialistas de todo o mundo, precisou refletir sobre algumas questões. Por que era ela a melhor pessoa para fazer a pesquisa? E qual a contribuição única que o estudo traria para a humanidade? Teria três minutos para responder às perguntas de cada um dos peritos. “Tinha que fazer um projeto que fosse uma representação de tudo que já estudei.”

Para respondê-las, desenrolou outro longo fio, que se iniciava nos seus anos de graduação em Ciências Sociais, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a levava até o presente, já com uma carreira internacional. Teria que conectar os dois pontos e reforçar para si mesma que havia coerência no seu itinerário acadêmico. Não que ela tivesse dúvida sobre isso.

Caçula das três irmãs, Rosana cresceu em Porto Alegre, em um lar simples. Se formou em colégio público, onde na ausência de professores, passou os últimos anos de escola tomando sol no pátio.

No entanto, logo cedo, tinha um plano estruturado em sua cabeça. “Desde 6 ou 7 anos quis ser cientista social. Sou daquelas pessoas que sempre soube o que queria academicamente. No resto, sou um desastre.” Apesar de ter dado aulas em Harvard e Oxford, duas das maiores universidades do mundo, aprendeu inglês aos 26, faz questão de lembrar.

A maior influência intelectual vinha de dentro de casa. O pai, José Carlos, era fascinado por política e futebol, um grande militante de esquerda, e desejava que a filha mais nova seguisse os mesmos passos. Dito e feito.

Logo que entrou na faculdade, ela idealizou uma carreira na política institucional, mas o jogo virou quando teve sua primeira aula de Antropologia e ali se apaixonou. Conta que foi colega de turma da ex-deputada federal do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) Manuela D’Ávila e viu a ex-parlamentar seguir um caminho que achou que seria o dela.

Foi com a Antropologia Social, em especial com a pesquisa etnográfica, que Rosana aguçou a maneira como observa o mundo e entende os eventos que se desdobram lentamente sob nossos olhos, tal como o bolsonarismo.

Seu primeiro texto que viralizou no Facebook foi a respeito dos “rolezinhos”, em 2014. Fenômeno que estudou com sua parceira de pesquisa, a também antropóloga Lucia Scalco. Depois daquilo, tornou-se figura pública. O termo retratava os encontros de adolescentes que aconteciam em shoppings centers de São Paulo. Havia uma reivindicação por espaços de lazer na cidade. A resposta dos estabelecimentos, entretanto, foi restringir o acesso aos jovens, que lentamente, fizeram das reuniões um ato político. Contestavam, especialmente, a exclusão social.

Anos depois, a hipótese de Rosana era de que aqueles jovens que conheceu haviam amadurecido politicamente e teriam feito uma virada à esquerda. Mas não foi a realidade que encontrou: “Queria provar que aquela ambiguidade do rolezinho tinha dado certo. Quando cheguei no campo, vi que muitos eram extremamente conservadores. Em 2016 já seguiam influenciadores de extrema-direita e em 2017 quase todos eram bolsonaristas.”

Voltou a pesquisar o fenômeno causado pelo presidente Jair Bolsonaro quando escreveu o livro Amanhã vai ser maior (Ed. Planeta, 192 p., R$ 23), publicado em 2019. “É o olhar para a história de uma pessoa, com muita profundidade. Como que a mãe teve sua vida mudada com o Bolsa Família. O pai ficou ressentido, a filha é feminista e o menino está lá chupando o dedo, morrendo de raiva porque não é mais o mundo dele. E ele vai se tornando esse menino extremamente conservador.” Embora o objeto de estudo tenha mudado com os anos, a essência do seu método é a mesma: buscar a história das pessoas. 

“Meu campo não é sobre acompanhar e observar uma manifestação, minha etnografia é sobre desenvolver um processo de construção de relacionamento e confiança. De acompanhar sujeitos em uma rede localizada, da qual também me torno parte.”

“Pelos caminhos da muamba”

E em 1999 teve a primeira experiência. Movida por “um ímpeto aventureiro”, sem saber exatamente como e sem grandes referências teóricas, foi a campo. Queria acompanhar um grupo de camelôs, no centro de Porto Alegre. Super tímida, mas ousada, insistia dia após dia por uma aproximação.

“Eu dizia 'quero saber tudo da tua vida, quero ser tua amiga' e as pessoas me dizendo 'sai daqui, preciso vender'.” No fim cederam, estudou o camelódromo durante 4 anos. Recebeu diversos reconhecimentos, incluindo melhor tese do Brasil, Grande Prêmio Capes de Tese e melhor tese da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCSo). A pesquisa se desdobrou em outras e a levou para terras internacionais.

“Fiz muitas viagens com sacoleiras para o Paraguai. E depois [ao acompanhar] famílias de comerciantes chineses fui até as fábricas na China. Um caminho de mais de sete anos de etnografia.” Observava que todos os produtos eram “made in China” e pelos “caminhos da muamba” foi pesquisar o gigante asiático.

Registro feito durante pesquisa sobre o camelódromo, em Porto Alegre (Foto: Rosana Pinheiro-Machado)

Registro feito durante pesquisa sobre o camelódromo, em Porto Alegre (Foto: Rosana Pinheiro-Machado)

“Queria estudar o que chamamos na antropologia de ‘vida social dos objetos’ e acompanhar uma mercadoria do início da sua vida na fábrica até o seu destino.”

Apenas dava ouvidos à sua curiosidade, sem considerar os riscos pelo caminho. Atualmente, diz que não deixaria suas alunas e alunos fazerem o mesmo. “Me vi várias vezes em situações limites. Hoje tenho várias histórias, mas a chance de não ter história nenhuma era muito grande. Não aceito isso para os meus alunos.”

A antropóloga acompanhou diversas sacoleiras em viagens ao Paraguai e chegou a morar no país (Foto: Rosana Pinheiro-Machado)

A antropóloga acompanhou diversas sacoleiras em viagens ao Paraguai e chegou a morar no país (Foto: Rosana Pinheiro-Machado)

Inevitavelmente, construiu fortes relações com as pessoas que seguiu. Tornou-se, inclusive, madrinha do filho de uma das mulheres que conheceu no Brasil, a dona Carminha. Com a publicação, ganhou diversos prêmios. Os pais vibraram juntos, José era um dos grandes entusiastas da filha. Quando venceu o prêmio jovem cientista, ele berrava no salão, deixando Rosana vermelha de vergonha. Era também um dos revisores dos seus trabalhos.

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Na última lembrança que tem de José, ele estava internado. Rosana havia publicado o primeiro artigo em um periódico importante, a Revista Brasileira de Ciências Sociais, durante seu doutorado em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O pai, com respirador, retirou o aparelho para poder ler o texto.

A mãe, Rosária, embora não fosse acadêmica, sempre ensinou a filha a sonhar alto. Algo que incorporou em sua pedagogia. “Hoje parte da minha militância acadêmica é ensinar os alunos a sonhar porque isso é fundamental e sociologicamente. Só conseguimos mobilidade se conseguirmos olhar o que é possível.”

��Esperança abalada”

No início da pandemia, tentou ajudar estudantes a escapar do desamparo. Notou que muitos estavam com o emocional em frangalhos, então em questão de dias se juntou a outras grandes profissionais como Débora Diniz e Janaina Viscardi, e levantou o curso online de escrita acadêmica, “o projeto mais bacana que já fiz fora da academia”.

Os vídeos acumulam mais de 500 mil visualizações no Youtube e o curso coleta diversos agradecimentos em teses publicadas. A ideia não era apenas ensinar o básico que ninguém ensinou a Rosana enquanto se formava, mas também contribuir com a autoestima dos estudantes. Uma das lições era desmistificar as negativas que iriam encontrar no caminho.
“Não podemos dramatizar o não. Faz parte do jogo.” E conta que ela mesma trombou com muitas recusas.

“Toda minha vida acadêmica foi marcada por grandes fracassos. Brinco que a cada grande sucesso, tem sempre 10 fracassos por trás, mas também grandes vitórias.” Uma frase que poderia soar improvável de alguém que acabou de ser laureada pelo órgão de financiamento de pesquisa de maior prestígio da Europa. Nove bolsistas da ERC são vencedores do prêmio Nobel, segundo informações do órgão.

Mais de duas décadas depois, Rosana volta ao camelódromo para o estudo preliminar de sua atual pesquisa. Comenta que o trabalho informal, nesta etapa, empurrou “os empreendedores” para as plataformas digitais.

“Voltei lá para o camelódromo de Porto Alegre e vi que todos eles foram para o Instagram durante a pandemia, todo mundo.” São “centenas de milhões de pessoas no mundo todo”, ressalta. A antropóloga busca compreender como esses migrantes do terreno digital estão sendo (ou foram) cooptados por influenciadores da extrema-direita e acompanhar seus movimentos políticos nos próximos anos. Um casamento da etnografia com a ciência de dados – essa última liderada pelo pesquisador Fabio Malini.

“A pesquisa agora é descobrir quem são os atores-chaves que fazem essa mediação de atrair o trabalhador para uma linha mais política, que vão motivá-lo a investir e crescer nas redes. Muitos deles são lideranças religiosas que os ensinam a ter fé para acreditar no próprio valor e se tornarem milionários.”

Hoje seu trabalho no Brasil é político acadêmico, frisa. Ela quer que um grande público tenha acesso a ele. E isso passa pelo cuidado com sua escrita, até uma forte presença nas redes sociais. Mas academicamente, não pretende publicar mais no país. Também não se arrisca a fazer análises “megalomaníacas” sobre a situação da nação daqui a 10 anos: “A esperança está abalada.”

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