Quando tinha cerca de 15 anos, a microempreendedora Beatriz Oliveira Costa começou a sentir dores dos pés à cabeça. O desconforto era tão grande, que ela não aguentava receber um abraço. O elástico da calcinha e do sutiã a incomodavam. Beatriz dormia sentada, porque não conseguia se deitar. Levada a um neurocirurgião, ouviu do profissional: “Os seus exames não mostram nada. Você não está inventando a dor, não? O seu problema é de cabeça”.
Beatriz peregrinou por diferentes médicos, até descobrir, anos depois, que tem fibromialgia. Trata-se de uma doença que causa dor muscular generalizada e não é detectada por exames — seu diagnóstico é clínico. A microemprendedora sabe que ser ignorada por médicos não é um problema só seu: "Todas nós passamos por isso", diz, aos 41 anos.
Beatriz foi vítima do gaslighting médico. O termo ganhou destaque na mídia e nas redes sociais em 2022 e 2023, revelando uma prática que ocorre quando médicos atribuem a problemas psíquicos os sintomas relatados por seus pacientes, negligenciando a investigação de possíveis causas subjacentes.
A expressão vem da peça Gas Light, de 1938, na qual um marido tenta enlouquecer sua esposa. O conceito surgiu na literatura científica em 2020, a partir de um artigo publicado no periódico Jama. O texto relata o caso de uma paciente com uma série de sintomas, mas os médicos repetidamente associavam suas queixas a fatores psicológicos. Uma investigação aprofundada revelou que a pessoa, na verdade, estava sofrendo de Covid longa.
Mulheres são mais negligenciadas
Embora ainda não existam estatísticas sobre a frequência do gaslighting médico, os estudos iniciais sugerem que as mulheres, especialmente as mais velhas, estão em maior risco de serem vítimas dessa prática.
“O gaslighting médico é um conceito sociológico que está em construção. Ainda não tem elementos para apontar as causas. No entanto, com certeza existe uma base cultural por trás desse fenômeno”, afirma o médico perito Hugo Castro, diretor clínico da ACPERITOS, clínica especializada na investigação de casos de erro médico.
Gaslighting pode ser considerado erro médico
Segundo Hugo Castro, a prática pode ser considerada um erro médico, a depender do dano causado ao paciente: “Se houver uma conexão clara entre a conduta do profissional de saúde e o prejuízo sofrido pela pessoa, então o gaslighting pode ser considerado uma modalidade de erro médico, associado à negligência quando o médico deixa de seguir um procedimento básico diante das queixas do paciente”.
No ano passado, o perito investigou a história de uma mulher de 25 anos que chegou ao pronto-socorro relatando forte dor no peito, associada a sudorese e agitação. A paciente não foi submetida aos exames necessários para investigar sua queixa e recebeu apenas remédio para ansiedade.
Depois de sentir uma piora na dor, ela voltou ao hospital. Os médicos, então, fizeram exames cardiológicos e constataram um quadro de infarto. A paciente passou a ter insuficiência cardíaca como sequela do evento.
Prática é comum em pacientes com doenças crônicas
O gaslighting médico frequentemente afeta indivíduos com doenças crônicas. A engenheira Layss Alcântara, de 33 anos, desde pequena sentia dores abdominais. Aos 19 anos, fez a primeira colonoscopia, que apontou laudo de retocolite ulcerativa, uma enfermidade inflamatória intestinal e crônica que afeta o intestino grosso e o reto.
Mesmo com o nome da moléstia escancarada no exame, os médicos tratavam suas queixas como síndrome do intestino irritável e gastrite. “Aos 21 anos, uma médica me disse que eu tinha anemia porque minha mãe não cozinhava direito”, relembra.
Após peregrinar de consultório em consultório, Layss só descobriu a real causa do seu sofrimento dez anos depois da primeira colonoscopia: doença de Crohn, uma enfermidade inflamatória intestinal que pode ser confundida com retocolite ulcerativa.
Esse não é o único problema de saúde da engenheira. Em 2011, ela recebeu o diagnóstico de fibromialgia. “Procurei vários reumatologistas. Um deles me disse que aquela doença não existia, era psicológica”, conta ela, que compartilha a sua jornada no perfil de Instagram @meninadefibroautoimune.
Foram mais dez médicos ao longo de nove anos, até finalmente encontrar um especialista em dor que amenizou o seu sofrimento, a partir de um tratamento multidisciplinar.
A endometriose é outro exemplo clássico. Diversos estudos já mostraram que muitas mulheres sofrem com cólica menstrual e dor pélvica por anos antes de receberem o diagnóstico correto.
Enfrentando o gaslighting médico
Com algumas medidas, é possível tentar evitar ser ignorada no consultório. “Tem uma pergunta boa de ser feita, que acende no profissional de saúde a necessidade de fazer uma investigação detalhada. Se o médico disser que o seu problema é ansiedade, por exemplo, questione quais são os diagnósticos diferenciais para um quadro como o seu”, recomenda o perito.
O diagnóstico diferencial é uma técnica para identificar moléstias. A partir de um conjunto de sintomas, o médico tem o dever de pesquisar quais são as patologias que se apresentam daquela mesma forma. Às vezes, o diagnóstico correto não é o primeiro que lhe vem à cabeça.
Outra saída é buscar uma segunda opinião. “Esse é um direito do paciente previsto no Código de Ética Médica e na literatura científica. Um segundo olhar é sempre bem-vindo e pode ser a solução do problema”, afirma Hugo Castro.
Se a pessoa acreditar que recebeu assistência médica inadequada, pode buscar aconselhamento jurídico de um advogado especializado em direito médico para avaliar a possibilidade de buscar reparação judicial.
Por fim, o perito enfatiza a importância da informação: “O conhecimento é uma poderosa arma para minimizar o risco de gaslighting médico. Pesquise sobre os sintomas e faça perguntas que estimulem uma investigação completa da sua saúde”.
Beatriz Oliveira Costa, que produz conteúdos sobre fibromialgia no perfil de Instagram @fibromialgia_controlada, recomenda: “O meu recado é: se você for ignorada por um médico, não desista. Eu passei por vários profissionais até encontrar o tratamento para a minha doença”.