Retratos

Por Manuela Azenha

Luciana Petersen nasceu em uma família pastoral, em berço evangélico. A vida da jornalista de 26 anos sempre girou em torno da religião - em alguns momentos chegou a morar no mesmo terreno que a igreja, no interior de São Paulo. Todas as amizades eram da igreja, onde também participava de diversas atividades artísticas.

“Minha vida social sempre esteve ligada à questão evangélica, mas não era um problema. Me ajudou a adquirir habilidades artísticas, falar em público, minha leitura começou cedo porque era incentivada a ler histórias bíblicas e a aprender músicas da igreja”, conta em entrevista a Marie Claire.

Ao mesmo tempo, Luciana foi criada com proibições na infância, como assistir ao programa Teletubbies e à novela mexicana Rebelde. Mais tarde, na adolescência, tampouco podia “ficar” com alguém ou sair para shows e boates. Na faculdade, teve contato com o movimento universitário e conheceu cristãos progressistas pela primeira vez, que discutiam racismo e machismo dentro do contexto da religião.

Enquanto compreendia a própria bissexualidade, percebia também as barreiras dentro do ambiente institucional religioso da igreja. “As estruturas eclesiásticas são machistas, racistas e lgbtfóbicas, carregam as opressões que estão na sociedade”, afirma. “Já tinha ideia de que era bi na adolescência, mas disfarçava. Tentei me tornar uma cristã exemplar para que não fosse tão julgada quando isso aparecesse, mas não adiantou.” Luciana tinha 24 anos quando foi expulsa da igreja que frequentava por se posicionar publicamente a favor dos direitos dos LGBTQIAP+.

No ano anterior, já tinha criado uma igreja virtual pelo Whatsapp, depois de cristãs não cis hétero a buscarem pelas redes sociais. Encontravam-se quinzenalmente. Depois, no ano eleitoral de 2022, passou a se reunir com grupos de cristãos progressistas e nunca mais pararam. Tornou-se a comunidade Oásis, igreja na qual Luciana é pastora, junto com Matheus Machado, que também foi expulso da igreja em que estava por ser gay. A maioria dos participantes é LGBTQIAP+.

Abaixo, Luciana conta sua trajetória:

“Nasci em berço evangélico, venho de uma família pastoral. Meus pais eram lideranças da igreja, tínhamos uma vida em torno disso. Era o momento que tínhamos juntos, íamos no culto, depois todo mundo almoçava. Sempre morei perto da igreja, em alguns momentos até no mesmo terreno.

Fazíamos o culto doméstico, que é tomar café e ler a Bíblia, fazer oração antes de dormir. Tudo era muito espirituoso. Mas nunca foi uma obrigação, apesar de toda a influência da vivência cristã.

Uma vez não estava a fim de ir a um culto de quarta à noite, devia ter uns 9 anos. Naquele momento minha mãe falou que não era obrigada a ir, estava apenas me convidando. Ali muita coisa mudou nessa chave e percebi que podia ser uma escolha minha.

Passei a liderar grupos de dança de adolescentes e a viajar para conhecer outras igrejas. Minha vida social sempre esteve ligada à questão evangélica, mas isso não era um problema na época. Me ajudou a adquirir habilidades artísticas, falar em público, minha leitura começou cedo porque era incentivada a ler histórias bíblicas e a aprender músicas da igreja.

Ao mesmo tempo, era uma criação que tinha negações e proibições. Aquela coisa de ‘crente não fala palavrão, não ouve música do mundo’. Meus pais eram tranquilos com isso, mas tenho amigas que nunca viram Rei Leão porque Disney era coisa do demônio. Meus pais proibiram Teletubbies, por exemplo, algumas novelas tipo Rebelde. Virando adolescente, não podia ficar com ninguém. “Crente só namora.” Tinha restrições para sair, pra ir em show, balada. Nunca fiz isso quando era adolescente porque não fazia parte do meu contexto.

Fui para faculdade, aos 17, estudar engenharia civil em Minas Gerais. Um dos meus objetivos era ser missionária. Queria ajudar as pessoas com a minha profissão, mostrar Jesus através da minha vida. Eu era de uma linha evangélica mais histórica, tradicional, de um tipo de missão que busca não só falar de Jesus e pregar o Evangelho, mas também ajudar as pessoas a partir do trabalho. Conheci um missionário engenheiro que construía poços na Índia para levar água e fiquei com isso na cabeça. No fim não gostei de engenharia, não tinha nada a ver comigo. Foi a primeira experiência fora de casa, longe dos meus pais e da igreja.

Na faculdade tive contato com movimentos cristãos universitários que faziam um trabalho de falar de Jesus nas universidades, pregar, se envolver em pautas políticas, como o direito à educação, a partir da vivência cristã. Nesse movimento, conheci as primeiras pessoas cristãs progressistas da minha vida, que discutiam machismo e racismo no contexto cristão.

Sempre tive essa veia social e questionei o que era ensinado na igreja. Concordava com muita coisa, mas questionava dogmas, conceitos. A questão da homossexuliadade foi algo que questionei muito. Perguntava a professores da escola bíblica dominical: por que você diz que é pecado? Me prova na Bíblia que isso faz sentido, que a gente não pode apoiar os direitos civis de pessoas LGBT.

Em Minas me envolvi com uma igreja mais conservadora, mais fundamentalista, neopentecostal. Ainda existia o embate de um a um, mas a discussão institucional era mais difícil porque nessas igrejas maiores e mais fundamentalistas, a estrutura não permite que os membros pequenos, do povo, influenciem tanto. São mais hierárquicas.

A estrutura batista, de onde venho, é minimamente democrática, tem assembleias nas quais as pessoas votam. Mas tem seus problemas e as igrejas têm seus donos também.

+ Maria Valéria Rezende: Freira, escritora e feminista

Com o passar do tempo, fui entendendo que o ambiente institucional religioso da igreja sempre vai ter barreiras. Você pode empurrar até certo momento, mas vai esbarrar num muro que não vai permitir que você exista ali dentro.

Aos poucos fui me entendendo enquanto pessoa bissexual. Já tinha alguma ideia na adolescência, mas disfarçava. E tentei me tornar uma cristã exemplar para que não fosse tão julgada quando isso aparecesse. Para não ser expulsa, mas não adiantou.

As estruturas eclesiásticas são machistas, racistas e lgbtfóbicas, carregam as opressões que estão na sociedade."
— Luciana Peterson

Quando percebi isso, comecei a me manifestar publicamente. Junto com amigas, criei o podcast Redomas, que denuncia o machismo nos espaços de fé. Comecei a me posicionar em redes sociais.

Em 2017, entrei para o jornalismo e comecei a fazer isso escrevendo para veículos e produções próprias de denúncia, explicando as estruturas evangélicas. Isso não pegou bem nos meios em que cresci. Em um desses momentos em que me posicionei a favor da pauta LGBT, fui convidada a me retirar da igreja que frequentava na época.

É curioso como isso acontece. A igreja nem sempre fala explicitamente que você não é mais bem-vindo. Normalmente acontece tirando seus cargos, falam para você se retirar da liderança, mudar de igreja porque a convivência ficou difícil. É um processo de expulsão velado. O mais cristão a se fazer seria ser honesto, explicar os motivos e admitir a expulsão. Sofri algumas dessas expulsões ao longo da minha vida eclesiástica.

Fiz parte de uma igreja que, se você estivesse “praticando a homossexualidade”, não poderia ser do ministério de louvor, por exemplo. Nessa época, nem me entendia como bissexual. Não namorava ninguém, não beijava na boca porque tinha medo das consequências disso na minha vida. Mas tinha uma amiga lésbica, e, quando “praticava o lesbianismo”, não podia tocar bateria no ministério do louvor. Quando negava ser lésbica, podia tocar. Falavam que era para nosso bem, que era para negar a carne. Que a vontade de Deus era servir a ele inteiramente, negando quem você é, colocando diante da cruz sua identidade. E sua identidade é ser servo de Deus. São muitos mecanismos opressores que tiram as pessoas dessas instituições religiosas, mesmo que não seja uma expulsão explícita.

Romper com a igreja institucional foi difícil porque queria servir, ser missionária. Mas a partir do momento em que vi que esse espaço não era onde poderia viver minha espiritualidade, não era seguro para mim, saí tranquila. E fui encontrando outros espaços onde posso viver minha fé, sem ter que deixar parte de mim de fora.

Ampliei o sentido de 'igreja'. Na Bíblia, igreja é um ou mais reunidos em nome de Jesus. Percebi que se estou tomando café com uma amiga que também foi expulsa da igreja, estou sendo igreja de alguma forma. Se estou encontrando essas pessoas no caminho, que desabafam e falam da fé delas para mim, sobre a vida, também estou sendo igreja.

Esse movimento foi acontecendo, de pessoas me procurarem para contar as suas histórias, pessoas que nem conheço saindo do armário para mim, do nada, na internet. Pessoas me chamando de pastora e me colocando nesse lugar, que é muito estranho para mim, porque vim de uma instituição em que mulheres não podem ser pastoras. Nunca foi uma possibilidade enquanto estava crescendo. Mas me vi pastoreando de certa forma. A figura do pastor na igreja evangélica é aquela que cuida, aconselha, caminha junto, chora com você. Me dar esse nome é difícil, mas agora estou aceitando melhor.

A ideia de criar minha igreja partiu dessa congregação que fui encontrando pelo caminho. Começou com a igreja Vale das Bençãos, online, criada na pandemia, quando várias meninas e mulheres que não eram cis hétero vieram me procurar no Twitter. Perguntaram se eu participava de alguma reunião online, querendo essa espiritualidade para passar por aquele momento tão difícil, em que a gente precisava se apegar à fé. Criei um grupo de Whatsapp, que virou uma igreja virtual. A gente se reunia nos domingos a cada 15 dias, cantava, orava, dava aconselhamentos. Considero essa minha primeira igreja.

Nesse processo de encontrar igreja com outras pessoas, encontrei também novas narrativas evangélicas, um movimento de espiritualidades plurais, de uma perspectiva progressista.

+ Priscilla afirma ser aliada à causa LGBTQIAPN+: 'Hoje posso dizer abertamente o que penso sobre tudo'

Em 2022, o período eleitoral foi difícil para os cristãos progressistas, quando muitos dos evangélicos se curvaram à extrema direita. A gente sabia que uma das vias de conversar seria pela linguagem cristã, o “crentês”. Discordávamos do governo Bolsonaro e fizemos um movimento de criar publicações, disputar as narrativas com os evangélicos. Foi difícil e cansativo.

Fizemos reuniões de oração no que se tornou a comunidade Oásis, a igreja que hoje pastoreio no Rio de Janeiro, onde moro. Começamos em outubro de 2022, com vigílias, e não quiseram parar depois das eleições. Hoje a gente tem um grupo de whatsapp com 50 pessoas. É uma comunidade em êxodo, que vai e volta. Nem sempre podem ir aos encontros, mas estão presentes de alguma forma. Não queremos que seja uma mega igreja, mas ter um elemento comunitário, fazer amizades, chorar junto. Não queremos pressão religiosa de ter que estar em todo encontro. É um momento tranquilo de buscar espiritualidade. A maioria das pessoas são LGBT. Toco a igreja com Matheus Machado, que também foi expulso da igreja em que estava por ser gay.

Também estou no processo de me oficializar como pastora, junto com amigas minhas. Tenho ressalvas porque não tive formação. Na minha tradição, precisa fazer faculdade de teologia. Mas em outras linhas, o pastor é reconhecido pela comunidade e cuida das pessoas de forma intencional, que é o que já faço. Em julho deve vir a nossa ordenação pastoral coletiva. É importante que as mulheres sejam legitimadas com o trabalho pastoral que fazem, mas não é reconhecido. É importante ter vozes de mulheres progressistas e jovens que possam falar sobre isso. Além disso, sou uma mulher negra e não vi muitas como pastoras na minha infância. Há muitas mulheres negras conservadoras, que seguem agendas fundamentalistas, e que carregam suas comunidades nas costas. São importantes bases de sustento nas periferias do Brasil, mas, quando chegam na pauta moral, muitas caem no fundamentalismo.

É importante existir uma pastora negra bissexual jovem nesse país."
— Luciana Peterson

Fui entendendo aos poucos a minha sexualidade. No momento que entendi, em 2015, demorei a ter coragem de aceitar e afirmar com orgulho. Fui criada para ter vergonha de ser quem eu sou. Fui falar publicamente em 2019, com 21 anos. Mas cheguei à conclusão de que está tudo bem e Deus me ama mesmo assim, aceita, acolhe e mais do que isso – celebra. Deus ama a diversidade, todas as pessoas e isso não deve ser nenhum impedimento para exercer a espiritualidade, ou não ter religião se preferir.

Foi um processo de muita oração. As pessoas mais conservadoras não imaginam o quanto pessoas LGBT passam por um processo espiritual nesse momento de tentar negar a si mesmo, orando para Deus para tirar esse sentimento da gente. O que aconteceu comigo foi que Deus foi respondendo que estava tudo bem, até que entendi. Então passei a falar sobre isso e ter como objetivo de vida acolher pessoas que passam pela mesma crise."

Mais recente Próxima ‘É quase uma simbiose. Não concebo minha vida sem ela’: a cumplicidade e as boas histórias de Renata Vasconcellos e sua irmã gêmea Lanza Mazza
Mais do Marie Claire

Atriz antecipou as comemorações de seu aniversário

Marina Ruy Barbosa abre álbum de aniversário e posa ao lado do namorado

Torres é sócia de cinco estabelecimentos na capital paulista incluindo A Casa do Porco

Janaina Torres, melhor chef mulher do mundo, se casa em São Paulo; veja o menu do casamento

Em conversa com Marie Claire, surfista conta como está trabalhando duro para construir sua própria carreira; ela também exalta a relação com Gabriel Medina e revela seus cuidados de beleza. Ela e o protetor solar formam uma dupla imbatível

Sophia Medina sobre comparações com o irmão, Gabriel: 'Quero escrever minha própria história'

Para a influenciadora digital Isabella Savaget, 22, o transtorno alimentar era uma forma também de se encaixar em um padrão social, uma vez que pessoas sem deficiência também podem ter a condição

'Com a anorexia nervosa, eu arrumei um jeito de ter controle de alguma parte de mim', diz jovem com paralisia cerebral'

Descubra como os perfumes para cabelo podem transformar a rotina de autocuidado. Reunimos 6 opções a partir de R$ 20 para deixar os fios perfumados e radiantes

Perfume para cabelo: 6 opções para deixar os fios mais cheirosos

Conheça 12 hidratantes faciais disponíveis no mercado de skincare, com fórmulas que oferecem desde hidratação profunda e combate a linhas finas até proteção contra danos ambientais, garantindo uma pele saudável e radiante.

Hidratantes Faciais: 12 opções para aprimorar a sua rotina de skincare e manter a sua pele radiante

De chapéu country a bota texana, lista reúne roupas e acessórios para quem deseja imprimir estilo durante os eventos. Preços variam de R$ 28 a R$ 258 em lojas online

Look country feminino: 7 opções para ter estilo e conforto nos rodeios

Nesta produção documental da Max, público assiste aos momentos pré e pós retomada do estilista no posto de criativo da marca Herchcovitch;Alexandre

Para assistir: documentário revisita carreira de Alexandre Herchcovitch e o retorno do estilista à própria marca

A maranhense Karoline Bezerra Maia, de 34 anos, é considerada a primeira quilombola a tomar posse como promotora de Justiça. A Marie Claire, ela conta sua história com o quilombo de Jutaí, onde seu pai nasceu e cresceu, além da sua trajetória no mundo da advocacia que a levou a desejar um cargo público

'Após passar por desafios financeiros e psicológicos ao prestar concursos, me tornei a primeira promotora quilombola do Brasil'

A dupla de acessórios trend do momento tem um "apoio" de peso, como das famosas Rihanna e Hailey Bieber, e tem tudo para ser a sua favorita nesta temporada; aprenda como produzir um look usando as peças

Disfarce ou estilo? Usar lenço com boné virou trend; aqui estão 6 combinações para te inspirar