O Estatuto do Nascituro, que quer conceder a embriões os mesmos direitos de pessoas já nascidas, voltou a se tornar uma preocupação de mulheres e pessoas que gestam após ser colocado em pauta e lido na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CMulher) na última quarta-feira (7).
![Mulheres realizam manifestação a favor da descriminalização e legalização do aborto na Avenida Paulista, em São Paulo, em 8 de agosto de 2018 — Foto: Getty Images](https://cdn.statically.io/img/s2-marieclaire.glbimg.com/pvh3bWu8TKdR_agT_KR4wghMD2I=/0x0:4011x2677/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_51f0194726ca4cae994c33379977582d/internal_photos/bs/2022/0/3/KNcoMDRB2M1D2iITZ3nw/gettyimages-1013685798.jpg)
A votação do Projeto de Lei nº478/07, de autoria dos deputados Luiz Bassuma (Avante-BA, na época do PT) e Miguel Martini (morto em 2013, na época do PHS-MG), foi adiada após pedido de vista apresentado pelos parlamentares Vivi Reis (PSOL-PA), Erika Kokay (PT-CE), Pastor Eurico (PL-SP) e Sâmia Bomfim (PSOL-SP), e deve ser retomada na próxima quarta-feira (14).
O avanço do estatuto representaria um retrocesso para os direitos reprodutivos e pode colocar em xeque a legalidade do aborto nos três casos em que é autorizado no Brasil – risco à vida da mulher ou pessoa gestante, feto anencéfalo (decisão de 2012 do Supremo Tribunal Federal) ou gestação decorrente de estupro.
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Desde sua apresentação, em 2007, o projeto de lei é frequentemente trazido à tona pela bancada conservadora, formada em sua maioria por parlamentares bolsonaristas, e é visto por ativistas pelos direitos das mulheres como uma tentativa de dificultar e penalizar o aborto em absolutamente todos os casos. A mesma bancada foi responsável por colocar o PL em pauta novamente no CMulher e, assim, buscar acelerar a sua votação antes do fim do ano legislativo de 2022.
De acordo com o texto, o nascituro – incluindo o concebido in vitro – tem "sua natureza humana reconhecida desde a concepção" e, se aprovado, passa a ter "direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência”. O embrião também ganha proteção contra "toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".
O texto ainda prevê detenção de 1 a 3 anos para mulheres e pessoas que gestam que realizarem um aborto ou que “causem culposamente a morte de um nascituro”. Ou seja, essas pessoas podem ser consideradas criminosas caso tenham abortos espontâneos ou façam procedimentos invasivos para tratar de outras condições, como quimioterapia, cirurgia cardíaca ou radioterapia, já que seriam considerados como “violências contra o bebê”.
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Por fim, o estatuto coloca que quem desistir do aborto terá acesso à assistência pré-natal, encaminhamento à adoção (caso a pessoa assim desejar) e uma pensão financeira que foi apelidada de “bolsa-estupro”. Isso porque, caso identificado, o estuprador seria o responsável pelo pagamento. Caso contrário, o auxílio seria custeado pelo Estado.
Lívia Merlim, relações internacionais com especialização em gênero e sexualidade e coordenadora do Mapa do Acolhimento, plataforma que conecta vítimas de violência de gênero a psicólogas e advogadas, afirma a Marie Claire que o movimento feminista tenta “desde o primeiro minuto” barrar o progresso do Estatuto do Nascituro.
Ela aponta que a sanção do projeto não apenas contribuiria para grande sofrimento psicológico e físico de mulheres e pessoas que gestam, como criaria mais obstáculos para conseguir o aborto legal, já que legisladores e profissionais da saúde poderiam se basear na interpretação de defesa da vida desde a concepção e negar o direito.
"Essa descrição diz que um amontoado de células têm os mesmos direitos que uma pessoa nascida. É de uma desumanização brutal. Por isso as feministas estão tão indignadas com esse projeto", explica.
A linha do tempo do Estatuto
![Mulheres protestam na Avenida Paulista, em São Paulo, em 13 de novembro de 2017, cinco dias após Comissão da Câmara aprovar texto base de projeto que proíbe qualquer caso de aborto — Foto: Getty Images](https://cdn.statically.io/img/s2-marieclaire.glbimg.com/N3_7UEwf2_3_T971I8ya3CKiygI=/0x0:4011x2677/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_51f0194726ca4cae994c33379977582d/internal_photos/bs/2022/k/o/McBBXsRIycn63FxRTz1A/gettyimages-874130292.jpg)
Ao longo de 15 anos desde sua apresentação, o projeto passou por algumas alterações e chegou a inspirar a criação de outros da mesma natureza. É o caso, por exemplo, do PL nº 883/22, de autoria da deputada Carla Zambelli, que tem como propostas a inclusão de “incitação ao aborto” como crime no Código Penal e a inclusão dos direitos do nascituro no Código Civil.
A primeira vitória do Estatuto do Nascituro aconteceu em 2010, quando foi aprovado pela CSSF (Comissão de Seguridade Social e Família). Em 2013, foi a vez da CFT (Comissão de Finanças e Tributação da Câmara) aprovar o PL e outros cinco projetos com a mesma proposta. Na ocasião, foi elogiado pelo relator Eduardo Cunha (MDB-RJ) por “dar oportunidade a quem sofreu violência sexual de optar por não praticar o aborto". Cunha destacou que o texto deveria se tornar vigente no ano seguinte, o que não aconteceu.
Em junho de 2017, a proposta chegou a passar pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), mas o projeto foi zerado e redistribuído para a CMulher após requerimento do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ).
Desde então, ficou em análise e chegou a ter discussão marcada para novembro de 2021, que não foi para frente. No mesmo ano, a CSSF aprovou o requerimento da deputada federal Vivi Reis para a realização de uma Audiência Pública baseada no PL.
No último dia 7, durante a votação na CMulher, Sâmia Bomfim chegou a se referir ao Estatuto durante a sessão como "estatuto do estuprador". "Meninas, em sua maioria, crianças que são mais de 70% das vítimas de violência sexual do país, quando estupradas, serão obrigada a levar adiante uma gravidez de seu estuprador. Um sujeito que deveria ser punido por seus crimes será chamado de pai", disse.
Se o projeto for reprovado na Comissão na próxima quarta-feira, será arquivado. No entanto, caso seja aprovado, ainda será analisado pela CCJ e pelo Plenário da Casa. Se aceito nos dois órgãos, vai para tramitação no Senado e Congresso. Caso passe pelas duas casas, o Estatuto do Nascituro vai para sanção ou veto do presidente da República.