• Thiago Andrill
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A advogada Gloria Allred e Norma McCorvey durante o Pro Choice Rally, em julho de 1989, em Burbank, Califórnia (Foto:  Bob Riha Jr./Getty Images)

A advogada Gloria Allred e Norma McCorvey durante o Pro Choice Rally, em julho de 1989, em Burbank, Califórnia (Foto: Bob Riha Jr./Getty Images)

A determinação da Suprema Corte dos Estados Unidos, nesta sexta-feira (24), de não estabelecer mais o aborto como um direito no país, o que abre espaço para que os estados adotem vetos locais, reverte a histórica decisão Roe vs Wade, tomada pelo mesmo tribunal em 1973. A garçonete de Dallas, no Texas, Norma McCorvey, sob o pseudônimo de Jane Roe, abriu um processo contra Henry Wade, promotor do distrito da cidade, para exigir o direito de abortar no estado em 1970.

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Esta havia sido a terceira gravidez de Norma. Três anos depois, o caso chegou à Suprema Corte e, em janeiro daquele ano, o tribunal decidiu, sete votos contra dois, a favor de Jane. Ao contrário do que comumente compreendido, cinco juízes republicanos (partido historicamente mais conservador) e dois democratas (mais liberal) votaram que Jane Roe deveria ter a autorização para abortar.

Harry Blackmun, um magistrado republicano, foi o responsável por redigir o texto da decisão, que dizia que a restrição ao aborto era inconstitucional, não necessariamente pelo direito de escolha da mulher, mas por conta da garantia legal à sua privacidade.

Inclusive, foi sobre a décima-quarta emenda da Constituição, que faz menção à privacidade, que o time da requerente sustentou a argumentação. Apesar da vitória, Norma McCorvey já havia dado à luz a uma menina em junho de 1970, que foi adotada por uma família.

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Entretanto, a Suprema Corte decidiu que o direito ao aborto não era absoluto, ou seja, que a prática precisava ainda ser equalizada aos interesses governamentais em proteger a saúde da mulher e da vida pré-natal. De todo modo, as leis do Texas foram derrubadas em reconhecimento à “natureza sensível e emocional do debate sobre o aborto, os pontos de vista rigorosamente opostos, inclusive entre os médicos, e as convicções profundas e absolutas que a questão inspira”, declarava o texto da decisão.

Roe vs Wade repercutiu em toda a nação e os demais estados precisaram seguir a jurisprudência. Houve o entendimento, por parte dos juízes da Suprema Corte, de que “o direito ao respeito da vida privada, presente na 14ª Emenda da Constituição (…), é suficientemente amplo para ser aplicado à decisão de uma mulher de interromper, ou não, sua gravidez.”

O texto da decisão continuava: “Uma lei como a do Texas, que faz do aborto um crime, salvo quando a vida da mãe está em perigo, sem levar em conta o estado da gravidez, ou outros interesses em jogo, viola a 14ª Emenda da Constituição.”

O que aconteceu com Jane Roe?

Em 2004, Norma McCorvey solicitou que a Suprema Corte revisse seu caso, não obtendo sucesso (Foto: Reprodução Instagram)

Em 2004, Norma McCorvey solicitou que a Suprema Corte revisse seu caso, não obtendo sucesso (Foto: Reprodução Instagram)

Em 1994, Norma McCorvey publicou um livro de memórias: I Am Roe (Eu Sou Roe). No ano seguinte, Norma se batizou como protestante e deixou o trabalho em uma clínica de saúde que trabalhava com a interrupção de gravidez. Já em 1998, se tornou católica e, em 2004, solicitou que a Suprema Corte revisse seu caso – não obteve sucesso. Morreu com 69 anos em 2017.

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A identidade da bebê que manteve em seu ventre durante o julgamento em 1973 ficou em segredo por anos até que foi revelada com a publicação do livro The Family Roe. An American Story (A família Roe. Uma história americana), do jornalista Joshua Prager. Seu nome é Shelley Lee Thornton.

O jornalista apurou que Norma McCorvey teve uma vida complicada antes de, contra sua vontade, se transformar em um personagem histórico. Ela nasceu no estado da Louisiana, cresceu pobre no Texas, com uma infância marcada pela ausência do pai e abusos psicológicos da mãe alcoólatra.

Engravidou pela primeira vez quando tinha 16 anos e, logo depois, teve a segunda. Ambos os bebês foram adotados. Aos 21, com um histórico de alcoolismo vício em drogas e tendo que se prostituir, ficou grávida e procurou ajuda.

A jovem conseguiu o contato da advogada Linda Coffee, que na época tinha apenas 26 anos e procurava uma demandante com um exemplo que lhe possibilitasse lutar pela legalização do aborto. Sarah Weddington, outra advogada, também fez parte do time de defesa da jovem que viria a se tornar Jane Roe.

Progresso comedido

O contexto da histórica decisão de 1973 era marcado pela revisão de pilares sociais. Poucos anos antes, em maio de 1968, na França, diferentes protestos da classe estudantil de universidades como Sorbonne e Nanterre culminaram na maior greve geral do país e, até hoje, da Europa.

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No núcleo das reivindicações, estavam as mulheres, inspiradas por obras de feministas como Simone de Beauvoir, que reclamavam igualdade no mercado de trabalho, liberdade sexual e outros pontos. Nos EUA, e em sinergia com o que acontecia do outro lado do Atlântico, o movimento anti-guerra, capitaneado pelos hippies, se opunha ao modelo estadunidense de vida que teve seu auge nos anos 50.

Contudo, apesar do progresso, a decisão Roe vs Wade foi “segurada” pelos ministros da Suprema Corte, tendo sido emitida apenas após a eleição presidencial de 1972, que reelegeu o republicano Richard Nixon. Em sua primeira campanha, em 1968, o conservador propagou uma figura de estabilidade durante o período de agitação, no qual os EUA estavam envolvidos na Guerra do Vietnã (1955 - 1975).

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O político apelou para o que, posteriormente, nomeou como “maioria silenciosa”; americanos com tendências conservadoras que não apreciavam o movimento hippie e os manifestantes contra a guerra.

A decisão da Suprema Corte em 2022

A mais recente determinação foi feita a partir da validação de uma lei criada em 2018, no Mississipi, que impossibilita a interrupção da gravidez após a 15ª semana de gestação. A medida também inclui casos de estupro – isso significa que mesmo em casos de gestação decorrente de violência sexual, o aborto pode ser negado no estado. Desde a lei do Mississipi, diferentes magistrados usaram o caso como oportunidade para revogar a Roe vs. Wade.

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Com três juízes progressistas e os outros seis mais conservadores, ao contrário do contexto dos anos 70 que, mesmo com maioria republicana, levou à legalização, a decisão foi derrubada. Metade dos conservadores foi designada pelo antigo presidente dos Estados Unidos Donald Trump.