Ayomi Domenica: ‘Brasil limita muito as possibilidades de ser uma atriz negra’

Ao som de vinis de Jorge Ben Jor e Maria Bethânia, a atriz fala a Marie Claire sobre a volta ao mundo com Levante – filme nacional premiado e protagonizado por ela –, autoconhecimento e carreira internacional: ‘Brasil limita muito as possibilidades de ser uma atriz negra’

Por , redação Marie Claire — São Paulo (SP)


Ayomi Domenica fala de autoconhecimento, carreira internacional, aborto e filme Levante a Marie Claire — Foto: Carine Wallauer

Aos nove anos, Ayomi Domenica se viu diante de uma encruzilhada. Precisou optar entre a Igreja Adventista, que começou a frequentar por vontade própria, ou o curso de teatro que fazia aos sábados no Centro Cultural Monte Azul, na comunidade de mesmo nome em São Paulo. "No teatro eu era livre. Me sentia à vontade. Podia cair no chão, rir, chorar. Ao contrário do que eu sentia na igreja." Escolheu a segunda opção e, anos depois, o candomblé. Comunicou para a mãe, a advogada e empresária Eliane Dias, assim: "Quero viver a minha vida."

Na época, nem ela sabia o que isso significava. “O que uma criança de nove anos sabe sobre viver a vida?”, lembra, aos risos, ao receber Marie Claire no apartamento onde vive na Vila das Belezas, bairro no Sudoeste da capital paulista. Hoje, ela sabe mais, mas pouco – "e que bom". Para a atriz de 24 anos, a ignorância é mesmo uma bênção – não pelo comodismo da inércia, mas pela possibilidade de movimento. “Não saber me desafia, me tira do conforto. Quando a gente já sabe, paralisa, e isso é um veneno na minha vida. Ter curiosidade é um antídoto para a minha ansiedade.”

Com trabalhos como a série 3% e o filme Na Quebrada, além de montagens do Teatro Oficina no currículo (só neste mês, estrela três peças), sua trajetória alçou um voo promissor com o filme Levante, reverenciado no mundo todo ao retratar as angústias de uma jovem que decide acabar com uma gravidez indesejada no Brasil, onde o aborto é ilegal – salvo casos de estupro, anencefalia fetal e risco de vida da pessoa gestante.

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O filme nacional, dirigido por Lillah Halla, marca a primeira protagonista de Ayomi no audiovisual: Sofia, a jogadora de vôlei de 17 anos que descobre estar grávida em um momento decisivo da carreira. A atuação visceral de Ayomi consegue humanizar as agruras às quais mulheres e pessoas capazes de gestar são submetidas ao querer abortar – um retrato que passa pela violência médica à perseguição de grupos religiosos que tentam dissuadi-las da intenção.

O longa foi exibido no Festival do Rio, no Festival Internacional de Cinema de Rotterdam, na Holanda, e no Festival de Cannes, na França – onde foi premiado pela Federação Internacional de Críticos de Cinema. Dos 30 prêmios conquistados internacionalmente, dois foram pela atuação de Ayomi, no FestCine Aruanda e no Braunschweig International Film Festival, na Alemanha.

Essa volta ao mundo não só foi um “bálsamo na autoestima”, como uma validação importante da competência de seu trabalho – Ayomi está deslumbrante no filme. “Acredito que as pessoas me olham mais com dúvida do que com certezas”, diz, seja por ser uma mulher preta, seja por ser vista como uma “nepo baby” – além de Eliane Dias, ela é filha do rapper, comunicador e empresário Mano Brown.

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Se eu cair, levanto

Ayomi Domenica fala de autoconhecimento, carreira internacional, aborto e filme Levante a Marie Claire — Foto: Carine Wallauer

O filme chega a um momento pulsante, ainda que paradoxal, para a conversa sobre direitos humanos no país. No último ano, vimos o Supremo Tribunal Federal (STF) dar seu primeiro voto para descriminalizar o aborto até a 12ª semana, enquanto que, em 2024, investidas como a do Conselho Federal de Medicina (CFM), que tenta travar a realização de abortos legais acima da 22ª semana, que proibiu médicos de realizar assistolia fetal. Isso sem contar a disputa ideológica constante em torno do tema nas esferas sociais e políticas.

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“Muitas mulheres quiseram se abrir com a gente para falar das experiências que viveram, o que foi muito valioso. O filme virou um espaço de acolhimento”, diz Ayomi, que a vida inteira teve medo de viver o que retrata com Sofia.

“Tive muito medo de engravidar na adolescência porque pensava a quem eu deveria recorrer e como fazer para abortar. Nunca precisei fazer, ainda bem, porque todas as pessoas com quem falei sobre aborto tiveram experiências traumáticas. Não precisaria ser assim. Se tivéssemos políticas em relação a isso, a relação do aborto com a culpa, crime e punição divina mudaria muito”, reflete.

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A atriz Ayomi Domenica em frente a parte da vasta coleção de discos que divide com o pai, o rapper e empresário Mano Brown — Foto: Carine Wallauer

Foi também com Levante que ela mudou seu nome artístico de Domenica Dias para Ayomi Domenica – ou seja, descartou o sobrenome para usar seu nome composto. Por muito tempo, renegou o primeiro nome. Foi podada de sentir a potência que ele carrega. Em iorubá, Ayomi é “a que traz felicidade”. “Sofri bullying na escola e não entendia a origem dele. Hoje vejo como um nome único. Talvez o sobrenome nem seja tão importante assim. Muitos deles não significam nada sobre as pessoas negras, mas falam de uma história muito recente que não me interessa”, reflete.

Mudou o “novo” nome em tempo de ser inserida no circuito mundial, onde conheceu muita gente e outras formas de fazer filmes. Foi cativada, sobretudo, pelo cinema latino-americano, de quem deseja se aproximar. “Percebi que se o Brasil não me quiser tanto assim, posso querer mais do que o Brasil.” O motivo pelo qual diz isso é por enxergar a falta de oportunidades para mulheres negras no audiovisual. E mais: o incentivo de criar uma lógica de competitividade entre elas. “

“O Brasil limita muito as possibilidades de ser uma atriz negra. Se escreve pouca coisa à altura das nossas experiências, tem muito estereótipo. Avançamos, mas quero que isso melhore mais e todas nós possamos caber. Quero ter força e condição de criar minhas próprias oportunidades, mas quero que os espaços também me acolham. Acho que essa também é a graça da vida”, diz.

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