Festival Mina Marie Claire

Por Gui Takahashi — do Festival Mina Marie Claire em São Paulo

"Oie, eu sou a Gui Takahashi e sou uma mulher trans. E sempre afirmo isso porque essa identidade de gênero me é muito cara. Seja por todos os preços emocionais que já tive que bancar, pelos lugares sociais que eu tive que batalhar, pelo valor que ser quem sou tem pra mim mesma e até cara, pelo valor monetário de todas maquiagens, roupas, terapia, hormônios, que só Deus e a Nubank sabem porque nem eu tenho coragem de ver minha fatura de cartão no final do mês.

Bom, hoje, me pediram pra falar sobre 'padrão'. Essa palavra masculina que por si só é forte porque remonta a ideia de norma, de regra. A sonoridade também lembra algo como vindo de 'pai', de 'patrão', como uma ordem patriarcal pra se manter dentro dessa expectativa. E ser uma mulher trans é inerentemente romper com isso.

Diferente de muitas meninas trans, eu não me senti sempre assim. Acho que fui sendo empurrada às margens dos ideais normativos de masculinidade e me deslocando de não-lugar a não-lugar até me encontrar. Então, por exemplo, quando hoje a gente pensa na condensação dessa ideia de uma pessoa padrão, ela vai estar em um homem heterossexual, cisgênero e branco.

Porque as nossas estruturas sociais estão alicerçadas para o benefício e serviço desses indivíduos. Mas a Gui criancinha já não fazia parte porque era diferente na escola. Meus coleguinhas de classe com toda a 'pureza infantil' esticavam os próprios olhos pra mim e diziam 'Arigatô, xixi e cocô. Japonês da cara chata, come queijo com barata'.

Isso gerou uma repulsa pela minha própria identidade racial e ancestralidade porque o melhor jeito de se sobreviver no ensino fundamental era demonstrando que eu fazia parte da norma padrão, que eu não tinha sotaque estranho, que eu não comia peixe cru todos os dias. O hype de achar chique comer sashimi, o peixe cru que todo mundo me fazia cara de vômito, veio só depois. A minha cor amarela e a minha cultura não eram padrões.

Eu era péssima no futebol também. Sempre a última a ser escolhida pro time da aula de educação física. Mas ao mesmo tempo, era muito temida. Eu causava tanto pânico nos meninos que quando ia pro time, eles me instruíam com olhares desesperados dizendo 'Se a bola vier pra você, chuta pra fora! Chuta pra fora!'. E eu que preferia brincar de lojinha com as meninas, sentia que não cabia naquele padrão competitivo do futebol.

E o dia em que fui pra escola com uma lancheira azul, rosa e roxa? Menina, desobedeci a ex-ministra Damares e sofri o bullying de ser chamada de viadinho todo recreio. Afinal, eu não era padrão. Eu tava mais pra uma criança viada, o que na época nem meme era.

Entendendo que estava completamente fora dos padrões que esperavam de mim, eu logo me fechei. Virei um menino nerd, introspectivo, tímido e que se reprimia sexualmente.

Eu tinha medo de negar o padrão heteronormativo tanto na escola, como em casa. Mas nosso inconsciente sempre acha uma fresta pra escorregar e mesmo eu querendo viver num monastério, começaram a me achar com trejeitos de bichinha.

Um professor de educação física achou que seria de bom tom olhar pra mim e fazer a piada 'Ah, você cortou o cabelo? Quando você pediu o corte, disse capricha. E o barbeiro entendeu pra bicha?'. Com esse aval de um adulto em posição de poder, o bullying me engoliu viva. A minha falta de masculinidade não era padrão.

Minha mãe, fruto daquela geração dela, chegou um dia até a me dar dicas. Ela, mulher cis, me recomendou performar mais masculinidade andando de pernas mais abertas, evitando cruzar as pernas na hora de sentar e eventualmente, coçando o saco. De fato, a psicopedagogia adolescente nos anos 90 era um primor. A minha não-performance de masculinidade não era padrão.

Mais uns anos se passaram e as minhas tentativas frustradas de satisfazer a expectativa familiar e social só se empilhavam. O padrão ao qual eu deveria corresponder ultrapassava aquela masculinidade com urticária no testículo.

Também era esperado que eu tivesse uma boa faculdade pra ter uma boa renda, pra ter como prover, pra ter uma esposa, para ter filhos, pra ter uma família, pra ter o carro do ano na garagem e 2 golden retrievers no quintal. Então, mesmo querendo cursar moda, me formei em direito por pressão familiar e hoje tenho uma OAB suspensa.

No meio do caminho tive um distúrbio alimentar e fui perder o BV e a virgindade aos 21 anos de idade e então, saí do armário. Aqui, mencionei a minha idade pra sinalizar como minha sexualidade tinha ficado paralisada. Enquanto minhas amigas beijaram aos 12, 13 anos, levei quase uma década a mais.

Gui Takahashi no Festival Mina Marie Claire em São Paulo — Foto: Carine Wallauer
Gui Takahashi no Festival Mina Marie Claire em São Paulo — Foto: Carine Wallauer

Aí você deve pensar 'Ah, mas tudo se resolveu, porque a Gui passou a fazer parte do vale do arco-íris gay'. Mas é aí que me enganei e que você se engana. A comunidade gay ainda é bastante apegada ao ideal de padrão a que ela também foi submetida. Ou seja, o gay branco, malhado, erudito, com camiseta Armani Exchange justa, clareamento dental, maxilar quadrado e que não dá pinta porque parece um hétero, é o que mais se dá bem. Eu, que nem queria lembrar que tinha um saco pra coçar, que me maquiava escondida, que era fashionista e sabia o nome de todos os estilistas como se tivesse decorado os jogadores do Paris Saint German, nunca pegava um bêbado no final da balada.

Uma vez, fui pra um date de Tinder e o lugar pra onde o cara me levou foi o carro dele porque não queria ser visto comigo em lugares públicos. Mesmo assim, a gente se beijou, mas ele me olhou e falou 'Você é legal, mas usa maquiagem demais. Precisa disso?'.

E assim como a minha mãe, que dizia 'tudo bem você ser gay, mas precisa se maquiar?' aquela dinâmica era condicional demais. Se antes eu percebia que não era padrão por ter olhos puxados, a cara chata e supostamente, comer queijo com barata, agora era a maquiagem, a falta de musculatura, de pelos corporais, barba, virilidade, estatura, que já é um estereótipo asiático considerado emasculado mas que em mim era flagrante demais.

Meu índice de fuckability, termo cunhado pela filósofa Amia Srinivasan, que escreveu Direito ao Sexo, era muito, mas muito baixo. Aliás, esse termo, 'índice de fuckability', demonstra que alguns corpos político-sociais com marcadores de raça, gênero, expressões de sexualidade, têm menos direito ao sexo, ao amor e outras relações.

Bom, há uns XXX anos atrás, junto com algumas leituras acadêmicas sobre teoria queer, gênero, identidade, toda minha terapia e um retorno de saturno, me percebi uma pessoa não-binária.

Aí, sim, estive fora de qualquer padrão, já que nem o masculino e nem o feminino me alcançavam. E esse foi um dos pontos mais distantes que cheguei do padrão, a ponto de me achar invisível. É onde ninguém me acessava porque mal me compreendiam. Nessa época, fui proibida de provar uma roupa em um shopping porque na loja só tinham provadores femininos.

Como eu tinha deixado o cabelo crescer, comecei a notar que as pessoas na rua automaticamente me atribuíam o gênero feminino. Portanto, as opressões sociais que passei a sofrer também se tornaram mais do universo feminino. Comecei a me entender, finalmente, como uma mulher trans. O medo de levar uma lampadada na rua por ser gay, virou medo de ser estuprada. O medo de ser rejeitada num date dentro de um carro, virou medo de ser morta e jogada na marginal.

Mas olha só que bizarro. Se antes, meu índice de fuckability era baixo, agora, ele estava mais alto do que nunca. Os homens começaram a me querer loucamente porque eu tinha virado um fetiche duplo. Tanto por ser travesti, mas também por ser asiática.

Se antes, a minha raça era motivo de eu ser preterida por ser vista como menos masculina, agora, eu tinha alcançado o imaginário heterossexual ocidental como a gueixa submissa, passiva, servil, calada e exótica.

Mas um corpo tão divergente da norma, tão rebelde, que se autodetermina e é fora do padrão, como o meu, é tão disruptivo com as regras sociais que só tem lugar pra ser objetificado e desprezado.

Se antes meu direito ao sexo era muito restrito, agora o índice de fuckability tinha melhorado, mas inversamente proporcional ao índice de lovability, sem chance nenhuma pro afeto e pro amor - apenas pra ser usada e descartada.

Outra lógica que mudou foi a de então começar a atender o padrão de feminilidade vigente, que remonta o corpo cisgênero de mulher branca, junto com toda sua pressão estética. Mas aqui é importante dizer que se mulheres trans, como eu, perseguem esse ideal do padrão de feminilidade não é só porque o mundo comprou a ideia publicitária do que é ser mulher, mas porque isso também nos garante maior segurança de violências diárias, que vão desde ter nossos pronomes respeitados sem ninguém vir me chamar de senhor, até não ser perseguida e atacada na rua por ser travesti.

O que a gente costuma chamar de passabilidade, que é se passar como uma pessoa cis, nos protege de abuso, agressões, violências e até da morte. Não é só pra dar close de bonita. E nessa minha caminhada de vida, tenho percebido, cada vez mais, que existe um teto do qual talvez eu nunca passe pra alcançar o amor romântico. Noto que não importa a pele lisa, o cabelo escovado, a maquiagem impecável, a bolsa de grife, o sucesso profissional, em algum nível ou vários, eu vou seguir sendo rejeitada por não ser padrão.

Mas a boa notícia é que mesmo fora de muitas estruturas sociais, me encontrei, encontrei a Gui que sou hoje. Porque ser de verdade, de corpo e alma, é libertador. E isso me faz ser muito mais feliz do que já fui um dia.

E, por isso, deixo aqui a minha provocação e convite a vocês: vamos alargar os espaços pra que a gente também consiga conviver, aceitar e amar pessoas diversas, divergentes, pra quebrar esse contrato social invisível que ninguém assinou, mas todo mundo segue que nos tanto faz sofrer que é a ideia do padrão.

Seja o padrão de corpo, o padrão estético, o padrão racial, o padrão de beleza. Todos eles são uma ideia ilusória que mesmo quem é pertencente não se sente assim e isso só nos tira a saúde mental e física."

O Festival Marie Claire é um evento da Marie Claire que se uniu a outra plataforma de conteúdo, a Mina Bem-Estar, para falar sobre o bem-estar das mulheres. O evento conta com apoio de AdvaTx, Clear, Hospital Israelita Albert Einstein, Sanofi e Bal Harbour e a parceria de Magalam, Domani e DoTerra.

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