Eu, Leitora

Por Liliam Altuntas Em Depoimento a Jaquelini Cornachioni

“Nasci em Recife e fui criada em um bairro chamado Cabanga. A minha infância não foi fácil. Ainda criança, fui abusada sexualmente pelo meu tio-avô. Os abusos eram constantes e preferia estar na rua do que dentro de casa. Então, aos 8 anos, passava muito tempo vagando. Um dia, fui abordada por um casal. Ambos me elogiaram, questionando o motivo de uma menina tão nova estar sozinha. Como queria fugir daquela violência, disse que não tinha família. Assim, eles me levaram.

De início, foi ótimo. Ela me vestiu, alimentou, cuidou do meu cabelo. A minha família nunca foi afetuosa. Então, quando ganhei carinho, fiquei feliz. Dias depois, ela me levou para Fortaleza e o pesadelo começou.

Lembro bem daquele lugar: existia uma casa na frente, que pertencia a uma senhora. Já na parte de trás do terreno, em um local escondido pelas árvores e animais, funcionava um prostíbulo. Conheci muitas crianças com a mesma realidade que a minha. Frequentemente, apareciam homens de todos os tipos: gringos, turistas, padres, políticos e policiais. Grande parte das crianças que eram obrigadas a se prostituir, viviam nas ruas, totalmente invisibilizadas.

Naquela casa, se você fosse rebelde, poderia até perder a vida, como já vi acontecer algumas vezes. O jeito era sobreviver e “aceitar” os pedidos que faziam. Para aguentar tudo o que acontecia, a senhora fornecia substâncias ilícitas. Eram muitos homens por dia e a dor se tornava insuportável.

Pelo meu comportamento exemplar, ganhei a confiança dos donos, que me deixaram ir ao banco depositar o dinheiro do prostíbulo. Eram maços enormes. Nas primeiras vezes, senti que estava sendo observada, mas quando notei que estava sozinha de fato, peguei uma pequena parte do dinheiro e fugi.

Voltei para Recife e fui à casa da minha família. Na minha cabeça, pensava que era melhor ser estuprada por um homem só do que por vários. Quando se cresce na violência, achamos normais situações absurdas. Esse era um pensamento cruel para uma criança.

Enquanto toda essa história acontecia, entre o prostíbulo e o retorno para casa, anos se passaram. Aos 14, já era viciada em drogas. Quando podia, trocava substâncias por sexo, algo natural nesse mundo. Novamente nas ruas, tive a infelicidade de esbarrar com o mesmo capanga que, aos oito, me levou para aquela casa. Ele me pegou de volta, e disse: ‘Só não dou a sua carcaça para os porcos comerem, porque as pessoas pagam pelo o que você tem dentro’. No caso, meus órgãos. Outro pesadelo começou.

Fui obrigada a tirar o passaporte e, em seguida, me mandaram para a Alemanha. Nessa viagem, tinha uma menina que chorava muito. Eu estava tensa, mas tenho a mania de rir quando sinto medo. Nos colocaram em dois grupos diferentes dentro de uma sala: um com pessoas para prostituição e outro de tráfico de órgãos. Na hora que fizemos uma fila, me trocaram de lado. Um homem veio até mim e sussurrou: ‘Te salvei’. Entendi depois que poderia ter morrido. Nunca mais vi as pessoas que estavam na fila de tráfico de órgãos.

Na Alemanha, os clientes alugavam as meninas por dias ou semanas. Já cansada dessa situação, acabei me jogando do sétimo andar enquanto estava no apartamento de um cliente. Ainda tenho cicatrizes. Quando acordei, o primeiro pensamento foi: ‘Sou tão ruim, acho que nem Deus ou o inferno me quer’.

A polícia ligou para a minha família, que não fez questão de me ter de volta. Fiquei na Alemanha, em uma casa de proteção e, sem opção após sair de lá, caí de novo na prostituição até os 19 anos. Costumo dizer que a prostituição é uma bomba relógio: essa situação te consome e, de alguma forma, você explode.

Depois da passagem pela casa de proteção, conheci o pai da minha filha, Janaína, que hoje tem 26 anos. Ele também era viciado em drogas e o relacionamento não deu certo. Janaina teve alguns ataques epiléticos quando bebê devido às drogas que eu ingeri na gestação. Ao levá-la ao hospital, conheci meu primeiro marido, um turco. Naquela hora, acreditei que tudo daria certo.

Nessa época, não contava aos outros que era prostituta. Dizia que trabalhava como enfermeira. Enquanto isso, o cafetão me ameaçava, alegando que eu tinha uma dívida. Se ele me chamasse, era forçada a ir. Já ouvi até ameaças usando o nome da minha filha. Em 2003, precisei fugir do meu marido, que era abusivo e violento.

Depois que me separei, uma amiga comentou sobre um restaurante na Itália, que tinha um quartinho onde eu poderia ficar enquanto trabalhava no local. Ela me passou o email, mas acabei errando alguns números e a mensagem chegou para outro homem com o mesmo nome: Claudio. Descobri algum tempo depois esse erro, mas estávamos conversando todos os dias e nos apegamos. Futuramente, ele virou meu marido e tivemos filhos juntos. Contei tudo o que já tinha acontecido na minha vida, e ele aceitou minha história.

Na Itália, não fui ao restaurante, mas consegui um trabalho de assistência ao cliente. Foi em 2006, enquanto estava no ponto de ônibus, que a minha vida deu uma reviravolta. Ali na frente, uma mulher brasileira passou falando alto, pedindo por comida típica do Brasil. Comentei que poderia fazer uma quentinha. Até hoje não entendo por qual motivo tomei essa atitude. Ela me deu 100 euros, o endereço da casa em que morava, e foi embora

Comprei os ingredientes, fiz a quentinha e levei. Ela era prostituta, e morava com outras mulheres. Alguns homens famosos frequentavam o local e davam festas. Em uma dessas vezes, um rapaz conhecido, que não citarei o nome, experimentou e amou o tempero. Desde então, por influência dele, passei a fazer eventos. Todos já me chamavam de Liliam Buffet.

Essa virada na minha vida aconteceu de forma repentina, mas deu certo. O auge foi quando fiz um bolo de prestígio para a Lady Gaga. Preparei o doce sem saber para quem era. Ela chegou a postar uma foto provando, elogiou, e deu uma gorjeta de 100 euros. Isso aconteceu em 2013, a Lady Gaga estava no auge. Antes disso, já havia feito doces para o jogador Felipe Melo e até para Cristiano Ronaldo e sua família.

Ainda em 2013, ganhei um prêmio de melhor empresária estrangeira da Itália, além de ser condecorada pelo prefeito de Turim e pela ministra italiana da Imigração. Aí pronto, comecei a ser reconhecida, dei algumas entrevistas em sites e canais brasileiros e criei coragem para contar a minha história sem medo. Sou uma sobrevivente e precisava falar. Ao mesmo tempo, meu buffet ganhou um espaço físico e eu fazia todos os tipos de eventos, de festas à casamentos.

Lilian Altuntas mora na Itália, onde fez sucesso com o buffet de comida brasileira — Foto: Acervo Pessoal
Lilian Altuntas mora na Itália, onde fez sucesso com o buffet de comida brasileira — Foto: Acervo Pessoal

Depois de longos anos, durante a pandemia, precisei me reinventar. O meu casamento acabou e passei a trabalhar apenas com encomendas, no formato home office. No tempo livre, dou cursos de comida brasileira. As encomendas de bolos e comida brasileira nunca pararam de chegar. Mas outra situação incrível aconteceu na minha vida: voltei a estudar. Estou em uma das escolas mais difíceis da Itália e tiro boas notas. Passei a vida inteira me achando incapaz, mas não era verdade. Enfrentei episódios de racismo, por ser uma mulher negra, e já ouvi muitas vezes que sou velha demais para a escola, mas não me importo com críticas.

Quero cursar marketing para reabrir o espaço físico de trabalho e administrá-lo da melhor forma. Em 2025, terei o meu diploma e o objetivo é ingressar em uma faculdade de direito para ajudar mulheres que passam pelo mesmo que eu. Hoje, faço terapia, estudo, tirei carteira de motorista, mas é na escola que me sinto livre como nunca antes. Educação transforma. Também faço parte da Associação de Resistência Feminista da Itália, onde ajudamos mulheres em situação de vulnerabilidade, que estão desamparadas nas ruas.

Falar é meu modo de resistência. Por qual motivo deveria me calar? Sobrevivi e sou a prova de que é possível. Eu era uma criança que vivia na rua, fui obrigada a me prostituir, passei fome, me viciei em drogas, me tornei mais uma vítima de tráfico de órgãos: quem diria que chegaria até aqui? Venci, quero que outras mulheres tenham a mesma chance. E é só o começo.”

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