Cultura

Por Paola Deodoro


Conceição Evaristo — Foto: Larissa Kreili, MBGS.CC
Conceição Evaristo — Foto: Larissa Kreili, MBGS.CC

Entrevistar uma poeta como Conceição Evaristo �� um desafio em tantas dimensões que parece intransponível. Começando que a pesquisa para criar a pauta é muito vasta e parece um universo de hiperlinks, com referências de vida que se conectam a suas obras, já clássicas, em uma profundidade insaciável. Mas bastam os primeiros instantes da ligação em videochamada, com a imagem doce de uma das principais intelectuais do Brasil ajeitando a câmera em sua direção, para entender que não há roteiro possível que abarque sua história.

Maria da Conceição Evaristo de Brito, mineira, nascida na favela do Pindura Saia, em Belo Horizonte há 77 anos, tem, além do dom de escrever, o de fluir. Suas respostas são sempre acompanhadas de memórias e algum ensinamento. As mais de duas horas de entrevista tratam da vida de uma mulher preta, periférica, de origem humilde, cheia de desafios e que nunca se cansou de olhar o mundo com afeto e generosidade. Mas a conversa vai além.

Conceição Evaristo — Foto: Larissa Kreili (MBGS.CC)
Conceição Evaristo — Foto: Larissa Kreili (MBGS.CC)

De quem tem vida e ofício tão entrelaçados, se retroalimentando, é de se esperar que o resultado da escrita seja duro, quase feroz. As histórias até são, mas o olhar que repousa sobre elas, não. Conceição teve, de fato, uma vida desafiadora, com privações na infância pobre, uma filha com deficiência intelectual e a viuvez precoce de um grande amor – ela tinha 43 na ocasião da morte. Mas tudo veio sobre uma base fortalecida com empatia e acolhimento. Ela é puro amor. E o utiliza como ingrediente-coringa de suas produções.

Até porque a equação experiências de vida, mais o olhar atento sobre o mundo, mais a sensibilidade para perceber nuances, mais o talento acima da média para se expressar é tão poderosa que batiza um estilo que marca uma geração da literatura brasileira: a escrevivência. “Sempre fui estimulada a prestar atenção na realidade, observar tudo com senso crítico. Foi o aprofundar de alguma coisa que eu já tinha em mim, desde criança, meio que intuitivamente. Fui levando a vida dessa forma, e também a minha produção de escrita. E comecei a trabalhar em um conceito que nem sabia que estava criando”, ela analisa.

Este texto de Trajetórias é um mergulho na história e no legado de uma mulher que retrata seu tempo. E ainda pensa ferramentas para garantir que suas sementes floresçam no futuro. “Precisamos construir novos quilombos, espaços sociais para que a gente possa se afirmar.”

Marie Claire A escrevivência, como o nome apresenta, se baseia em referências. Quando percebeu que a experiência seria capaz de gerar um estilo de escrita?

Conceição Evaristo Olha, eu poderia dizer que no primeiro momento isso não chega a ser bem uma percepção. A escrita é uma forma de dizer, uma forma da pessoa se revelar. Se revela ou se esconde, né? O que está no inconsciente pode não aflorar na escrita pelo desejo de continuar escondido. Mas tem um momento marcante para mim, no final do primeiro ciclo escolar. Estava na quarta série, mas já tinha uns 14 anos, porque eu interrompia muito, parava para trabalhar e quando voltava, reprovava em matemática. E a cada reprovação, tinha medo de voltar, ficava afastada um tempo. Mas então no 4º ano, tive uma professora de português muito, mas muito boa, e toda semana ela pedia para a gente escrever sobre qualquer fato da vida. Foi quando fiz “Samba-Favela”, uma crônica sobre o cotidiano da favela. Esse foi o primeiro texto meu que pode se encaixar no conceito de escrevivência. A professora ficou impressionada e publicou em um jornal de Belo Horizonte que se chamava Diário Católico, o que, inclusive, me rendeu uma bolsa no Colégio Assunção, uma escola da elite mineira. Então, voltando ao texto, era uma realidade que eu vivia e que já contaminava profundamente a minha escrita. Eu era muito nova, mas ali também já tinha a minha veia poética. Sempre consegui lidar com a realidade, talvez por isso as pessoas gostem do meu texto, tem sempre realidade ali.

Samba-Favela, primeiro texto de escrevivência de Conceição Evaristo, aos 14 anos — Foto: Reprodução
Samba-Favela, primeiro texto de escrevivência de Conceição Evaristo, aos 14 anos — Foto: Reprodução

MC Uma realidade dura. Você viveu muitas privações na infância, não é?

CE Sim. Essa realidade muitas vezes é violenta, até. Mas o jogo que eu faço com as palavras, por mais doloroso que seja o texto, que seja o conteúdo, ele acaba ganhando uma certa leveza. Já em Samba-Favela foi assim. Tem alguma coisa no meu jeito de observar a realidade. Eu venho do movimento operário católico, e a nossa linha de conduta era baseada em três princípios: olhar, julgar e agir. Então sempre fomos incentivados a olhar com atenção para o nosso meio, prestar atenção na realidade, por isso eu passei a observar a favela com um senso crítico. Foi o aprofundar de alguma coisa que eu já tinha em mim, desde criança, meio que intuitivamente. E fui levando a vida dessa forma, a minha produção de escrita literária. Não só o meu texto, como os de outras mulheres e homens negros. Mas principalmente das mulheres. E comecei a trabalhar em um conceito que eu nem sabia que estava criando. E aí, em 1994, na minha dissertação de mestrado, a escrevivência se transforma em uma teoria de criação de texto. Mas é normalmente assim, você usa uma teoria mesmo sem consciência, isso acontece muito conosco, negros. A nossa teoria nasce muito da prática.

MC Como faz para incluir ficção nesse gênero baseado na realidade?

CE O exercício da ficção é importante nesse processo. Como diz Drummond, ‘o poeta é um fingidor (...)’. Ainda na escola, reforcei isso. Eu era bolsista em escolas de classe alta, e sempre que precisava escrever sobre o aniversário, o presente de Natal, as férias… Eu não tinha isso na minha vida, mas na ficção eu me libertava, inventava a festa de aniversário mais bonita do mundo, a melhor viagem de férias. Eu inventava uma existência. Por isso, hoje eu acredito que a escrevivência funciona nesse lugar, nesse limite, em como a gente olha, de maneira particular, para a realidade. Sempre que falo disso lembro de uma história de duas mulheres conversando no ônibus e de repente ficaram nervosas porque viram um homem do lado de fora que já havia assaltado um ônibus em que elas estavam. Mas na ocasião o homem passou por elas e não fez nada, elas não foram assaltadas. Depois elas descobriram que foram poupadas porque ele as reconheceu de um ensaio da escola de samba. E eu ali, escutando a história toda, e pensando muito sobre essas conexões. Ali nascia Ana Davenga, que está no caderno “Olhos D’Água”. De certa forma, essa cena também me permite escrever o conto Maria, do mesmo livro. É o que observo, o que capto, o que dou a minha interpretação, por meio da minha perspectiva. Não a perspectiva de uma mulher branca da Zona Sul. É de uma mulher negra que teme, porque nós também tememos assalto, violência, bala perdida. Mas é um ponto de vista que você olha um homem desses e pensa que ele poderia ser seu irmão, seu filho, seu primo. É um olhar que julga, que cobra, mas de um outro lugar. Por isso que digo que a escrevivência não pode perder essa perspectiva. Porque o conceito nasceu de uma mulher negra, pertencente a classes populares que choca todas as intersecções.

MC Você é fruto de uma família humilde. Qual é o seu cenário de infância?

CE Minha mãe, minha tia Lia, meu tio Totó, depois meu padrasto, eram pessoas trabalhadoras, cuidadosas. A gente tinha muito pouco, morava em uma casinha de adobe. Lembro da minha mãe fazendo adobe, que é uma mistura de argila seca no sol para fazer tijolo. Era tudo frágil, escasso, a comida era sempre muito pouca. Mas engraçado que essa pobreza, e eu não tô fazendo apologia à pobreza não, eu sempre tenho muito cuidado quando falo sobre isso, mas para mim a pobreza está em um lugar de aprendizagem, e quando você vence a pobreza consegue enxergar. Era um lugar de muito afeto. O leite, por exemplo, era raríssimo, mas quando a minha mãe fazia café com leite, esquentava o leite em uma lata e sentava conosco, domingo à tarde, distribuía umas canequinhas e servia para a gente. Todos ali, sentados ao redor dela. Lembro também de ela fazer bonecas de pano com essas meias finas, ela desfiava e fazia uma boneca. Eu tive a oportunidade de morar com a minha tia Lia, na casa ao lado da minha mãe. Ela era casada com um senhor mais de idade, pedreiro, ganhava salário mínimo, e eles não tinham filhos. Minha mãe teve quatro filhas mulheres, depois conheceu o meu padrasto e teve mais cinco filhos. Eu tinha consciência que sair da casa da minha mãe era um prato de comida que sobrava por lá. E na casa da tia Lia, o básico nunca faltava. Quando tio Totó recebia o salário, ia à cidade e comprava carne para a semana inteira. Eles também criavam porcos, e era uma fartura quando matavam um. Porque se você cozinhar a carne de porco e colocar na gordura, dura seis meses. Porque, nem pensar em geladeira naquela época, né? Então, entre idas e vindas, fui morar definitivamente com minha tia aos 7. Essa mudança me deu oportunidade de estudar, muito mais do que as minhas irmãs. Tinha um quarto só meu, ficava lá quietinha, lendo. Tanto é que elas conheceram o trabalho doméstico muito novas. Eu trabalhei em casas de família – quer dizer, todas as casas são de família, né? Falando assim parece que só as casas abastadas, de pessoas brancas, são de família. Mas eu trabalhava em empregos domésticos em períodos curtos, já elas eram contínuas, dormiam no emprego. Só saí da casa dela quando fui morar no Rio de Janeiro, com 25 anos.

Conceição com sua mãe, a esqerda, e tias, em Belo Horizonte — Foto: Arquivo pessoal
Conceição com sua mãe, a esqerda, e tias, em Belo Horizonte — Foto: Arquivo pessoal

MC Como é o caminho de uma intelectual negra? O quanto ser uma mulher negra tornou a sua carreira mais complicada?

CE Uma das maiores dificuldades é sobre o modo como a sociedade brasileira enxerga as mulheres negras, de um lugar difícil de romper. É tão introjetado que precisa de uma luta interna. Quando entrei para a Faculdade de Letras, na UFRJ, em 1976, sentia como se estivesse traindo traindo minhas origens, indo para um lugar que não pertencia. Foi um conflito, porque ao mesmo tempo eu gostava muito, fiz amigos, conquistei a admiração de professores. Mas na vida acadêmica reina um sistema de exclusão enorme. Entrei para fazer francês, já tinha um conhecimento básico porque convivia com padres franceses. Mas não era o francês clássico. Quando me deparei com a alta literatura francesa, tive bastante dificuldade e insisti até não conseguir mais e mudar para português e literatura. Sabe o que a professora de francês me disse? ‘Você é inteligente, mas precisa escolher entre trabalhar ou estudar’. Então são essas dificuldades todas. A baixa estima é uma barreira gigantesca. Isso sem falar que é muito recente o fato de as mulheres negras serem vistas como intelectuais. Tem um texto da bell hooks que fala que, em contraponto da mulher negra sexualizada, tem também o estereótipo da mãe preta, que acontece muito na vida acadêmica: o colega conta histórias, divide dores, mas nunca chama para uma discussão filosófica. Fica sempre o papel de conselheira. Mas claro que existe uma evolução. Na minha infância, por exemplo, nunca pensei que uma mulher pudesse ser uma jornalista como você. É uma crença, uma construção de imaginário que não nos permite nos ver também como potência.

O que você lia na adolescência? Quais suas referências de literatura?

CE Olha, eu tive uma adolescência sem baile, sem rádio, sem cinema, sem nada. Então na minha adolescência, minha diversão era literatura. E toda minha leitura da época era de autoria branca, autores e autoras brancos. Depois de um tempo, uma das minhas tias foi trabalhar na Biblioteca Pública de Minas Gerais e me trouxe um livro de Carolina Maria de Jesus. Também foi uma época que eu li toda a obra do Jorge Amado, que era comunista, né? País do Carnaval, Capitães de Areia, li tudo. Um outro autor que me marcou muito foi José Mauro de Vasconcelos, de Meu Pé de Laranja Lima. Aí comecei a procurar toda a obra dele, que tinha uma vertente literária muito ligada ao social, e me encantei com Barro Blanco, que conta a saga dos trabalhadores de Salinas, em Macau. José Castro, com Geografia da Fome. Então eu lia muito essa vertente literária que pensava social, mas não pensava racial, apesar da obra de Jorge Amado trazer a cultura negra. Mas ainda não era o pensar da cultura negra ou pensar personagens negras como nós pensamos hoje. É um movimento recente, do ponto de vista da etnicidade. Até quando eu lia Machado de Assis não o compreendia como sujeito negro. Foi quando vim para o Rio de Janeiro que me aprofundei no movimento social e comecei a sofrer influências diretas do movimento social e descobri com bastante veemência os escritores e escritoras negras . Não só brasileiros, como também americanos. E também escritores africanos de língua portuguesa, justamente naquele momento em que as colônias estavam lutando por suas libertações. E aí nesse momento também descubro o grande poeta mineiro Adão Ventura, o qual eu já havia ouvido falar em Belo Horizonte, mas ainda não tinha lido. Um sujeito que trazia uma mensagem poética a partir de uma perspectiva negra. Eu só fui aprofundar isso no Rio de Janeiro. Aqui também retomei Carolina Maria de Jesus, que tinha lido nos anos 60 em Belo Horizonte e redescobri em 88, no Centenário da Abolição, quando também me aproximamento de vários outros escritores negros.

MC E, atualmente, o acesso à essa literatura está mais amplo…

CE Hoje essas leituras todas chegam na academia. Pesquisadores são influenciados pelo movimento social negro, pelo movimento de mulheres, pelo movimento indígena – que também tá aí com toda sua potência. Então esses novos alunos, que chegam por meio de ações afirmativas, já entraram para seus cursos exigindo essas leituras porque eles têm acesso à informação. As leis de cotas geraram uma mudança muito grande nos currículos. Acabaram dando também outros caminhos à pesquisa, apresentam novas perspectivas para a academia. O resultado hoje é uma outra história de intelectualidade na nação brasileira, com atuação importante de pessoas negras e indígenas. É reconhecer um saber ancestral, reconhecer o saber que está aí e que nós brasileiros sempre olhamos para fora e perdíamos nossas grandes potências internas, né? Principalmente as potências negras, indígenas. Poucos pensadores brancos leram Abdias do Nascimento, a inteligência brasileira só lê a inteligência brasileira a partir de uma perspectiva branca. Mas o Brasil é muito, muito mais do que o pensamento branco.

MC A sua cadeira na Academia Brasileira de Letras está cada vez mais perto?
CE
A sociedade tem um poder de incorporação, e algumas instituições vão levar ainda um certo tempo. Mas a eleição do [Ailton] Krenak foi significativa e me deixou esperançosa. Isso significa que alguns, lá dentro, pensam de forma mais apurada, no sentido de observar melhor o que está em volta. Agora não podemos esquecer que a ABL, como qualquer outra instituição brasileira, tem um histórico de pessoas brancas se mantendo nos lugares de decisão, é uma clássica instituição brasileira. Então, como tal, ela traz também essas marcas, incluindo o racismo estrutural. Mas como quem monta essas estruturas são as pessoas no comando, elas são capazes de mudar o sistema, que pode se desconstruir com sujeitos que tenham essa vontade e esse poder político. Eu tenho dito que não tenho nada contra academia. Agora, a Academia é que tem que ver qual é o meu lugar. Para mim, pessoalmente, importante não é ser a primeira. É abrir perspectiva. Se a minha candidatura não me colocou lá, ela chamou atenção para essa reflexão, de criar perspectiva para outras escritoras negras pensarem também nessa possibilidade. Ainda que não seja eu, um dia teremos uma escritora negra na ABL.

MC - Você tem recebido muitas homenagens nos últimos tempos. De prêmios literários a tema do Carnaval e musa da Banda de Ipanema. De todas elas, o que mais te toca? Qual reconhecimento você ainda espera receber?

CE Sou muito grata às homenagens que eu tenho recebido. Tenho 77 anos e a minha idade mostra muito bem como o nosso reconhecimento demora mesmo. É um tempo de construção. Essa homenagem da Banda de Ipanema, no Carnaval, por exemplo. É uma banda da zona sul do Rio de Janeiro, com a maioria de pessoas brancas, de poder aquisitivo muito bom. É uma banda que está localizada e que representa o espaço, uma área nobre do Rio de Janeiro. Então, eles escolheram homenagear uma mulher negra, de uma certa maneira fazendo uma homenagem ao povo negro brasileiro.É um passo em termos de mentalidade que essa banda dá para essa escolha. Também representa essa perspectiva atual de inclusão, para além do público LGBTQIAP+, da questão racial. Então é uma banda que assume também essa luta, e mais do que nunca, homenagear a mulher negra dá o recado da inclusão, dá um recado de uma luta também contra o racismo. Tem a ver com a liberdade nos exercícios de reivindicação. Porque o que o que a gente quer, embora o carnaval seja uma festa que permite viver uma cidadania lúdica, é também uma cidadania de resistência. Assim como as letras das escolas de samba são didáticas e nos levam a pensar na realidade brasileira, é um espaço de trazer determinadas questões de poder e justiça. Então eu acho que uma homenagem para uma mulher negra em uma festa popular possibilita todas essas reflexões. Porque a gente não quer só carnaval, a gente não quer essa inclusão só no carnaval, a gente quer que as pessoas não habitantes da zona sul possam transitar ali sem serem vistos como pessoas suspeitas. A gente quer os nossos corpos negros na zona sul não só na hora que vamos trabalhar. Mas na hora de curtir a praia, ir ao teatro. Quero olhar o mar da zona sul. Deixei lá o morro do Cantagalo, atravessar aquelas avenidas, cortar Ipanema do princípio ao fim, sem ser visto como um corpo suspeito.

MC Você é uma mãe atípica, ficou viúva cedo, cuidou da sua filha sozinha. Como dar conta de tudo, com uma carreira importante em ascensão?

CE Realmente, quando Osvaldo faleceu [em 1989] praticamente fiquei sozinha com a Ainá. Algumas pessoas me ajudaram emocionalmente, ficaram por perto, me deram suporte. Mas uma das primeiras coisas que fiz quando ele faleceu foi voltar a estudar. No ano seguinte comecei na pós-graduação na UERJ – sempre levando minha menina. Não podia pagar ninguém para cuidar dela, então ela ficava sentada no corredor da universidade e eu sentava na porta para ficar olhando. Em uma outra fase eu calculava o tempo de ela ficar sozinha e ficava ligando para a casa do orelhão. Não foi fácil, mas o que me sustentou emocionalmente nesse período foi ela. Se não tivesse minha filha, teria desistido da vida. Sou uma mulher com uma grande história de amor, de cumplicidade, de luta e de alegria muito grande. Então, quando ele faleceu, tive uma sensação tão estranha, era como traição. Como aquele homem morre de repente e nos deixa? Eu olhava para aquela menina e sofria, estava em um processo de depressão que eu nem sabia. Uma amiga tinha a chave de casa, entrava, ajeitava o que precisava, deixava comida e ia embora depois que eu e a Ainá tivéssemos adormecido. Praticamente ninguém falava nada naquela casa. Foi muito doloroso para Ainá, porque ela tinha uma linguagem, mas não tinha palavras. Então ela me abraçava e chorava, mas um choro tão profundo, tão dolorido. Ela tinha nove anos, mas com a defasagem cronológica ela tinha idade mental de uns 4 anos. Hoje mesmo, aos 42, ela é como uma menina de 17, 18 anos. Ela tinha uma perspectiva de vida curta, e o pai dela foi muito importante nesse desenvolvimento. Ele criou um mecanismo de defesa, duvidava dos diagnósticos. Diziam que ela não ia andar, e ele acreditava muito que isso ia acontecer. Ele tinha uma força espiritual que foi importante no desenvolvimento da nossa filha.

Conceição com a filha Ainá e o marido, Osvaldo Santos de Brito — Foto: Arquivo pessoal
Conceição com a filha Ainá e o marido, Osvaldo Santos de Brito — Foto: Arquivo pessoal

MC Em qual momento você acredita que está a pauta antirracista no Brasil? Essa é uma consciência que a sociedade já tem?

CE Acho que a gente precisa continuar se preocupando em não abaixar a guarda. Porque se muita gente encarar as questões raciais como moda… A moda, você sabe, passa rápido. Então a gente precisa insistir que as ações antirracistas sejam feitas por justiça e por direito. Manter pessoas negras em cargos de liderança não é bonitinho. A história da escravização perdura na sociedade. Então é uma conversa constante que precisa ser introjetada tanto por nós, negros, como pelas pessoas brancas. É uma questão de direito, não de moda, não é para empresa ficar bem nos rankings, para parecer progressista. E importante: alguns avanços não significam que a questão está resolvida. Não é porque tenho uma visibilidade como escritora que todas as mulheres negras escritoras têm. Então temos uma responsabilidade muito grande de estar sempre referendando, cuidando da comunidade. Sem sombra de dúvida, o Brasil deu um passo grande na questão da inclusão. Mas ainda há muito a se fazer. Apesar das nossas diferenças, acredito que nós, negros, precisamos estar juntos politicamente. Precisamos construir novos quilombos, espaços sociais para que a gente possa se afirmar.

MC O que que você sonha para a Casa de Escrevivência? O que está no horizonte deste seu projeto tão especial no Rio de Janeiro?

CE Eu desenhei um projeto muito grande, um projeto onde a primeira coisa é uma casa fundada, é uma casa construída com a energia da perspectiva de uma mulher negra, de uma intelectual negra. Então o que a gente pretende é primeiro ser um polo de conservação de estudos sobre a escrevivência. Temos muitas pesquisas sobre escrevivência, então isso tudo a gente pretende tornar o acervo da casa. E também é ainda uma casa popular, principalmente. No espaço que a gente tem não cabe nem um terço do material, dos romances, livros de pesquisa, teses. Grande parte é relacionada à cultura africana. Então tem um acervo muito bom de ficção, como também um acervo crítico. Queremos trabalhar com formação de professores e escritores, leituras, oficinas, contação de histórias, criar material para universidades que possam, inclusive, enviar estagiários, bancar bolsa de estudos para pesquisadores, intercâmbio entre universidades brasileiras e estrangeiras. Agora estamos com um projeto de compra de uma casa, bem ao lado da sede atual, nosso sonho de consumo. São duas casas acopladas uma na outra para que também possa ser espaço para pesquisadores que precisem de uma residência temporária. A gente também está lutando pela sede própria porque quando a gente pensa em patrimônio, normalmente a gente pensa em uma construção a partir de bens. E sempre adquiridos por homens, na maioria das vezes brancos. E na história afro-brasileira temos exemplos de mulheres que construíram seus patrimônios físicos, compravam alforrias, a liberdade de seus pares, por meio do trabalho. Então, a ideia do espaço físico tem também uma carga simbólica muito importante. E o nosso objetivo é reunir esses símbolos todos.

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