Silvia Chakian

Por Silvia Chakian

Promotora de Justiça, mestre em Direito Penal e autora do livro "A Construção dos Direitos das Mulheres"

“Talvez seja mais perigoso ser mulher do que soldado, num conflito armado”, disse o militar norte-americano Patrick Cammaert, que conquistou notoriedade pelo comando das tropas de paz da ONU durante guerras como da Bósnia-Herzegovina e as ocorridas na República do Congo.

A violação sexual de mulheres em zonas de combate tem registros antigos e persiste até hoje, como tem sido denunciado na Rússia, Ucrânia, Sudão, Myanmar, Síria, Quênia, Somália, Paquistão, Afeganistão, Equador, Venezuela, Líbano, Palestina e Israel. Abrange não somente estupro, mas também escravização sexual, casamento forçado e constrangimento à prostituição.

Apesar de facilitado pelo colapso das leis e das instituições formais que costuma ocorrer nas guerras, somado à cultura militar masculinizada, o estupro de meninas e mulheres, neste contexto, nada tem de incidental.

Ao contrário, é utilizado com fins políticos, que podem variar entre controle de agressividade de soldados ou medida de “recompensa”, com mulheres tratadas como “despojos de guerra”, mecanismo de disseminação de terror para deslocamento da população e limpeza étnica. Estão na mira, ainda, a destruição da identidade do povo inimigo e a desestabilização social, já que, em muitas sociedades atingidas pelos conflitos, mulheres acabam abandonadas à própria sorte, estigmatizadas, após serem vítimas da violência extrema.

+ Silvia Chakian: Pelo fim dos crimes sexuais

Na Primeira Guerra Mundial, militares alemães espalharam terror na invasão da Bélgica, estuprando mulheres belgas; soldados turcos estupraram armênias no genocídio de 1915; a escravidão sexual foi corrente em conflitos na Ásia, quando coreanas, filipinas, malaias, indonésias e tailandesas foram violadas pelas tropas japonesas, que também estupraram as chinesas no trágico episódio “Estupro de Nanquim” de 1937.

Os exemplos são inúmeros: há registros de violência sexual praticada por soldados alemães em campos de concentração, como Auschwitz, durante a Segunda Guerra e soldados russos que se vingaram da Alemanha nazista em ruínas estuprando mulheres alemãs, polonesas e judias.

A violência sexual também foi usada como arma de guerra pelos militares norte-americanos contra vietnamitas na guerra do Vietnã nos anos 1960; na Guerra da Independência de 1971, por soldados paquistaneses que tornaram vítimas milhares de mulheres de Bangladesh; e nos conflitos do Timor Leste e do Iraque contra o Kuwait em 1990, com a violação sendo assistida pelos maridos e filhos das vítimas. Isso sem falar dos abusos nas ditaduras militares na América Latina, nas décadas de 70 e 80, como prática de tortura.

São milhares de mulheres que sofrem essa agressão brutal. Ainda assim, a história é marcada por silêncio e tolerabilidade dos órgãos internacionais em relação ao tema, tanto que somente em 2008 as Nações Unidas reconheceram oficialmente o estupro como estratégia de guerra, tendo o Tribunal Penal Internacional proferido a primeira condenação nesse sentido apenas em 2016, sobre os conflitos na ex-Iugoslávia.

O terror envolvido no mais recente capítulo sangrento entre Israel e o Hamas chocou o mundo, provocando centenas de mortes e sequestros de reféns, incluindo mulheres. Nos vídeos divulgados, a imagem da israelense Shani Louk seminua, sendo levada na caçamba de uma caminhonete ocupada por terroristas armados, sugere que o corpo dela é visto como um território dominado.

A também israelense Noa Argamani foi separada do namorado e levada aos gritos de “Não me matem” numa moto, presa entre dois terroristas. Registros assim nos dão a certeza de que, até mesmo na barbárie da guerra, as consequências podem ser ainda mais dramáticas para meninas e mulheres, que, para além de todo sofrimento imposto à população, indistintamente, também estão sujeitas a atentados à dignidade sexual e a situações de degradação moral, traumas psicológicos, gravidez indesejada, doenças sexualmente transmissíveis.

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