Silvia Chakian

Por Silvia Chakian

Promotora de Justiça, mestre em Direito Penal e autora do livro "A Construção dos Direitos das Mulheres"


O pressuposto para qualquer gestão que se diz comprometida com a diminuição da desigualdade e violência de gênero está em reconhecer o legado histórico de discriminação contra as mulheres que por séculos atrasou seu reconhecimento como sujeito de direitos.

Nesse sentido, Grada Kilomba, ao analisar os reflexos do colonialismo em Portugal, distintos do nazismo na Alemanha, enfatiza que somente com o reconhecimento dessa desigualdade é que seria possível alcançar a vergonha e o senso de responsabilização, que são condições para a devida reparação.

Silvinha novembro — Foto: Colagem Pamella Moreno
Silvinha novembro — Foto: Colagem Pamella Moreno

É esse quadro de reprodução secular de relações desiguais de poder entre homens e mulheres, nas mais diversas esferas, que justifica a necessidade de cumprimento de uma agenda de transformações estruturais e padrões comportamentais capaz de garantir acesso aos direitos fundamentais a todas as mulheres.

Uma pauta ampla que prioriza mulheres significa não somente olhar para a maioria da população (mais de 52%), mas, principalmente, para a parte que estatisticamente mais sofre os impactos do contexto de instabilidade política e de pós--pandemia, de crise econômica e de saúde, de agravamento da fome, pobreza e desemprego, da sobrecarga das tarefas domésticas e de cuidado, além do aumento da violência.

Até mesmo quando estamos diante da piora das condições do planeta, compreendendo a destruição de matas, rios e mares; ou lidamos com a falta de saneamento básico e acesso à água potável, estudos revelam que são as mulheres, com seus filhos pequenos, os mais afetados.

A transversalidade das políticas públicas voltadas às mulheres é condição para se garantir de maneira eficaz que todas tenham acesso à autonomia econômica e ao trabalho; à educação plena; à saúde, compreendendo também os direitos sexuais e reprodutivos; a uma vida livre de violência e discriminação, inclusive a de identidade de gênero e de orientação sexual, racial, sexista, etarista ou capacitista; à participação ampla, igualitária, plural e multirracial nos espaços de poder e decisão; ao desenvolvimento social e econômico; à cultura, esporte e lazer.

Nesse aspecto, um Ministério que congrega temas como “Mulher, Família e Direitos humanos” não corresponde às necessidades de articulação e implementação das políticas públicas que, conforme dispõe a Lei Maria da Penha, devem se pautar pela perspectiva de gênero, ou seja, aquela que reconhece a vulnerabilidade histórica da mulher num país marcado pelas relações assimétricas de poder como o nosso.

Obtivemos inegáveis avanços na época em que pudemos contar com uma Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, criada em 2003 com status de Ministério, até sua extinção, em 2015. Tivemos a elaboração de três Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, com destaque para o último (2013-2015), tendo como princípios a autonomia das mulheres; a busca por igualdade; o respeito à diversidade e combate à discriminação; a laicidade do Estado; a universalidade dos serviços públicos; a participação das mulheres; e, principalmente, a transversalidade das políticas públicas, sob a coordenação e monitoramento da referida Secretaria.

Descreve o referido documento que “por meio da gestão da transversalidade é possível a reorganização de todas as políticas públicas e das instituições para incorporar a perspectiva de gênero, de modo que a ação do Estado como um todo seja a base da política para as mulheres”. E acrescenta: “Insere-se assim, no âmbito dessas políticas, o paradigma da responsabilidade compartilhada: não cabe apenas ao organismo de políticas para as mulheres promover a igualdade de gênero, mas a todos os órgãos dos três níveis federativos”.

De fato, somente com observância ao princípio da transversalidade das políticas públicas, sob a coordenação de uma Secretaria concebida na perspectiva de gênero e que respeita a laicidade do Estado, será possível garantir acesso das mulheres aos direitos fundamentais, combatendo-se a desigualdade de gênero e, via de consequência, também a violência contra elas.

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