Lúcia Monteiro

Por Lúcia Monteiro

Crítica, pesquisadora e professora de cinema da Universidade Federal Fluminense

Contos de princesas não faziam minha cabeça na infância. Tive pais que compravam calçados ortopédicos e lancheira de couro, desviavam de parques de diversão e sequer tentavam domesticar a cabeleira cacheada da filha. Na adolescência, porém, ninguém em casa resistiu às fitas VHS com a trilogia dedicada à imperatriz da Áustria.

Não eram apenas o porte, o penteado e a graça de Sissi que fascinavam, naquele colorido dos anos 1950, filmado por Ernst Marischka. Havia também a beleza sem igual da atriz Romy Schneider. E, mais importante, todo aquele romantismo –e o drama– envolvidos na trajetória da princesa da Baviera que, aos 15 anos, encanta o jovem imperador.

Por causa dela, o monarca desiste de um noivado já marcado (com a irmã mais velha de Sissi). É o início de uma história de amor com desdobramentos tristes, em meio aos severos protocolos que envolviam a família real.

Em seu filme sobre a imperatriz, que estreia nesta quinta (12), a cineasta austríaca Marie Kreutzer escolhe outro recorte temporal: concentra a narrativa na virada de 1877 para 1878, quando Elisabeth faz 40 anos. A iniciativa da produção partiu da atriz luxemburguesa Vicky Krieps, que dá corpo a uma protagonista irreverente, perturbada talvez menos com a idade –as mulheres começam a desbotar aos 40, diz a imperatriz, no filme– do que com os olhares voltados a ela, principalmente para verificar se engordou.

Dos muitos filmes e séries dedicados à vida de Sissi, "Corsage" está entre os raros com uma mulher na direção. Kreutzer se revela atenta às colheradas de sopa e às fatias de laranja que Elisabeth levava à boca enquanto os demais convivas dos banquetes se regalavam com iguarias vistosas. Com mais de 1,70 metro, a protagonista se pesava com regularidade e nunca deixou a balança marcar muito mais do que 50 quilos –às custas de dietas severas que compreendiam períodos de jejum e de uma rotina de exercícios e cavalgadas vigorosas.

O filme comporta anacronismos deliciosos, a começar pela trilha sonora, que mescla composições do século 19 com canções atuais, na voz da cantora francesa Camille ou da britânica Marianne Faithfull --a cena em que uma harpista toca "As Tears Go By", dos Rollings Stones, à noite, para uma pequena plateia de mulheres, está entre as mais bonitas. Junto com a dança final, em que ela aparece com um bigode no rosto.

Em uma das cenas mais bonitas do filme, Sissi aparece com um bigode no rosto — Foto: Divulgação
Em uma das cenas mais bonitas do filme, Sissi aparece com um bigode no rosto — Foto: Divulgação

O filme surpreende por lançar hipóteses ousadas sobre a vida da protagonista –a maior parte delas apoiada em documentos históricos. Ela se levanta da mesa no meio do jantar, deixa o ambiente mostrando o dedo médio aos convidados, encontra-se com amantes –e reclama do peso de suas longas madeixas trançadas (os penteados eram a marca registrada da imperatriz).

A principal marca de "Corsage" me parece ser a coragem de propor uma versão feminista para a trajetória de uma personagem histórica. Algo parecido com o que Céline Sciamma havia feito em "Retrato de uma Jovem em Chamas", alguns anos atrás. Vicky Krieps está magnífica como imperatriz –mas não do mesmo modo que Romy Schneider. Sua beleza se apoia menos na perfeição e nos traços infantis do que na personalidade astuta da imperatriz.

A força e a coragem da direção me fizeram escolher falar de "Corsage" nesta primeira coluna na Marie Claire. Antes de concluí-la, quero chamar a atenção para o título do filme, que designava, no século 19, o gesto de vestir o espartilho. Logo no início do filme, vemos o espartilho da protagonista sendo apertado pelas criadas, de modo que sua cintura permaneça estreitíssima –com cerca de 40 centímetros– após ter dado à luz três filhos.

Na cena anterior, Elisabeth está em uma banheira e prende a respiração por cerca de 70 segundos, uma imagem que lembra o afogamento de Ofélia, a personagem de Hamlet, e que contamina todo o filme com o temor do suicídio. A montagem não é aleatória. Os espartilhos comprimiam os pulmões, limitando a inspiração, a expiração e a própria projeção da voz.

A imperatriz veste o espartilho, que lhe dá pouco espaço para respirar — Foto: Divulgação
A imperatriz veste o espartilho, que lhe dá pouco espaço para respirar — Foto: Divulgação

Num livro lançado na França em 2020, Clara Schulmann compara os centímetros de cintura de personagens do século 19 (como Scarlett O'Hara de "E o Vento Levou...") com os modelos disponíveis no mercado hoje em dia. Como aquelas mulheres conseguiam falar, se havia espaço apenas para um fiapo de ar entrar e sair? Numa conversa à mesa com o marido, o imperador Franz Joseph, sobre as tensões dos eslavos com o Império Austro-Húngaro, ele corta-lhe a palavra, afirmando que aquele não era assunto para elas. De fato, o que se esperava de mulheres como Sissi era que fossem belas e silenciosas. Não por acaso, as vozes das mulheres se tornaram mais graves no o século 20, conta-nos Clara Schulmann.

Quando traduzi do francês para o português "Cizânias" –este é o nome do livro de Clara –, experimentei colocar minha própria voz sobre as palavras que eram dela e que se tornaram nossas. Junto das vozes de Vicky Krieps, Camille, Marianne Faithfull, formamos uma polifonia –que vai dos silêncios à histeria. O que fica de "Corsage" de mais precioso parece ser seu potencial para retratar e estimular comunidades de mulheres –como as quatro que conduzem o filme a seu final, este abertamente ficcional, em um navio que lembra o conversível azul em que as protagonistas de Thelma e Louise desaparecem.

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