Terceiro romance publicado por Graciliano Ramos, Angústia (1936) é sua obra mais ousada, vanguardista, ambiciosa, na qual levou às últimas consequências procedimentos e técnicas colocados em prática nos títulos anteriores, Caetés (1933) e S. Bernardo (1934). Novamente estamos diante de um narrador confessional em primeira pessoa que se assenhora da narrativa, fazendo com que tudo gire em torno dele, do relato de sua experiência. Mais uma vez, há a encenação do ato de escrita por parte de um protagonista anti-herói, o que resulta na chamada “construção em abismo”, em que se desdobra de modo especular a tematização do livro dentro do livro, em meio a uma prosa que procura unir introspecção e crítica social.
Angústia, no entanto, se diferencia (e muito) de sua literatura anterior, sobretudo de S. Bernardo, por um elemento-chave: a superabundância. Há aqui o privilégio para a apresentação da mente torrencial do narrador, fazendo com que se esfumacem a linearidade e objetividade. Tais elementos, por sua vez, dão lugar a digressões, repetições, entrelaçamentos de pessoas e atos vivenciados em diferentes planos e temporalidades.
Na edição recém-publicada pela Todavia, resultado de um trabalho editorial que restabelece a última vontade do escritor, é possível encontrar um prefácio com as primeiras impressões de Antonio Candido sobre o romance, que o chama de excessivo e destaca justamente esse contraste com outros livros de Graciliano.
![O escritor Graciliano Ramos: Terceira obra de sua bibliografia, "Angústia" ganha reedição pela Todavia — Foto: Evandro Teixeira/Agência O Globo](https://cdn.statically.io/img/s2-pipelinevalor.glbimg.com/Q61qffz17QQeZCKN7ncIerdxUN8=/0x73:476x501/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_b3309463db95468aa275bd532137e960/internal_photos/bs/2024/g/D/EbEX6cTg2k5OnjPT6H8w/104917143-pv-20-20foto-20evandro-20vidas-20secas-20para-20prosa-20-26-20verso-20graciliano-20ramos-206.jpg)
Com relação à trama, quem conta a própria história é o solitário Luís da Silva, um funcionário público de 35 anos, que, além de trabalhar na diretoria da Fazenda de Alagoas, escrevia artigos sob encomenda para um jornal. Originário do interior, com apenas catorze anos passa a vagar de fazenda em fazenda depois da morte do pai, até se estabelecer em Maceió, nos anos 1930. De início, vivendo numa pensão, trabalha como revisor até cavar uma posição como servidor do Estado. Tem uma vida pobremente remediada, com poucas dívidas, até conhecer Marina, sua vizinha.
Aproxima-se da moça e propõe casarem-se, entregando-lhe suas parcas economias para que ela providenciasse o enxoval. Contudo, Marina gasta o dinheiro sem cumprir o prometido e ainda se envolve com o bacharel Julião Tavares, filho de um rico comerciante, deixando-se seduzir por este, que em pouco tempo a descarta por uma nova conquista. Ela engravida do jovem abastado e faz um aborto.
Antes disso, porém, há a ruptura do relacionamento com Luís da Silva, o qual passa a nutrir impulsos assassinos que, como um cangaceiro, levam-no a perseguir e estrangular Julião Tavares, seu antagonista. Os efeitos do crime se resumem ao já estraçalhado mundo interior do protagonista: ele imagina a polícia batendo à porta, a sua prisão, porém tais eventos não chegam a acontecer.
Mas será que essa cadeia de eventos ocorreu mesmo? E acima de tudo: o assassinato seria uma ação “real”? Luís da Silva afirma que dificilmente podia “distinguir a realidade da ficção” e questiona se não estaria “tresvariando”. Estamos, desde o início, diante de um narrador não confiável, lacunoso, muitas vezes delirante. Em meio a seu crescente estado alucinatório, num mundo alucinado, desprovido de sentido, a narrativa faz adensar uma névoa de fantasia que cumpre ao leitor desvendar em meio aos desvãos do texto.
![Capa da nova edição de Angústia, de Graciliano Ramos, com ilustração do artista Gustavo Magalhães — Foto: Divulgação](https://cdn.statically.io/img/s2-pipelinevalor.glbimg.com/sI3AY21aqe_1Igx0gc7FzsHo16s=/0x0:1200x467/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_b3309463db95468aa275bd532137e960/internal_photos/bs/2024/1/k/oHXms1SqAiidgtHDhCAg/2qsoi2u7ig2q.png)
De modo cíclico, a narrativa começa trinta dias depois do estado de delírio alucinatório em que Luís da Silva mergulhou após seu derradeiro encontro com Julião Tavares, quando as escoriações nas palmas de suas mãos já estão cicatrizadas. Ele se põe a escrever a própria história, a rememorar os eventos que o levaram ao crime.
Em perspectiva mais ampla, a década de 1930 corresponde a um momento de modernização acelerada do país (industrialização, urbanização, efervescência cultural), num contexto político de transformação, polarização e opressão (Revolução de 1930, Intentona Comunista, Estado Novo). A velha ordem oligárquica colapsava, enquanto a nova ordem capitalista citadina se impunha.
Luís da Silva e Julião Tavares representariam, em certo sentido, o embate entre a oligarquia rural arruinada e empobrecida, que se reacomoda em condição inferior na cidade, e a burguesia comercial urbana, isto é, entre a lógica da tradição e a do dinheiro. O rancor, o ressentimento e o rol de humilhações sofridas pelo neto do fazendeiro arruinado, convertido em níquel social, ante o peito estufado e a opulência do filho de comerciantes endinheirados. Trata-se de crime inútil, pois a frustração e a obsessão de seu agente se amplificam: sabe-se assassino, sem deixar de ser um “níquel social”. A solução por ele perpetrada não dava conta de uma questão de ordem ampla e sistêmica. Morria o sedutor de Marina, mas não a ordem representada por ele. E a culpa agudizava.
Por fim, ainda em chave alegórica, cabe na relação entre ambos os personagens uma leitura metalinguística. Julião Tavares personificaria a literatura bacharelesca, balofa, patriótica, anterior e contemporânea a Graciliano. Por seu turno, Luís da Silva e seu mergulho introspectivo dariam corpo à aspereza e à crueza das produções dos colegas de geração do escritor que, em diretriz desmistificadora, valorizavam o relato dos fatos em oposição ao emprego de clichês, adjetivos edulcorantes, fórmulas altissonantes. Assim, entre os múltiplos impasses encarnados por Angústia, está também o poder da palavra: ao dramatizar em chave crítica mazelas individuais e coletivas, projeta-se a esperança de uma transformação desde sempre interditada.
* Thiago Mio Salla é professor da USP e responsável por organizar a nova coleção da Todavia dedicada a Graciliano Ramos. Este texto é uma versão resumida de seu prefácio na nova edição de Angústia