Recentemente, minha mulher e eu fomos convidados para o relançamento do documentário “Otto: de Trás para Diante”, dirigido por sua filha Helena e genro Marcos Ribeiro, dos quais somos amigos, mas a quem há muito não víamos pessoalmente.
Depois de anos de pandemia e, arrisco dizer, um pouco desacostumados a esse tipo de evento, fomos ansiosos e curiosos para conhecer um pouco mais desse personagem intrigante que foi Otto Lara Resende e do resultado do documentário que me parecia, no mínimo, muito arriscado.
Por sua dimensão, no sentido amplo de sua produção, conquistas e qualidades, e por seu carisma, o desafio de fazer uma obra sobre este personagem devia seria enorme, pensava eu a caminho do Belas Artes, ainda mais para sua filha e genro.
Mas o filme, simplesmente, nos maravilhou. Mais que um simples documentário, trata-se de uma pintura, um conto, uma história, uma biografia, feita com muita delicadeza e sensibilidade, na grandeza do personagem ali retratado.
O filme utiliza-se de diversas técnicas e formas para mostrar esse personagem demais interessante. Desde atuação, leituras dramáticas de livros, cartas, depoimentos, entrevistas e, principalmente, os maravilhosos e bem-humorados bilhetes. Tudo isso muito bem costurado pelas palavras e testemunhos do jornalista, crítico e amigo Humberto Werneck.
Mineiro com alma carioca e um olhar e interesse pelo mundo, Otto Lara Resende foi um pouco de tudo. Repórter, jornalista, cronista, romancista, diplomata. Otto tinha o domínio e a erudição da linguagem sem perder a sensibilidade da escrita leve e quase coloquial. Seus bilhetes, como mostrado no filme, eram poesias do cotidiano com pitadas de lições à eternidade.
Com uma capacidade inigualável de fazer amigos e se relacionar, defendia que "amizade é como esmola; pouca ou muita, não se recusa". Inspirado na melhor tradição dos grupos literários, Otto Lara Resende e seus eternos amigos criaram uma espécie de confraria, que batizou de “os quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”, e os acompanhou pela vida. Ao lado de Fernando Sabino, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos, esse grupo mineiro-carioca foi tudo aquilo que hoje quase nos falta. Inteligentes, perspicazes, humanos e bem-humorados. Testemunharam e protagonizaram várias transformações que marcaram o país nesses anos dourados, sonharam sonhos impossíveis e conviveram sempre pelo prazer de estarem juntos e com a teimosia e o desejo de construção de um país melhor.
!["Otto: De Trás p/ Diante" conta sobre a vida de Otto Lara Resende — Foto: Reprodução](https://cdn.statically.io/img/s2-pipelinevalor.glbimg.com/i5qKAWNGm5uIJYsqkWWshI0AFpQ=/0x0:807x526/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_b3309463db95468aa275bd532137e960/internal_photos/bs/2023/Q/7/dVJAUmTZGM3nrUNviiGg/whatsapp-image-2023-10-21-at-23.07.32.jpeg)
O bom humor também era um traço marcante na personalidade de Otto Lara Resende. Quando não queria conversar com ninguém ao telefone, simplesmente respondia: “Acabei de sair!”. No papel de pai, considerava-se, "modéstia à parte, uma mãe exemplar".
Otto Lara Resende convivia com o diferente, os opostos e com a pluralidade de ideias que atualmente tanto rogamos. Certamente faz uma falta tremenda no Brasil atual.
Conforme o próprio amigo Afonso Arino discursou na Academia Brasileira de Letras, “Otto Lara Resende, o incansável fazedor de amigos”, Otto foi “um grande jornalista, entrevistador de televisão, romancista, contista, cronista, escritor infatigável, dele ficará, sobretudo entre os que tiveram o privilégio de desfrutar da sua amizade e da sua companhia, a lembrança de um conversador sem igual, pela inteligência fulgurante da sua presença, espalhando ideias e frases, verdadeiras gemas preciosas, como se fossem pedras sem valor”. Difícil acrescentar melhor testemunho.
O filme também nos remete ao período áureo do jornalismo saudoso que não mais existe. De um Brasil prolífico, culturalmente rico e interessante.
Em seu discurso de posse na Academia, Otto Lara Resende falou sobre o papel do jornalista e do historiador: “Ambos debruçam-se sobre a realidade, com espírito de pesquisa, de objetividade e de fiel interpretação. A História, como o jornal, não dispensa a liberdade. Ninguém pode considerar-se livre se não houver liberdade de imprensa, porque a liberdade de imprensa acarreta, desencadeia e garante a liberdade política em toda a sua plenitude.” Feito em 1979 o discurso não poderia ser mais atual.
Segundo seu próprio depoimento, Otto entrou no “jornalismo como cachorro na igreja: achei a porta aberta”. São jornalistas, escritores e historiadores como Otto Lara Rezende, e tantos outros, que garantem o futuro de uma nação. Retratar e preservar essa história traz um valor ainda maior a esse belo e tocante documentário. Fiquei pensando na sorte que foi a porta da Igreja estar aberta.
O filme é um maravilhoso legado, fundamental para gerações atuais e futuras. Um trabalho essencial de resgate da memória e da cultura brasileira.
Finalmente, ao final da sessão, um pouco mais aliviado, ouvi de Marcos seu desejo de tentar replicar documentários similares de outros personagens de nossa literatura e de diferentes campos de nossa arte e cultura. Projeto ambicioso que envolveria resgatar e trazer à luz, literalmente, uma proposta diferente das séries que estamos acostumados a acompanhar nos diversos streamings.
Acho que a obra mais desafiadora, até pelo caráter emocional que esse filme deve ter representado, Helena e Marcos já conseguiram realizar. Espero que consigam o apoio para esse novo projeto. O difícil será encontrar um personagem tão cativante, sedutor e charmoso como foi Otto Lara Resende.
A propósito, àqueles que se interessarem, “Otto: de Trás para Diante” pode ser visto no Globoplay.
*Fernando Iunes é vice-chairman de Banking, Capital Markets e Advisory (BCMA) no Citi Brasil