Já faz mais de um ano que Annie Ernaux entrou para o clube dos vencedores do Nobel de Literatura, mas a francesa segue sob os holofotes literários. A autora, que é um sucesso de crítica e de público e se vale de um estilo que é uma espécie de autobiografia social, acaba de lançar mais um livro no Brasil, "A escrita como faca e outros textos" (Fósforo), uma reunião de textos que é um mergulho na própria carreira como escritora e inclui o discurso que proferiu na cerimônia que lhe deu o Nobel.
Ernaux não é o primeiro grande nome da literatura a publicar uma obra sobre a experiência de escrever. Milan Kundera, por exemplo, autor do clássico "A insustentável leveza do ser", lançou "A arte do romance" (Companhia das Letras) em 2016, um ensaio mais teórico sobre o gênero literário que o consagrou; Gabriel García Márquez publicou "Como contar um conto" (Casa Jorge Editorial) nos anos 1990, uma transcrição de uma oficina de roteiro que costumava dar na Escola de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, em Cuba; e Haruki Murakami tem "Romancista como vocação" (Alfaguara), de 2015.
A obra da francesa, porém, se parece mais com os outros livros que já publicou, por ser, antes de tudo, um relato pessoal. Os textos — que também incluem uma entrevista ao também escritor Frédéric-Yves Jeannet, seu conterrâneo — abrem as portas para o leitor ter acesso ao pensamento de uma escritora que mistura a própria vivência com um panorama social e político de sua época. Em "O Lugar", por exemplo, um de seus livros mais vendidos no Brasil, ela explora o abismo social que havia entre ela e o pai, uma choque de gerações entre uma filha que ascendeu pelos estudos e um pai operário. Por aqui, também já foram publicados "Os anos", "O acontecimento", "A vergonha" e "O jovem", todos pela Fósforo.
Livros como "A escrita como faca e outros textos", além disso, servem tanto a aspirantes a escritores que buscam fontes de inspiração quanto para fãs da literatura que querem saber mais da vida dos grandes escritores. E vem também para reforçar uma tendência do mercado editorial para obras de autoficção ou autobiografia. No Brasil, inclusive, têm ganhado espaço nomes como Natalia Timerman, que recentemente escreveu sobre o luto da morte do pai (Pequenas chances, pela Todavia), e José Henrique Bortoluci, que lançou "O que é meu" (Fósforo), resultado de entrevistas que fez com o pai caminhoneiro.
Confira abaixo um trecho do novo livro de Ernaux, cedido ao Pipeline pela editora Fósforo:
"Desde que aprendi a ler, os livros foram meus companheiros; a leitura, minha atividade natural fora da escola. Esse gosto foi alimentado por uma mãe que era ela mesma uma grande leitora de romances, entre um cliente e outro de sua loja, uma mãe que preferia que eu lesse em vez de costurar e tricotar. O preço alto dos livros, a suspeita que eles despertavam em minha escola religiosa tornavam-nos para mim ainda mais desejáveis. Dom Quixote, As viagens de Gulliver, Jane Eyre, contos dos Irmãos Grimm e de [Hans Christian] Andersen, David Copperfield, E o vento levou, depois Os miseráveis, As vinhas da ira, A náusea, O estrangeiro: mais que indicações vindas da escola, era o acaso que definia minhas leituras.
Decidi estudar letras para continuar na literatura, que se tornou um valor superior a todos os outros, um estilo de vida que fazia com que eu projetasse a mim mesma em um romance de Flaubert ou de Virginia Woolf e os vivesse literalmente. Uma espécie de continente que, sem me dar conta, eu contrapunha a meu meio social. E entendia a escrita apenas como a possibilidade de transfigurar o real.
Não foi a recusa de um primeiro romance por duas ou três editoras — romance cujo único mérito era a pesquisa de uma forma nova — que diminuiu meu desejo e minha altivez. Foram situações da vida em que ser mulher tinha um peso muito grande se comparado a ser homem em uma sociedade na qual os papéis eram definidos de acordo com o sexo; a contracepção, proibida, e a interrupção da gravidez, um crime. Casada e com dois filhos, um emprego de professora e o encargo da administração familiar, a cada dia eu me distanciava mais da escrita e da promessa de vingar minha raça. Não conseguia ler a parábola “Diante da lei”, em O processo, de Kafka, sem ver ali a representação de meu destino: morrer sem ter cruzado a porta que era feita só para mim, o livro que apenas eu poderia escrever.
Mas não contava com o acaso particular e histórico. A morte de um pai três dias depois de minha chegada de férias à casa dele, uma vaga de professora em uma escola na qual os alunos são oriundos de meios populares semelhantes ao meu, os movimentos globais de contestação: tantos elementos que me levaram por caminhos imprevisíveis e sensíveis para meu mundo de origem, para minha “raça”, e que deram a meu desejo de escrever um caráter de urgência secreta e absoluta. Dessa vez, não se tratava de me entregar a esse “escrever sobre nada” ilusório dos meus vinte anos, mas de mergulhar no indizível de uma memória reprimida e revelar a maneira de existir daqueles que eram próximos a mim. Escrever para entender os motivos dentro e fora de mim que tinham me distanciado de minhas origens."