Day Off
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Quando eu estava no fim da faculdade, ou no começo do doutorado, não sei bem, se começou a falar mais em globalização. Depois de anos de liberalização econômica, de desenvolvimento de novas tecnologias, de diversos movimentos que colocavam em xeque as fronteiras nacionais, o tema entrou na ordem do dia, na academia e nos jornais. Naquela época, quem era mais crítico, que geralmente estava mais à esquerda, desdenhava dos entusiastas do tema, usando expressões como “a tal da globalização”. Hoje, como o mundo dá voltas, os mais aguerridos rivais da globalização são esses misteriosos conservadores modernos, não raro em busca de bizarras conspirações.

Bom, cães ladraram e a caravana passou. Mas a globalização produziu efeitos muito maiores do que esperávamos. Para o bem e para o mal. E hoje o mundo é mais integrado em diversos aspectos, as mentalidades são mais uniformes do que por vezes gostaríamos de aceitar. Não poderia ser diferente na literatura.

Na verdade, a literatura nunca reconheceu muito a existência de fronteiras. Claro, autores tem identidade, raízes, escolas por vezes nascem em um determinado país, mas o fato é que não dá para falar, com muito rigor, em literaturas totalmente nacionais. Nos últimos anos, porém, esse processo ganhou algumas outras feições, surgiu uma muito marcada produção literária de autores emigrados, por vezes exilados, que escrevem a partir de uma perspectiva própria.

 — Foto: Pixabay
— Foto: Pixabay

Nessa literatura combinam-se o estranhamento com o novo, a relação complicada com as origens, os esforços de integração e o reconhecimento de que tudo foi, nos últimos anos, ficando cada vez mais complexo, mais interligado. O tom dos textos varia muito: por vezes ele é mais melancólico ou mais engajado, em outros casos, ele é francamente humorístico (e não dá pra não pensar, aqui, no Buda do Subúrbio, de Hanif Kureishi). Claro, existem alguns padrões locais: na Inglaterra ou na França, muitas vezes, essa literatura é produzida por emigrados das antigas colônias, nos Estados Unidos as fontes do exílio estão ligadas à forma pela qual aquele país atraiu emigrantes. De qualquer forma, existem alguns traços comuns.

Fui apresentado a essa literatura pela leitura de dois belos livros de contas de uma autora nascida na Inglaterra, naturalizada americana, mas de origem indiana, chamada Jhumpa Lahiri – Interpreter of Maladies e Unaccustomed Eart. Ambos também foram traduzidos para o português. Não li mais nada dela por um bom tempo, mas recentemente fui surpreendido por notícias curiosas – que levam a experiência do desterro (e a da escrita, pra falar a verdade) a novos horizontes.

Quando jovem, Jhumpa foi a passeio pra Itália e ficou fascinada. Decidiu aprender a língua. Mais de 20 anos depois, mudou-se para Roma com a família, para uma imersão e optou por passar a escrever apenas em italiano. Já em italiano ela escreveu um livro fascinante, In Altre Parole (publicado em inglês, numa edição bilíngue, como In Other Words), em que relata essa experiência. Deixar o universo linguístico em que você transita para mergulhar assim profundamente em um novo idioma, com outras estruturas, é bem mais que um desafio meramente formal. Não é como desligar uma chave e ligar outra, muitas outras coisas mudam. Pra nós, não escritores, isso talvez fique menos claro, mas pra quem é do ramo essas diferenças são mais evidentes.

Na verdade, o livro não é apenas um grande ensaio. Nele aparecem vários temas. A autora fala da sua infância, em que ela já se repartia entre o bengali, que falava em casa, e o inglês, e fala das sensações que isso lhe trazia (e aqui se explora também a experiência da falta de lugar ou de estar em muitos lugares ao mesmo tempo); fala dos tropeços no novo idioma e do esforço que isso representa, até porque mudar de idioma envolve enfrentar diferenças culturais; mostra seus primeiros trabalhos em italiano; fala, de uma maneira curiosa pra mim, que sou travado nisso, da libertação de escrever em italiano (porque os idiomas em que somos criados são, também, amarras).

Não é um livro sobre política, governos chinfrins, raça, os temas polêmicos sobre os quais andei lendo ultimamente. Mas ele ilumina uma parte central e pouco comentada das nossas experiências nesse mundo com fronteiras mais porosas. E do caráter constitutivo da linguagem. Fora isso, ainda é muito gostoso de ler.

Como eu disse, usualmente não nos damos conta desses processos. Mas a leitura os ilumina de uma maneira particular. Só por isso a leitura já valeria. Mas vale a pena dar um passo a mais, testar algumas hipóteses. Algum tempo depois de In Altre Parole, Jhumpa lançou um romance escrito em italiano, com uma personagem italiana, que mora em Roma.

Essa personagem é uma mulher meio solitária, professora. Nos capítulos, sempre curtos, são descritos episódios simples do seu dia a dia e são apresentadas algumas reflexões: suas manhãs, passeios, o café que ela frequenta, jantares com amigos, festas, um flerte ou outro com um vizinho casado, a rotina do verão na cidade... comprei Whereabouts na edição americana, mais por fidelidade à autora (sim, isso existe) porque imaginei que seria chato. Mas é um livro muito bom, que traz um exercício perfeitamente bem executado em que, pela descrição dos fatos, acompanhada das reflexões e do fluxo de memórias, a personagem se revela.

E isso é muito interessante. A personagem perdeu o pai jovem, a mãe está velhinha e, por isso mesmo, ela pensa muito na vida familiar, no que a marcou. A cada vez que o tema aparece, no texto, vem alguma coisa nova, com um outro olhar, porque sempre há coisas a mastigar, raízes a remexer. Claro, essa história pessoal é também prisão e o livro mostra um processo meio tardio de individuação e de libertação, muito bem descrito.

No fim, é outra leitura muito prazerosa e que, pelo seu caráter mais reflexivo, força uma parada no nosso dia a dia de espuma, ainda que por alguns minutos. Mas, pra me manter coerente com as premissas de que parti nesse texto, é importante destacar uma outra questão, que está fora do texto. Aqui, pela primeira vez, Jhumpa não escreveu como emigrada ou como a escritora em meio a uma experiência literária (aquela de In Altre Parole).

Neste último livro, aquela experiência já se mostra bem sucedida: se me dissessem que a autora era italiana, eu acreditaria fácil. Não pelo idioma da edição original, mas pela transmutação do estilo, pela incorporação de elementos culturais que não estavam presentes antes.

Se eu tivesse uma capacidade analítica maior, certamente tiraria daí conclusões relacionadas aos movimentos culturais pelos quais passamos já há algumas décadas, com a erosão das fronteiras e aos efeitos desses movimentos para os indivíduos em diversos níveis. Tanto a obra de Jhumpa quanto a sua trajetória são extremamente contemporâneas na forma pela qual registram e exploram esses movimentos, em vários níveis. Dadas as minhas limitações, lanço apenas a provocação.

Otavio Yazbek é sócio do Yazbek Advogados

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