Já se passou mais de um ano desde que a Suprema Corte dos Estados Unidos revogou o caso Roe v. Wade, e nesse tempo, inúmeras histórias de mulheres sendo negadas cuidados médicos relacionados ao aborto, mesmo diante de ameaças à sua saúde — e até mesmo à suas vidas — vieram à tona.
Houve a mulher que passou quase uma semana na UTI depois de ter sido negado um aborto para uma gravidez inviável que a deixou séptica e, como ela descreveu, "à beira da morte". A mulher que foi recusada por médicos em Oklahoma, EUA, mesmo sabendo que tinha câncer gestacional e provavelmente a mataria.
[Nota de Marie Claire Brasil: o câncer no interior do útero é considerado gestacional se detectado durante a gravidez ou durante a lactação até um ano depois do parto]
A mãe de dois filhos de 31 anos que mora no Texas, que processou seu próprio estado para obter um aborto para uma gravidez inviável [quando não há possibilidade do bebê sobreviver] que ameaçava não apenas sua saúde, mas também sua futura fertilidade. A Suprema Corte do Texas, no final, decidiu contra a mãe, que, após várias idas à emergência, foi forçada a viajar para outro lugar para realizar o aborto.
Os abortos nesses casos são frequentemente descritos como "abortos de emergência". De alguma forma, a linguagem sugere que esses procedimentos são diferentes — talvez até mais "morais" ou "éticos" — do que um aborto obtido por uma pessoa grávida que não está enfrentando uma emergência médica, mas que simplesmente não deseja continuar grávida.
Mas agora que a Suprema Corte concordou em analisar um importante caso de aborto por medicamentos que poderia eliminar o acesso ao que é frequentemente chamado de "pílula do aborto" — medida de cuidado para aborto mais utilizada nos Estados Unidos — é preciso repetir que todo aborto é um aborto "de emergência".
E embora certamente existam situações em que um aborto precisa ser realizado com mais urgência — especificamente porque as circunstâncias são uma questão de vida ou morte —, cada vez que a alguém é negado o cuidado relacionado ao aborto, a vida que estavam vivendo ou planejavam viver é posta em perigo.
Num país que afirma defender e proteger o direito universal à "vida, liberdade e busca da felicidade", qualquer situação que deixe uma pessoa grávida necessitando de cuidados com o aborto é urgente — a impossibilidade de acessar esse cuidado, catastrófica.
De acordo com as Nações Unidas e o Direito Internacional dos Direitos Humanos, cada minuto em que um governo obriga alguém a permanecer grávida quando não deseja é uma violação dos direitos humanos. E essa violação causa danos reais e duradouros.
Quando descobri que estava grávida inesperadamente, meu namorado e eu estávamos bebendo demais e tentando lidar com uma série de problemas reais de relacionamento: infidelidade, uma incapacidade flagrante de se comunicar, problemas de confiança, explosões de raiva. Nossa decisão de interromper a gravidez foi quase imediata, como se o teste de gravidez positivo jogasse luz sobre as inúmeras razões pelas quais não poderíamos — e não deveríamos — estar juntos.
Cada segundo em que eu estava grávida sem querer sentia como um ataque à minha pessoa e uma ameaça legítima ao meu futuro. Tinha planos que não incluíam ser mãe em um ambiente prejudicial e tóxico. Sabia que não poderia ficar amarrada a esse homem pelo resto da minha vida por meio de uma criança pela qual nenhum de nós estava pronto, capaz ou disposto a cuidar.
Mas e se não tivesse dinheiro suficiente para o procedimento? E se fosse recusada por algum problema imprevisto que ainda não havia considerado? Estava ansiosa, deprimida e desesperada para encerrar a gravidez o mais rápido possível. Para mim, o aborto era uma emergência.
Felizmente, consegui ter acesso ao cuidado que não apenas queria, mas precisava. E devido à sorte de simplesmente viver em um estado que protege o acesso ao aborto, não estava mais grávida algumas semanas depois.
Faço parte de um grupo privilegiado que pode obter um aborto sem enfrentar barreiras desnecessárias e cruéis ao cuidado — um grupo que está diminuindo em um mundo pós-Roe, onde 24 estados proibiram o cuidados médicos para abortar ou têm a intenção de fazê-lo. Mais de 25 milhões de mulheres com idades entre 15 e 44 anos vivem em um estado onde existem mais restrições ao aborto do que antes da queda de Roe — cerca de duas em cada cinco mulheres nacionalmente. Agora, quase uma em cada cinco mulheres nos EUA é forçada a viajar para outro estado para realizar um aborto.
E ainda, de acordo com o estudo Turnaway realizado por pesquisadores da UC San Francisco, quando uma pessoa não consegue ter acesso a um aborto, é mais provável que ela enfrente complicações na gravidez, mantenha contato com um parceiro violento e não tenha dinheiro suficiente para cobrir despesas básicas de vida, como alimentação e moradia.
O dano psicológico de ser negado um aborto também é inegável. Conforme afirma a Associação Americana de Psicologia (APA), décadas de pesquisa mostram claramente que, quando o aborto é proibido ou dificultado de obter, a saúde mental das pessoas grávidas é prejudicada.
"Rigorosas pesquisas psicológicas de longo prazo demonstram claramente que as pessoas que são negadas abortos têm mais chances de experimentar níveis mais altos de ansiedade, menor satisfação com a vida e menor autoestima em comparação com aquelas que conseguem obter abortos", escreveu o presidente da APA, Frank C. Worrell, em um comunicado após um rascunho da decisão da Suprema Corte no caso Roe v. Wade ser vazado para a imprensa no início de 2022.
Negar a uma pessoa grávida um aborto seguro também prejudica seus membros familiares. A maioria das pessoas que buscam aborto já tem pelo menos um filho em casa — já são pais — e, de acordo com o mesmo estudo Turnaway, quando são negadas abortos, os filhos que já têm mostram pior desenvolvimento infantil do que seus colegas e têm mais probabilidade de viver abaixo da linha de pobreza.
Para as crianças de quem busca aborto, um aborto é uma emergência. Para a mulher cuja vida está em perigo, um aborto é uma emergência. Para a mãe sobrecarregada de dois filhos conciliando trabalho e maternidade, um aborto é uma emergência. Para o casal que só quer aproveitar a vida de recém-casados antes de expandir a família, um aborto é uma emergência.
E para uma jovem em um relacionamento prejudicial, um aborto foi uma emergência.