Festival de Parintins: de Isabelle Nogueira a Marciele Albuquerque, quem são as mulheres que fazem o evento acontecer?

Há 59 anos, o Festival de Parintins movimenta a economia e a paixão do povo parintinense. E são as mulheres, de profissionais da engenharia à costura, que refletem esse comprometimento de fora para dentro, dos holofotes do Bumbódromo aos bastidores da construção da maior celebração do folclore brasileiro, fazendo a história acontecer

Por , redação Marie Claire — de Parintins, AM


Aquecida pelo clima úmido do Amazonas nos galpões dos bois Caprichoso e Garantido, a mão de obra feminina demonstra a forte conexão que tem com a festa dedicando suas horas, dias e meses a fio trabalhando onde o festival começa a tomar forma para um novo ano. Uma delas é Larice Butel, historiadora, antropóloga e membro do conselho de arte do Caprichoso – o boi azul – de onde é integrante há três décadas. Ela se emociona ao relembrar sua trajetória, principalmente quando se afastou para estudar. Seu objetivo era agregar à instituição no futuro, algo que conquistou com maestria: “Hoje, para além do boi, sou funcionária da Secretaria Municipal de Cultura. O meu nome profissional, os espaços que consegui, eu devo ao Caprichoso. A gente aqui não tem muita pretensão na vida e o que queremos de verdade é colaborar com o processo e ajudar. Tudo o que faço para ele não tem valor que pague, porque não tem como colocar preço no amor”.

Larice Butel é historiadora, antropóloga e membro do conselho de arte do Caprichoso — Foto: Julia Mataruna

Enquanto circula entre as estruturas metálicas gigantescas, Larice checa se tudo está de acordo com a história que concebe para a apresentação no Bumbódromo, sempre baseada no folclore local. “É um ofício de fundamentar a proposta do boi com um trabalho de pesquisa, de busca metodológica e de informação para aquilo ser materializado artisticamente nos três atos do festival: a figura típica, a lenda e o ritual.”

A convite do Governo do Amazonas, Marie Claire visitou a Ilha da Magia para conhecer os bastidores da criação da celebração. Símbolo do povo do município no estado do Amazonas margeado pelo imponente Rio Amazonas, o Festival de Parintins não é apenas um patrimônio cultural brasileiro, ele também representa o sustento, o esforço e, principalmente, o resgate da identidade dos parintinenses que dedicam tempo e amor integralmente ao evento. A primeira edição aconteceu em 1965, mas sem a presença dos bois, apenas de quadrilhas. Foi só no ano seguinte, 1966, que os dois bois-bumbás foram convidados a participar e iniciaram a competição que perdura até hoje e movimenta a cidade, que praticamente dobra o tamanho da sua população de 100 mil habitantes na época da festa – sempre no último final de semana de junho.

Neide Lopes é a artista de ponta do Garantido — Foto: Julia Mataruna

Na Cidade Garantido, do boi vermelho, é Neide Lopes a responsável pela criação e execução das alegorias, desempenhando a função de artista de ponta. Graças ao festival, onde trabalha ao lado do marido há 31 anos, expandiu sua arte e inovações tecnológicas para museus no Rio de Janeiro até o Carnaval de São Paulo. “Acredito que fui uma das primeiras a comandar um galpão em Parintins. Em 1993 já desenvolvia alegoria, gerenciava equipe e fazia formação de mão de obra tanto aqui, quanto poucos anos depois no Carnaval. É uma gratificação quando a gente consegue fazer esse conhecimento todo circular e ver que tem vindo mais mulheres, porque essa barreira foi difícil de vencer no passado. E na realidade ainda estamos lutando, então quando consigo trazê-las para trabalhar comigo e fazer com que tenham interesse em estar nessas áreas é sempre maravilhoso.”

Cabeças do boi do Garantido sendo esculpidas — Foto: Julia Mataruna

“Para muitas mulheres é mais fácil desempenhar o que os homens esperam delas do que ocupar cargos que não são comuns. Mas esse espaço existe e é um direito nosso, se a mulher quiser, ela tem que estar lá. Não vou dizer que vai ser fácil, pelo contrário, precisamos nos desenvolver duas ou três vezes mais que eles, eu mesma estudei engenharia, robótica, engenharia pneumática, mecatrônica, matemática... e ainda assim tem alguns que nos ouvem falar e questionam se sabemos do assunto”, pontua a artista.

Alegorias do Garantido na pastelagem, uma das primeiras etapas — Foto: Julia Mataruna
O famoso boi preto do Caprichoso sendo montado no galpão — Foto: Julia Mataruna

Representantes aguerridas

Isabelle Nogueira é a cunhã-poranga do boi Garantido — Foto: Lucas Paulino

Na linha de frente feminina do evento, está a cunhã-poranga, descrita pelo regulamento do festival como “moça bonita, guerreira e guardiã que expressa força através da beleza”. No vermelho e branco há 17 anos, Isabelle Nogueira, finalista do BBB24, começou como dançarina, se tornou Rainha do Folclore e, há seis anos, foi aclamada ao posto de Cunhã. “Me sinto muito honrada, porque somos todos Garantidos: minha bisavó, minha avó e minha mãe passaram essa paixão através das gerações. A minha função é importante para outras meninas que sonham desde pequenas um dia ser item [como são chamados os quesitos pelos quais os bois são julgados] do festival.”

Isabelle celebra a maior presença das mulheres na festa, mas pontua que ainda está longe do ideal: “Quero que a gente não fique só nos bastidores, na questão coreográfica, temos que ser inseridas num contexto mais amplo e vistas como protagonistas, com voz”.

Marciele Albuquerque é a cunhã-poranga do boi Caprichoso — Foto: Julia Mataruna

Marciele Albuquerque, a cunhã do Caprichoso, exalta a importância da ancestralidade ao incorporar a guardiã do boi azul: “As mulheres da minha família são muito guerreiras e essa é a minha história de vida também. Então, na verdade, não foi o item que me trouxe essa força, fui eu que levei para ele”.

Indígena do povo Munduruku e nascida em Juruti, no Pará, Marciele é ativista ambiental e vê no festival uma oportunidade para a conscientização: “É fundamental trazer o que abordamos na arena para a realidade, pegamos pautas que deveriam ter visibilidade, como a preservação da Amazônia, e unimos a parte cultural e folclórica. Hoje a gente consegue ter uma voz e eu posso ser chamada para palestrar sobre as causas relevantes para o nosso povo”.

Onde elas querem estar

Iris Barroso é soldadora no Garantido — Foto: Julia Mataruna

Em meio a ferros retorcidos, restos de isopor e tecidos coloridos, um objetivo é partilhado entre as mulheres que fazem a história acontecer: não perder a identidade do povo indígena e ribeirinho. De soldadoras a costureiras, não há nenhuma que não derrame lágrimas ao explicar sua dedicação: “Nós de Parintins temos que mostrar a nossa arte e dizer que existe um espetáculo aqui que todo mundo precisa ver. Não podemos deixar morrer a nossa cultura, porque sem ela não somos nada”, declara Carmem, coordenadora do Garantido.

Carmem Lúcia (à dir.), coordenadora, e as costureiras do Garantido (à esq.) — Foto: Julia Mataruna

A presença feminina aumenta a cada ano e é incentivada dentro dos bois, como por exemplo nas mulheres da Vaqueirada e dos Tuxauas, itens dominados por homens. Sintetizando a esperança de que elas sigam quebrando esses paradigmas, Marciele Albuquerque resgata o passado para alimentar o futuro: “O boi está onde está hoje graças às mulheres.”

Karen Batista é soldadora e auxiliar de artista no Caprichoso — Foto: Julia Mataruna

Equipe
Fotos
Julia Mataruna
Produção Executiva Vandeca Zimmermann
Agradecimento Secretaria de Comunicação do Governo do Amazonas

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