Eu, Leitora

Por Kizzy Bortolo, colaboração para Marie Claire — Rio de Janeiro

"Minha fascinação pelos estudos começou na época em que meu pai se casou novamente e eu ganhei novos irmãos. Meu pai bebia muito, era agressivo, principalmente, comigo e com a minha irmã. Nós éramos espancadas, praticamente, toda semana. Quando saíamos da escola, tínhamos que ir direto para o trabalho na lavoura com apenas sete e oito anos. Era tudo muito difícil e sacrificante para nós, não queria aquela vida para mim. Apesar dele ser um ‘pai ruim’, talvez por um motivo pessoal ou interno, ele procurava dar sempre o melhor para nós. E uma das coisas que ele dava preferência era para a nossa educação. Minha infância foi muito simples e pobre e, cansado dessa situação, com apenas a quarta série primária, meu pai fez um concurso da prefeitura local para guarda municipal e foi aprovado. Aí as coisas amenizariam um pouco para a nossa família.

Fui crescendo e amando cada vez mais estudar. Na escola me sentia feliz! O problema é que, na década de 90 até o ano 2000, a educação não era para todos. Mas, mesmo assim, eu procurava sempre ser melhor em tudo que fazia, principalmente no quesito estudos. Aos 14 anos, sai de casa e fui morar com uma mulher para realizar as tarefas domésticas em troca de roupa e de comida, pois meu pai estava cada vez mais agressivo comigo. Minha irmã, logo em seguida, engravidou com apenas 15 anos porque também queria sair de casa. A única coisa boa que teve na minha vida nesse período foi um grupo de dança que criei com o intuito de ajudar as crianças daquela comunidade a crescer, para ter mais desempenho nos estudos, pois para permanecer no grupo tinha que ter boas notas e bom comportamento na escola.

Aos 19 anos conheci meu esposo e, por me sentir sempre muito sozinha, decidi formar com ele uma família. Com apenas dois meses de namoro já nos casamos. Um ano depois, nasceu minha primeira filha, Karinny. Mesmo sem estrutura financeira, fomos morar na roça, no município de Conceição de Castelo, interior do Espírito Santo, em uma ‘tuia’, que é um cômodo de madeira onde se guarda o café que colhe na lavoura. Essa situação foi o fim para mim. Não queria isso, muito menos ainda para minha filha, que acabara de nascer. Foi uma luta viver daquele jeito, mas era só o que tínhamos, até então.

Em 2009, vi um anúncio da Prefeitura de Conceição do Castelo distribuindo bolsas de estudos para cursar pedagogia. Eu já tinha o segundo grau completo e, imediatamente, me inscrevi, mesmo sem saber como eu ia sair da roça para ir até a faculdade. Agi no impulso e só pensava que aquela era a minha vez de mudar de vida. A melhor notícia foi ter conseguido essa bolsa, então voltei a sonhar em ter uma vida melhor, que minha filha poderia ter um futuro totalmente diferente do meu.

A bolsa de estudos saiu, porém, uma parte da mensalidade e o transporte eu ia ter que custear. Mas como eu iria fazer isso? Passei a procurar trabalho, só que negros e pobres em cidade pequena do interior só arrumam trabalho apenas com indicação e eu só tinha experiência trabalhando na roça. Lembro que eu andava três quilômetros durante três dias da semana para fazer faxinas e como não tinha quem ficasse com a minha filha, eu a levava comigo e, por isso, cobrava mais barato pelo meu trabalho. À noite, andava novamente os três quilômetros para chegar até o asfalto e pegar o ônibus para ir à faculdade. E minha filha ia comigo, porque na maioria das vezes, não tinha com quem deixa-la. E foi assim que ela aprendeu suas primeiras palavras. Esse período da faculdade não foi nada fácil, mas meu maior sonho era pegar aquele diploma nas mãos!

Dois anos após começar a faculdade, infelizmente, tive que trancar, pois o dinheiro já não estava dando para cobrir os gastos. Nessa época, a gente já morava numa casinha simples e pagava aluguel e a distância até a faculdade também estava inviável para mim. Em meio tudo isso, meu esposo teve uma oportunidade de trabalho no Rio de Janeiro. No início ele foi sozinho e, então, voltei a morar na roça com meu pai e minha filha. Seis meses depois, meu esposo nos buscou e fui com minha menina para o Rio de Janeiro. Minha faculdade permanecia trancada, pois não tinha como eu estudar em uma cidade onde não conhecia nada, nem ninguém, e como meu esposo viajava muito à trabalho, ficava somente eu e minha filha. Mas, nunca desisti de estudar e terminar minha faculdade. Após alguns anos no Rio, consegui fazer algumas faxinas, sempre levando minha pequena comigo e as coisas foram melhorando. Meu esposo passava muito tempo fora de casa trabalhando como motorista de caminhão na estrada, eu o apoiava porque ele sempre dizia que tudo que estava fazendo era para nos dar uma vida melhor!

Em 2013, meu esposo passou a ter sérios problemas de síndrome do pânico e ansiedade, pois ele começou a usar entorpecentes para se manter acordado dirigindo na estrada, já que seu trabalho exigia muitas noites acordado. Então, tivemos que retornar para o Espírito Santo, onde ele foi melhorando e dos entorpecentes só sobrou a grande lição de que aquele caminho nunca seria o melhor.

Em 2012, tive outro filho e a madrinha dele nos cedeu uma casa para morarmos em Venda Nova do Imigrante, na serra capixaba. Nessa época, meu esposo retornou a trabalhar como caminhoneiro na estrada e eu comecei a trabalhar também. Enfim retomei a faculdade e dessa vez era online. Mas tudo bem, eu só precisava mesmo me formar. Como as coisas não acontecem como esperávamos, minha amiga precisou da casa onde morávamos, meu esposo perdeu o emprego, aí nos mudamos novamente. Dessa vez, fomos morar em Marechal Floriano, no sítio onde meu esposo ia trabalhar. Voltamos a morar na roça e tive que trancar novamente a faculdade, pois lá não pegava internet, nem sequer ligação de telefone.

Em 2018, já com mais uma criança (meu terceiro filho) e após nos mudarmos para umas 24 casas diferentes, conseguimos, finalmente, comprar parcelado em inúmeras vezes, uma casa (que ainda estava sem acabar) no centro da cidade de Marechal Floriano. Em meio ao pagamento das parcelas, meu esposo e eu tivemos que fazer uma cirurgia, então, nos restava morar em uma casa sem janela e sem porta, sem nada. Essa era a solução, pois não íamos ter como pagar a prestação da casa e ainda comprar comida. Minha filha mais velha, Karinny, sempre estava do meu lado para tudo. Ela cuidou de mim, com apenas 10 anos, no resguardo do meu filho mais novo. E, assim como a mãe, ela sempre amou estudar e sempre tirou nota 10 em tudo na escola.

Em 2020, mudamos novamente e, dessa vez, fomos morar na cidade de Castelo, também no Espírito Santo, em busca de uma melhor oportunidade. Lá meu esposo teve um convite de trabalho e passamos a ter uma vida melhor. Dessa vez não tinha jeito, tinha que terminar minha faculdade, senão o prazo ia terminar e poderia perder tudo que estudei até então. Logo veio a pandemia e, bem em meio a esse caos todo, me inscrevi através do FIES no curso dos meus sonhos, que era Direito. Consegui passar e foi um momento extraordinário na minha vida! Logo pensei: ‘Eu serei a primeira da família Guilhermino a fazer uma faculdade e ainda vou ser doutora’. Encarei as duas faculdades, simultaneamente, no período de pandemia da Covid, minha filha Karinny teve crise de pânico e ansiedade, se sentindo cada vez mais insegura, triste, e todas essas mudanças frequentes que tivemos fez com que ela tivesse medo de se apegar às pessoas, pois tinha receio de perder, sentia falta dos amigos. Minha filha estava tomando cada vez mais remédios, indo a médicos e especialistas, e isso me dava medo. Mas continuei estudando, até que em março de 2022 me tornei pedagoga. E caminho que encontrei para ajudar minha filha a sair da depressão era ficar mais perto dela. E foi o que fiz. Passei a estudar com ela.

Consegui uma vaga para trabalhar no Fórum da cidade como estagiária de Direito e mal acreditei! Fui com muito medo, mas fui assim mesmo, já que me sentia totalmente insegura, porque não achava que aquele lugar era para mim, por ser uma mulher, mãe e negra, que veio da roça. No primeiro dia de trabalho, me senti tão poderosa, tão incrível! Até meus filhos ficaram se sentindo importantes e, mesmo sendo só um estágio, eles falavam com orgulho onde a mãe trabalhava. Ficamos todos muito felizes! Fui muito bem acolhida lá e perdi o medo, sinto que consigo ir mais longe, pois meus colegas de trabalho me passam muita segurança.

2022 foi o ano da Karinny, minha primogênita, fazer o ENEM. Ela estava muito ansiosa e se cobrando muito, tinha medo de não passar. Decidi, então, me inscrever também para dar uma força. Enquanto, ela estudava para o ENEM, eu estudava as matérias com ela, estudava para o curso de Direito e também para fazer um concurso público. Estudávamos juntas a noite toda e também nas madrugadas, muitas vezes até às cinco da manhã.

Até que, finalmente, chegou o dia da prova. O resultado foi o mais incrível possível: nós passamos juntas na Universidade Federal do Espírito Santo. Que felicidade! Eu para o curso de Engenharia de Petróleo e Karinny para Ciências Econômicas. Ficamos radiantes! Nos abraçamos muito e pulamos de felicidade. Imagina: mãe e filha estudando juntas. Seria felicidade demais para nós! Mas tive que continuar morando em Castelo para terminar o Direito, que é o curso que mais amo! Minha filha já está morando na capital Vitória e estudando na UFES. Mas, se eu pudesse mesmo, queria fazer essa terceira faculdade, pois amo estudar! É a minha maior satisfação na vida: estudar e adquirir cada vez mais conhecimento. Quanto mais, melhor! Karinny também passou em outras três faculdades: Direito, Enfermagem e Relações Internacionais, mas Economia é o que ela mais ama. Sigo estudando para concurso público na área do Direito e sei que, em breve, vou passar. Meu maior sonho é ser Delegada Federal ou Promotora de Justiça, não tenho medo de estudar, se precisar virar noite estudando, eu viro! Sou persistente e resiliente! Também preciso ajudar a minha sobrinha, Adriana, a se formar em Medicina e, por isso, esse ano vou fazer o ENEM novamente só para incentivá-la e lhe dar apoio, como dei para minha filha!

Raquel e Karinny passaram juntas no vestibular da Universidade Federal do Espírito Santo, em cursos diferentes — Foto: Reprodução
Raquel e Karinny passaram juntas no vestibular da Universidade Federal do Espírito Santo, em cursos diferentes — Foto: Reprodução

Tenho como maior inspiração de vida a ‘Presidente do Supremo Tribunal Federal’, que é uma mulher no mais alto cargo do judiciário! Quem sabe um dia não chego lá? Quando terminar a faculdade de Direito, espero já ter passado em um concurso público, pois pretendo ajudar outras mulheres que sofrem com a violência doméstica e também as mães que não conseguem receber a pensão dos pais dos seus filhos, pois sabemos que elas não têm voz e são invisíveis perante a sociedade. Mas elas vão ter a mim! Essa será a minha grande causa e também minha maior luta como advogada ou Promotora de Justiça!

Penso que nunca é tarde para estudar, para evoluir, adquirir mais conhecimento, se formar e se realizar como pessoa! Não tem idade, basta querer! Foi muito bacana a experiência de estudar e fazer a prova do ENEM com minha filha. Tivemos uma conexão linda, já que foram muitas noites estudando juntas, uma apoiando a outra. Depois foram dois dias intensos de prova e que, com toda certeza, vamos levar esses momentos incríveis para o resto das nossas vidas!”

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